Com este longa o diretor Miguel Nagle toca em uma ferida muito sensível de nossa sociedade, sobretudo uma grande metrópole como São Paulo. O crack é um problema extremamente sério por ser a parte exposta de raízes muito mais profundas.
Quem nos guia por toda a trajetória de um usuário é o protagonista Eduardo (Caique Oliveira). Morador do Jardim Ângela, bairro pobre de São Paulo, que a princípio repudia usuários de crack, estigmatizados por boa parte da sociedade. Para desmistificar a ideia de que o problema é restrito à periferia, quem apresenta a droga para Eduardo, que até então só fumava maconha eventualmente, é Jeff (Caio Blat), de classe média e que mesmo tendo um estilo de vida bem distinto, acaba fazendo grande amizade com o protagonista.
É importante que a trama principal seja em torno de Eduardo para ressaltar tanto o contexto social quanto os custos de tratamento, reinserção social e dificuldades de superação que aparecem diante dos viciados, tornando ainda mais complexa a recuperação. A dependência pode atingir qualquer um, inclusive aqueles que em uma visão simplista tendem a criminalizar somente o usuário final, mas a falta de recursos torna qualquer problema mais complexo.
O crack tem duas características que somadas produzem um efeito devastador. É uma droga muito barata e que causa dependência severa em pouquíssimo tempo. Dificilmente se consegue manter um consumo moderado. Nossa tendência de procurar soluções fáceis faz com que uma opinião muito comum na sociedade seja a de que medidas repressivas por parte do Estado são essenciais diante da proliferação dos viciados.
Realmente, diante do cenário deplorável de uma cracolândia, é plausível que medidas urgentes sejam reivindicadas, porém um olhar mais atento a este cotidiano, que é parcialmente retratado no filme, revela pessoas que fazem verdadeiras insanidades por uma simples pedrinha que renderá apenas alguns tragos.
Fora das telas não são apenas jovens que abandonam a casa e deixam mães desesperadas; ainda que isso não seja pouco, as cracolândias colecionam histórias de pais até então dedicados que abandonam os filhos, meninas que se prostituem gerando gravidez que será nutrida com o crack, pessoas tradicionalmente trabalhadoras que passam a não hesitar em cometer crimes para conseguir drogas.
É no mínimo ilusório acreditar que esses extremos serão resolvidos com uma ação truculenta da polícia. A ação contra o crack deve ser preventiva, pois ainda que não exista solução fácil, evitar que uma pessoa se vicie é muito mais eficiente que tentar recuperar alguém que, em geral, pouco tem a perder caso continue se drogando.
O uso de substâncias entorpecentes é recorrente em toda a história da humanidade. Aparentemente o homem sempre buscou formas de alterar a realidade e obter prazer, portanto pensar em um mundo isento de algum tipo de substância desse tipo seria algo inédito, sem contar que socialmente existem divergências quanto à tolerância.
É evidente que isso não significa tolerar drogas sintéticas tão devastadoras para indivíduos e sociedade. O mais sensato é analisar os motivos que levam as pessoas a iniciar o uso e tentar coibi-los. Neste ponto voltamos para as profundas raízes que florescem na forma dos usuários de crack.
Apesar de existir pessoas de classes sociais mais altas que acabam viciadas, como Jeff, a grande maioria dos usuários tem origem pobre, buscando em vários entorpecentes um alívio para a dura realidade que os cerca. Se pessoas que abandonaram uma vida extremamente confortável e estável acabam resistindo à possibilidade de voltar para uma casa e sua família para continuar dormindo nas ruas, que dirá aqueles que já não tinham nada, para os quais a promessa de uma vida limpa das drogas seria aterrorizante. Apanhar da polícia, para muitos moradores da cracolândia, já era uma realidade muito antes do vício.
Filmes como esse têm um papel muito mais importante do que entreter. Nos transportam para um universo geralmente desconhecido e ainda que imperfeito, afinal é apenas um recorte da realidade, podem instigar reflexões que vão além do que notícias de jornal nos proporcionam. Por outro lado existe um peso sobre qualquer que seja a conclusão da história.
Sem dar spoilers é possível dizer que é comum uma busca de final redentor, que não reduza as esperanças daqueles que vivem o problema retratado. Ainda que pessoalmente o final tenha me incomodado, um filme que não tem a intenção de entreter também não tem a finalidade de agradar. O problema social do crack desagrada mais do que qualquer coisa que se exiba em uma tela de cinema.
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