terça-feira, 25 de outubro de 2016

A frente fria que a chuva traz

A desigualdade social no Brasil é uma das maiores do mundo. Diversos fatores históricos e muitas forças ainda atuantes contribuem para essa triste marca, que se expressa de várias formas em nossa sociedade.

O Rio de Janeiro é uma cidade onde por características geográficas o abismo entre classes interage de forma curiosa. Espremida entre montanhas, a cidade de natureza exuberante e paisagens privilegiadas relegou aos pobres, desde a época da escravidão, os lugares de difícil acesso, cujas vistas paradisíacas do mar até hoje são usadas como um suposto privilégio daqueles que moram nos morros.

De fato uma vista do mar é valorizada em qualquer lugar, porém esse valor simbólico tem alto custo. A infraestrutura precária de uma região que cresceu sem planejamento faz com que os moradores tenham dificuldade de ir diariamente para o centro ou para as regiões nobres para trabalhar, o deslocamento na comunidade é feito por vielas estreitas e o Estado só marca sua presença com violência policial.

O diretor Neville D'Almeida mostra em seu longa uma forma de integração social mais recente e também muito específica do Rio. Não são os moradores do morro que descem para trabalhar para a classe média alta, mas os jovens da classe média que buscam diversão subindo o morro em uma espécie de turismo a um lugar diferente.

Como qualquer hotel que cobra mais caro de acordo com a vista do quarto, Gru (Flávio Bauraqui), morador do Vidigal, aluga a laje de sua casa para Alison (Johnny Massaro) organizar festas para um grupo de jovens em busca de diversão. A primeira crítica às relações do filme costuma girar em torno do comportamento hedonista dos jovens, afinal para eles a vida se resume a festas regadas a drogas e sexo.

Porém esse comportamento é até secundário se comparado aos problemas sociais capilarizados na trama do filme. Não são os jovens ricos que só querem saber de aproveitar a vida, tentando supervalorizar pequenos problemas e acreditando que a vida para eles também é difícil; na verdade esse é o desejo de qualquer um, que não é posto em prática por falta de recursos.

A diversão, seja bancada pela mesada dos pais ou por alugar parte da própria casa, é igualmente legítima. O que realmente incomoda é ver como essa aparente aproximação entre classes é unilateral e restritiva, contribuindo para a segregação social ao invés de combatê-la. É um equívoco pensar, diante das injustiças mostradas no filme, que as relações deveriam ser baseadas na essência das pessoas, ao invés de seus bens, pois isso também é posto em prática junto ao poder econômico.

Por mais que Gru ganhe dinheiro alugando sua laje e até frequente as festas, ele nunca será parte integrante do grupo de jovens. Ainda que entre eles os jovens façam brincadeiras pejorativas que chegam a causar transtornos, quando essas brincadeiras são com Gru fica claro que estão se referindo a alguém de fora.

A convivência em um ambiente fora do próprio condomínio, que poderia ser ótima para apresentar uma realidade distinta e assim ensinar outros valores, acaba somente corroborando preconceitos que são exatamente baseados no status social, independente do poder econômico.

No meio do caminho entre as duas realidades está a personagem Amsterdã (Bruna Linzmeyer). Com uma beleza estonteante a jovem tem mais integração com o grupo, desde que esta aceitação seja vista como um favor dos mais ricos à garota que não tem família que a sustente, não tem um barraco com vista para o mar, mas tem um belo corpo como moeda de troca e se prostitui para conseguir dinheiro e drogas.

O filme retrata cada personagem em seu papel social. O problema não são valores morais que censurem a sexualidade – liberada desde que dentro do próprio grupo, com exceção de Amsterdã –, tão pouco as drogas que poderiam render um capítulo à parte desta análise.

Todas as relações do filme são baseadas em troca de bens, materiais ou simbólicos. Essa troca de bens obedece a regras implícitas muito claras. O que difere Amsterdã, que entra no carro de um desconhecido para se prostituir por cinquenta reais, e a jovem de classe média que presta o mesmo serviço em troca de drogas é que esta só se sujeita a isso quando quem pede sexo é o amigo próximo. Diferente de Gru e Amsterdã, Alisson não precisa do dinheiro e o sexo poderia ser obtido de outra forma, mas a relação de poder leva à troca de bens simbólicos.

Em uma cidade que une a população por conta da geografia, seria ótimo se houvesse relações sociais reais, que permitisse às diversas classes um contato instrutivo. Isso permitiria tanto a desconstrução de preconceitos quanto a própria redução de desigualdades. Infelizmente há muito mais forças atuando para que as desigualdades persistam.


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