terça-feira, 14 de novembro de 2017

Nostalgia da luz (Nostalgie de la Lumière)

O deserto do Atacama, no Chile, é um dos lugares mais inóspitos da Terra. O clima extremamente seco, quente e o ar rarefeito pela altitude de três mil metros faz com que a presença humana seja restrita. Mas faz com que os traços deixados pelos poucos visitantes sejam preservados.

Essa é a base para o filme do diretor Patricio Guzmán. Nada linear e repleto de metáforas, a nostalgia da luz é uma referência à busca pelo passado, que pode ocorrer de várias formas no deserto.

Distante das luzes da cidade, o Atacama é um local propício para astrônomos observarem as estrelas e estudarem a formação do universo. Ao falar do passado esses cientistas pensam em bilhões de anos. Buscam indícios de vida em planetas cuja distância foge de nossa percepção.

No mesmo deserto, arqueólogos e antropólogos também buscam indícios do passado. Pinturas rupestres de mais de mil anos indicam a presença humana, bem antes de o império Inca dominar a região. Analisando detalhes dos vestígios eles conseguem tirar conclusões diversas sobre a vida daqueles que descobriram a América bem antes dos europeus.

Em meio à tecnologia e aos estudiosos, algumas senhoras percorrem o deserto. Vasculham a imensidão de areia sem equipamentos específicos ou indícios concretos de onde está o que procuram. Um trabalho de formiguinhas percorrendo a areia que parece não ter fim.

Essas senhoras também buscam reconstruir o passado através de resquícios conservados pelo deserto. Um passado bem mais recente. Apenas quatro décadas, comparadas ao milênio das pinturas rupestres ou dos bilhões de anos dos astrônomos. Porém um passado que nunca deveria ter existido.

Todas elas buscam por restos mortais de pessoas próximas. Irmãos, pais, amigos, companheiros, perseguidos e mortos pela ditadura militar de Augusto Pinochet.

O isolamento do deserto, que já contava com instalações construídas para a mineração, foi ideal para o regime que segregava uma parcela da população. Aqueles que eram contrários ao regime eram transferidos para verdadeiros campos de concentração.

O Atacama, com seu solo rico em minérios, também esconde um passado pobre em orgulho. Um passado que as únicas que parecem ter real interesse em resgatar são essas mulheres. As que se recusam a aceitar um atestado de óbito presumido ou um fragmento de osso do ente querido.

No país em que múmias milenares, conservadas pela aridez, são guardadas em museus e exibidas com orgulho para visitantes, que buscam origens remotas de nossa civilização, cadáveres recentes seguem ocultos, para que não fique evidente nossa barbárie.

Há quem considere um interesse muito particular, restrito aos familiares das vítimas, portanto um esforço estatal para recuperar essa memória não se justifica. Porém é dever do Estado zelar pelos cidadãos, sobretudo quando é preciso remediar uma situação causada pelo próprio Estado, ainda que em outra época, sob outro regime.

Olhar para esses fragmentos do passado e, a partir deles, reconstruir a história diz muito sobre nosso momento atual. Podemos pensar em reconstruir a origem da vida olhando para o cosmos, ou a origem da ocupação humana no continente através das pinturas rupestres, e ambos têm grande relevância histórica.

Entretanto muitos problemas que enfrentamos hoje têm raízes bem mais recentes. O que foi ocultado no Atacama é mais que cadáveres de militantes políticos, assim como a recusa de uma busca minuciosa e de uma investigação que encontre os responsáveis pelos corpos vai além do interesse dos familiares das vítimas.

A redemocratização dos países latino-americanos que sofreram com a ditadura não sepultou as causas do totalitarismo. Os conflitos de interesse entre setores da sociedade não foram superados, mas ocultados.

Jogadas para baixo do tapete, assim como os corpos das vítimas, as divergências sociais deixaram rastros que frequentemente são desenterrados. São fragmentos que nos assombram por guardar o terror de um passado muito recente.

É compreensível o constrangimento da sociedade diante de fatos tão aterrorizantes em um local tão rico em história, com potencial científico, econômico, turístico e tantas qualidades nobres. O que vale ressaltar é que sepultar os mortos e viver o luto é uma etapa fundamental para o difícil processo de uma perda.

Da mesma forma, assumir os erros, compreender as falhas e cumprir com as devidas obrigações em relação aos familiares das vítimas é um passo fundamental para que as barbáries não sejam repetidas.


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