terça-feira, 5 de maio de 2009

Camelos Também Choram


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O longo texto sobre esse filme é um resumo de um trabalho que fiz para a faculdade. O texto todo tem 12 páginas e tive que fazer vários cortes para não ficar tão grande aqui. Quem tiver interesse no texto completo entre em contato comigo pelo e-mail alexeap@india.com.

O filme Camelos Também Choram é o trabalho de conclusão do curso de cinema do diretor mongol Byambasuren Davaa e do italiano Luigi Falorni. O filme mostra as quatro gerações de uma família de nômades que habitam o deserto de Gobi, na Mongólia, e vivem da criação de camelos e cabras.

A primeira cena do filme mostra Janchiv, patriarca da família, contando uma lenda, segundo a qual os camelos possuíam chifres que lhes foram dados por Deus em recompensa pela sua bondade. Um dia um veado pediu os chifres emprestados para uma celebração o ocidente, entretanto nunca os devolveu e desde então os camelos olham para o horizonte a espera da devolução dos chifres. Esta lenda dá uma ideia de metáfora para o que é desenvolvido ao longo do filme que, além do fio condutor que é o filhote branco rejeitado pela mãe, mostra rituais e costumes dos nômades mongóis; um pouco de seu estilo de vida; e um conflito entre o tradicional e o moderno.

A principal forma utilizada ao longo do filme para evidenciar o conflito é utilizando as crianças que formam a quarta geração da família para questionar certos costumes e mostrar o desejo de novidades. Até a metade do filme todas as cenas são feitas nos arredores da tenda da família e os únicos elementos que mostram influência da modernidade sobre os nômades são um pequeno rádio de pilha, um binóculo e um gorro com o logotipo da marca Adidas utilizado por Ugna. Portanto a primeira metade do filme é focada em evidenciar o estilo de vida da família, mostrar alguns rituais e marcar essa separação entre gerações.

Vemos também na primeira parte do filme o motivo que leva os dois jovens nômades até a cidade, onde têm contato com produtos de um estilo de vida bastante diferente com o qual estão acostumados. É época de nascimento dos filhotes de camelo, percebemos como o conhecimento é passado dos mais velhos para os mais novos em situações cotidianas nas quais pequenos problemas são resolvidos em conjunto pela família e servem como uma forma de instrução dos mais novos pelos mais velhos. O primeiro camelo a nascer demanda, como manda as tradições locais, um ritual especial. Os homens mais velhos cortam um pouco do pelo de um animal adulto e essa lã é trançada em forma de corda por uma das mulheres, o recém nascido é adornado com algumas cordas coloridas e um pouco de leite é sacrificado para que o animal cresça forte e saudável. Esse é um dos rituais da tribo exibido no filme. Além de situações que são solucionadas em conjunto, passando conhecimento aos mais novos, é possível notar como é forte o valor das histórias utilizadas para transmitir a cultura dos nômades às novas gerações. Em determinado ponto Janchiv começa a contar mais uma lenda sobre camelos, associando o animal ao horóscopo, mas é interrompido pelo jovem Ugna que diz já saber a história e pede por alguma novidade.

Diferente do primeiro camelo que nasceu, o último parto do ano ocorreu em meio a complicações. Era a primeira gestação do animal que teve um parto longo e difícil, precisando da ajuda dos humanos para que a fêmea desse a luz a um grande filhote branco. Após o parto o filhote foi rejeitado pela mãe e não faltam motivos para tentarmos compreender o porquê da rejeição. O camelo que nasceu era branco; foi a primeira cria daquela fêmea; e por fim, o filme indica por meio de diálogos que provavelmente a rejeição se deu devido ao o parto ter sido extremamente trabalhoso, sendo que Janchiv teve que intervir até para que o recém nascido começasse a respirar.

No filme o que fica mais evidente no contexto é a aversão ao diferente, ao que é novo e foge do padrão, assim como a relutância por parte dos mais velhos em aceitar uma televisão desejada por Ugna. O aparelho não é visto com bons olhos pelos mais velhos, sobre o qual atribuem a ideia de um demônio e dizem que não é bom passar o tempo todo vendo imagens no vidro.

A família faz grande esforço para tentar aproximar a mãe de sua cria, mas as tentativas são frustradas. O contexto do filme e o modo como as cenas são dispostas nos faz ter realmente a sensação de que o pequeno camelo branco chora diante da rejeição.

Após uma tempestade de areia, em uma sequência que valoriza a fotografia e mostra um pouco dos percalços do local, é mostrado mais um ritual do qual participam todos os membros da família e outros nômades vindos para a realização do rito. Uma das falas indica uma ideia de causa e consequência entre a recente tempestade e o ritual, pois as orações são feitas aos espíritos que deveriam livrar o mundo das doenças e do mau tempo. O ritual é uma espécie de profilaxia contra futuras intempéries. Para o ritual todos utilizam vestimentas típicas.

Além de mostrar uma tradição do povo que vive no deserto mongol, existe na cena uma crítica à sociedade ocidental feita por meio das falas exibidas. O homem que conduz o ritual lembra que “a humanidade saqueia a terra e seus recursos” e que “devemos nos lembrar que não somos a última geração na terra”. Neste documentário a crítica insere-se na clivagem entre ocidente e oriente como mais um fator a ser repudiado e mais um motivo para que os nômades sejam avessos à uma maior aproximação com o ocidente.

Após a tempestade vemos uma cena que une muito bem a tentativa de transmitir hábitos do povo mongol com a história do camelo rejeitado que guia o documentário. Em uma conversa, Janchiv e Amgaa concluem que a única maneira de fazer com que a mãe aceite o filhote é através de um ritual Hoos. Para esse ritual era necessário um bom violinista e não havia nenhum nas proximidades, portanto seria necessário entrar em contato com algum na cidade.

