O diretor Paulo Machline trouxe para as telas todo o ambiente opressivo e misterioso do livro homônimo de Lourenço Mutarelli. Com muitas metáforas e algumas alegorias acompanhamos a obra que conta, na maior parte do tempo, com apenas duas personagens – o que deixa os diálogos densos e fundamentais.
É impossível dissociar a imagem de Lourenço Mutarelli da obra. Além de escrever o livro ele também encena o protagonista sem nome, agente que descobre um grande talento da música, a cantora lírica, também sem nome, interpretada por Simone Spoladore.
A partir desse encontro a relação de ambos passa a ser extremamente intensa e confusa. O agente tem hábitos bastante peculiares, como tentar prever o futuro utilizando imagens de maços de cigarro, tal qual um baralho de tarô. Há quem diga que essa é uma ideia tão insana quanto qualquer outra tentativa de olhar para o futuro.
Entre tantas perturbações pessoais o protagonista faz uma proposta que a cantora considera ao mesmo tempo absurda e tentadora: utilizar suas economias para viverem no quarto de hotel por vários anos, sem sair para nada.
O que fica gritante ao longo do filme é o cansaço do personagem diante dos percalços da vida. Não de uma dificuldade ou outra, mas da somatória de agressões diárias vindas de todos os lados. A solução para ele seria o isolamento total, se distanciando de qualquer contato com o mundo exterior. Não há no protagonista nenhum tipo de vitalidade para deixar o hotel e buscar novos projetos ou soluções para tantos problemas.
Mesmo que esse profundo estado depressivo não seja compartilhado pela cantora, que aceita dividir o quarto, mas não abre mão de sair e investir em sua carreira, é notável sua empatia com o agente. Talvez uma retribuição à oportunidade de vir para a cidade associada ao comodismo de um quarto compartilhado e mais barato, porém há também uma atração pela excentricidade das ideias e histórias do protagonista.
No sentido inverso, ele vê na cantora uma idealização de pessoa perfeita, imaginando que ela seria a única capaz de compreendê-lo e trata-lo da forma que ele gostaria. Essa busca de uma redenção também é frequente em casos graves de depressão, quando é criada pelo paciente uma situação platônica de espera pela perfeição, que evidentemente nunca chega.
Pode ser tênue a distância entre um comportamento patológico e outro excêntrico. Foi essa diferença, dissimulada pelo agente, que fez com que a princípio a cantora se satisfizesse com suas particularidades, até perceber que o mais provável seria a existência de algo mais grave do que uma personalidade marcante.
A brecha que Lourenço Mutarelli nos abre, perceptível também no filme, se dá pela relação de causa e consequência entre os períodos de lucidez e loucura de seu personagem, ou seja, não é difícil concordar com o sentimento de opressão que domina o personagem, afinal não faltam motivos para que às vezes possamos nos sentir agredidos pelo mundo e com vontade de um isolamento por completo; por outro lado nem todos cruzam a linha da insanidade, passando a por em prática verdadeiros absurdos.
O agente pode perfeitamente ser visto como uma pessoa perturbada que precisa de ajuda, mas não dá para ignorar os fatores que podem ter desencadeado essa patologia. Em uma sociedade extremamente agressiva que tenta padronizar ao máximo os comportamentos e frequentemente coibir as individualidades, é bem plausível que algumas pessoas simplesmente não consigam lidar com a pressão, sucumbindo de alguma forma.
A própria cantora mostra muita atração pelas ideias expressas. Talvez ela seja um contraponto que indica a situação não patológica das agressões sociais, quando os indivíduos expressam suas decepções e frustrações por um período determinado, voltando a retomar o ritmo de vida após viver a experiência do trauma. Já o agente deixa claro que todos os seus limites de tolerância já foram ultrapassados e em uma situação deste tipo dificilmente alguém consegue sair sem uma ajuda externa que de alguma forma mostre o caminho.
Foi o primeiro longa dirigido por Machline e a atuação de Mutarelli não é das mais profissionais, o que rendeu algumas críticas. Ainda assim o conteúdo do filme e as reflexões proporcionadas por ele não devem ser descartadas. Com diversas metáforas e ironias sutis, Natimorto traz o desconforto e o incomodo necessários para pensarmos em temas polêmicos e controversos.
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