terça-feira, 7 de abril de 2015

A boa mentira (The good lie)

Em contraste com sua diversidade étnica e cultural, a história do continente africano segue um padrão bastante triste de colonização, baseado sempre na extração de recursos, exploração de nativos e guerras que até hoje fazem com que milhares de refugiados migrem periodicamente na tentativa de fugir da morte.

Um exemplo claro desta situação é o Sudão. Com fronteiras traçadas por colonizadores europeus, desconsiderando completamente os conflitos étnicos locais, o país mergulhou em uma guerra que culminou na divisão do território. De forma bem resumida, na teoria o resultado foi a criação do Sudão do Sul, na prática este filme do diretor Philippe Falardeau mostra as nuances dos impactos do conflito nos povos locais.

Através de um grupo de irmãos, cujos pais foram mortos e agora devem caminhar mais de mil quilômetros até um campo de refugiados, conhecemos brevemente um estilo de vida que nos parece uma fábula, sendo na verdade uma realidade cotidiana, não somente para tribos africanas, mas também indígenas e povos que vivem – muito bem – distante do que costumamos chamar de civilização.

A ausência de escrita que dá valor à transmissão de conhecimento através de histórias, a habilidade de encontrar água onde parece existir somente areia, a capacidade de espantar predadores para conseguir sua caça. Uma infinidade de conhecimentos que, por não precisarmos, julgamos menores.

Somente após um corte temporal de muitos anos os irmãos que conseguiram sobreviver conseguem visto para os Estados Unidos. A segunda parte do filme mostra o estranhamento diante de uma cultura completamente nova, com valores morais muitas vezes opostos àqueles cultivados desde a infância e contato com pessoas presas às regras, até o momento em que o legalismo passa a ser pessoalmente desfavorável.

Em algumas situações a presença dos sudaneses nos Estados Unidos pode parecer um incômodo aos moradores, afinal toda a rotina diária precisa ser alterada e não basta simplesmente alocar os irmãos em uma casa. Se pessoas que vivem em grandes cidades, de qualquer país, passam por situações constrangedoras ao visitar o exterior, o que dizer de pessoas que nunca tiveram contato com a tecnologia mais básica e caem de paraquedas em um mundo completamente diferente?

Comparando a nova realidade com os valores dos africanos o filme mostra com muita competência algumas incoerências que merecem nossa reflexão. Toda a gratidão e dedicação dos imigrantes soam até engraçadas em uma sociedade já anestesiada pela necessidade de adequação aos padrões. A curiosidade e espanto quase infantis dos irmãos, que passam a vender suas forças de trabalho, a princípio nos divertem, porém deveriam nos envergonhar por passarmos a considerar normal o que eles questionam.

Um mercado jogar no lixo a comida que ainda serve para o consumo, apesar de não servir para o comércio; uma fábrica produzir peças em série tratando seus funcionários como máquinas; pessoas que seguem ordens e toleram absurdos dos patrões por precisarem manter os empregos. Tudo isso, tão natural, tão cotidiano, não faz parte das tribos ditas não civilizadas.

Para deixar a situação toda ainda pior podemos enfatizar que quase toda a dificuldade dos sudaneses – para manter o foco do filme, já que o raciocínio se estende para o restante da África negra – tem origem na colonização extrativista promovida por países de primeiro mundo, que se desenvolveram e construíram seu bem-estar social com base na riqueza retirada do continente africano.

Entre todas as funções que o cinema pode exercer, o diretor Philippe Falardeau conseguiu reunir várias em uma única obra. Seu filme entretém, informa, em alguns pontos chega a divertir, mas pensando no resultado final o que realmente marca é a emoção, a indignação e também o sentimento de culpa inevitável que é jogado sobre todos nós.

Independente de nunca termos pensado na guerra que dividiu o território do Sudão, nunca termos parado para refletir sobre os campos de refugiados ou sobre a situação dos imigrantes em países estrangeiros, quando nos orgulhamos de um mundo economicamente globalizado não temos como fugir do ônus da concentração de riquezas.

Lavar as mãos diante de um problema que objetivamente se estabelece entre colônias africanas e metrópoles de primeiro mundo nos garante um falso comodismo, omitindo o eixo de exploração da mão-de-obra africana, que de forma escrava construiu nosso país por quase quatro séculos.

Não dá para negar que as vítimas do desenvolvimento econômico global são os africanos, o que podemos ver no filme é que seria hipocrisia nos colocarmos com vítimas, mas perdemos muito negligenciando o conhecimento que os povos africanos têm a oferecer.

Nota: triste digitar o nome do filme no Google e ver que a maioria esmagadora das imagens que aparecem relacionadas são da atriz Reese Witherspoon, bonita, americana e coadjuvante, que ganha mais destaque que os protagonistas.


4 comentários:

Samantha disse...

Adorei seu texto sobre o filme, Alexandre. Adorei como você situou o contexto histórico e geográfico do filme, puxa, acredito que professores deveriam ler seu post antes de passar o filme para os alunos. A propósito, filmes são excelentes fontes de ensinamento, um recurso que deveria ser mais utilizado!
Parabéns pelo texto!

Alexandre disse...

Obrigado Samantha!
Espero que o texto seja útil de alguma forma! Também acho que os filmes são uma forma bem interessante de ensinar, é uma pena que a exibição de filmes nas escolas ainda seja vista como uma forma de matar o tempo =/

O MINHO VISTO POR UM MOTARD disse...

Obrigada pelo seu artigo, adorei,muito esclarecedor.
Sou profesora do Ensino Médio e estou exibindo este filme para os alunos, ilustrando um projeto que tem como um dos objetivos, a sensibilização para a situação dos conflitos na África e os refugiados, ligando também, para a nossa realidade de mundo civilizado e os nossos desperdícios e falta de solidariedade para com os nossos semelhantes.
E quanto a atriz, penso que, infelizmente se não tivesse a atriz americana na apresentação e no filme, muitas pessoas não assistiriam, nem daria o devido valor, porque, não tem atores conhecidos,famosos e muitas pessoas só assistem a algum filme se tiver o atrativo de algum ator famoso, mesmo que a história do filme seja duvidosa.

Anônimo disse...

Perfeita sua colocação Samantha....esse post ilustra de forma perfeita o filme. UMA BELA REFLEXÃO.

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