Não há nenhum tipo de comunicação entre a família e outras localidades, desta forma a única maneira de contatar alguém de fora da aldeia é pessoalmente. Para isso a família resolve enviar Dude ao Aimak Center, que parece ser um centro comercial, com lojas, feiras e uma escola de artes. De acordo com a vontade das gerações mais velhas da família Dude deveria seguir sozinho, mas Ugna faz questão de ir junto.

A viagem das crianças dá início a segunda parte do filme, quando os meninos têm contato com novos elementos da civilização que trazem encantamento e surpresa. Na primeira parada, em uma tenda de outra família de nômades, os dois deparam-se com um aparelho de televisão e Ugna parece hipnotizado pelos desenhos animados. Entre as crianças presentes na tenda é possível notar que uma menina veste uma blusa com o logotipo da Nike, uma forma simples e bem direta de mostrar a presença ocidental.

Ao seguir viagem Dude tenta convencer o irmão de que é difícil adquirir uma televisão, já que o aparelho é caro e para funcionar precisa de energia elétrica. No final do filme podemos perceber que esse problema é sanado com placas de energia solar, ou seja, é cada vez mais próxima a presença da modernidade na vida dos nômades. Isso, de acordo com o ponto de vista dos mais velhos, é uma ameaça relativamente perigosa se associarmos com a lenda contada na abertura do filme. Na lenda o veado empresta os chifres, que haviam sido dados ao camelo como prêmio pela sua bondade, para uma celebração no ocidente, ou seja, essa representação da bondade foi usurpada do animal, que funciona como símbolo do deserto, após a presença do ocidente.

O contato com novos elementos continua de forma mais intensa quanto os meninos chegam ao Aimak Center. O vilarejo não chega a ser muito desenvolvido para os padrões de uma cidade grande, mas os jovens nômades que estão habituados com a vida simples, no meio do deserto, deparam-se com motocicletas e aparelhos eletrônicos que são bem diferentes do seu cotidiano. Para o verdadeiro intuito da viagem os jovens recebem ajuda de uma amiga de Janchiv. Ela leva os garotos ao violinista, que dá aulas de música em uma escola e lá o encantamento de Ugna volta a ficar evidente em meio às aulas de dança e de música presenciados pelos garotos. É interessante como ao longo do filme esse é o primeiro momento que percebemos a presença de uma música, não como trilha sonora para uma cena, mas como parte da história.

Além de entrar em contato com o músico os dois irmãos andaram pelo vilarejo, compraram sorvete e as pilhas para o rádio. Isso ganha importância quando, de volta à tenda da família, as crianças brincam simulando o comércio em uma feira. Ao longo do filme as brincadeiras e atividades lúdicas são raras e o cotidiano dos membros da família restringe-se mesmo ao trabalho de cuidar do rebanho e dos rituais. Como podemos ver, são atividades tradicionais e após o regresso da viagem dos meninos a brincadeira mostra a influência ocidental, a presença do comércio e o desejo das crianças de incluir esses hábitos em suas vidas.

Após a viagem o filme volta à sua guia, o filhote de camelo rejeitado após o parto. Na presença do músico a família parte para o ritual Hoos. A cena é longa e mostra toda a preparação do músico que utiliza um instrumento chamado morin khuur, uma rabeca de duas cordas. Notamos elementos característicos de rituais tribais, o instrumento é preparado sendo colocado em contato com o animal para que depois o músico comece seu trabalho; a princípio a fêmea fica agitada e relutante, mas a presença de Odgoo iniciando o canto de uma melodia que acompanha o som da rabeca parece acalmar o animal, que aos poucos se mostra mais manso.

Ao longo do ritual vemos o resultado esperado, aos poucos a fêmea cede à aproximação de seu filhote e durante o som da rabeca acompanhado pelo cantarolar de Odgoo o pequeno camelo consegue finalmente mamar sem ser rejeitado pela mãe. O desfecho é apresentado de forma bastante emotiva. A lágrima que escorre do olho da fêmea quando o filhote começa a mamar nos dá a nítida impressão de que ela está chorando e é inevitável projetarmos nos animais nossos conceitos de família e de afeto entre mães e filhos.

Para as duas histórias que seguem concomitantes ao longo do documentário temos dois finais separados. Temos o desfecho do camelo rejeitado, pois após finalizado o ritual todos fazem uma reunião com uma refeição e cantam enquanto o músico toca a rabeca.

O filme poderia ter seu final desta forma, mas os diretores dão seu desfecho para o conflito exposto e explorado ao longo do documentário do tradicional em contraste com o moderno. Embora a história dos dois camelos e a tentativa de aproximá-los seja o fio condutor de todo o filme, é fascinante o vislumbre da cultura nômade, seu estilo de vida estritamente simples e desprendido, a integração e adaptação ao meio em que vivem, com a religiosidade misturada ao respeito à natureza; e é curiosa a discordância entre os mais velhos e os mais novos. A cena final limita-se a mostrar Dude e Ugna instalando uma antena parabólica. De uma maneira simples somos levados de volta à primeira cena, quando Janchiv conta a lenda do camelo. Assim como o bondoso animal teve seu adorno roubado pelo veado para uma celebração no ocidente, os jovens podem ter sua inocência levada pelo mesmo ocidente através da influência cultural, simbolizada principalmente pelo aparelho considerado como uma coisa do demônio pelos mais velhos.


Um comentário:

igal flint disse...

Esqueceram de registrar o fato de que, enquanto os mongóis vivem no deserto e tem tanto, nós os "civilizados", no meio do "tanto", não temos nada!
Na escola aprendí que os Mongois eram bárbaros. Esse filme me fez entender que os bárbaros somos nós!

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