Por não ter grande tradição em movimentos artísticos e literários o Brasil acaba pagando um preço alto, ou seja, não ter artistas que se destacam em determinadas correntes. É o que acontece com o surrealismo, por exemplo. Apesar de ser uma das grandes influências do movimento modernista, este sim com mais relevância em nossa sociedade, conhecemos (mal) o surrealismo apenas através de artistas estrangeiros, sobretudo o espanhol Salvador Dalí.
Com uma visão de mundo tradicionalmente utilitarista, que marginaliza o que não é objetivo, acabamos nos afastando também de qualquer forma de expressão alternativa, como o realismo fantástico, marcante em vários países da América Latina. Desta forma um filme como “A espuma dos dias”, do francês Michel Gondry, costuma soar estranho em terras brasileiras.
Diferente de nossas comédias sem graça, com histórias fáceis e finais felizes, Gondry traz uma adaptação da obra de Boris Vian repleta de referências culturais, desde a clássica cena de “Um cão de Andaluz” em que uma personagem tem o olho cortado com uma navalha, aqui bem mais suave ainda que um tanto aflitiva, até o filósofo francês Jean Paul Sartre, que no filme vira Jean Sol-Partre, passando pelas claras referências a Woody Allen.
Com técnicas simples de stop motion associadas a efeitos especiais mais elaborados, o filme cria um universo onírico que rompe completamente com a relação espaço-tempo convencional. Neste ponto a obra se aproxima do realismo fantástico já citado, pois apresenta com extrema naturalidade fatos completamente inusitados, fazendo com que ao abrir mão da necessidade de cenas factíveis, os personagens fiquem livres para mesclar sonho e realidade, característica típica do surrealismo, para concretizar a narrativa.
O enredo do filme é simples, narra em linhas gerais uma história de amor entre Colin (Romain Duris), até então bastante solitário e desajeitado com as mulheres, e Chloé (Audrey Tautou, a eterna Amélie Poulain). Estão nessa trama todos os elementos de uma história que tem como base a sequência utilizada desde as clássicas obras gregas. A particularidade é que, diferente de outras correntes literárias, que primam pela perfeição, omitindo os percalços da realidade, o surrealismo exterioriza esses percalços, expondo tudo de forma caricata, cômica e desajeitada.
Até mesmo a relação com as drogas, frequentemente associadas aos artistas surrealistas que por vezes utilizavam de seus efeitos para conseguir resultados mais vigorosos nos trabalhos, está presente entre os personagens do filme. As substâncias que distorcem os sons, as cores e as formas são proibidas, recriminadas, porém não deixam de marcar presença e render cenas cômicas, assim como os fatos inesperados da vida, tão bem trabalhados no filme.
É curioso que quando somos crianças gostamos de desenhos insanos, que tenham as cores explodindo na tela, com personagens inanimados interagindo com seres humanos e/ou animais. Aos poucos vamos crescendo e aceitando a falsa necessidade de seriedade, para que a realidade que nossos olhos nos mostram não seja manchada com o que foge aos nossos sentidos.
A ideia do surrealismo, muito bem trabalhada neste filme, é exatamente hipervalorizar metáforas aparentemente sem sentido para narrar fatos cotidianos e mostrar, ou sugerir, deixando a cargo da imaginação daqueles que assistem enxergarem as faces que a tendência romântica dos filmes costuma ocultar.
Haveria metáfora mais suave para um câncer do que afirmar que a personagem tem uma flor de lótus crescendo no pulmão? O eufemismo não tira a gravidade do fato e seu desdobramento, também repleto de metáforas, é uma forma de encenar um cotidiano extremamente difícil de forma lúdica.
O enredo não abandona os passos clássicos da construção de uma narrativa, mas mostra comédia e drama com um viés distinto, colocando um pouco de magia no cotidiano e tentando suavizar de forma metafórica os problemas que insistem em aparecer na vida real e que no filme acabam se tornando mais um diferencial para comédias com enredo irritantemente linear.
Apostar na retomada de um movimento artístico costuma ser ineficaz, ou seja, o surrealismo é uma corrente historicamente superada, que deixa raízes como todas as outras, mas não pode ser ressuscitado. Ainda assim, da mesma forma que o romantismo teve seu ápice há muito mais tempo e continua contaminando, muitas vezes de forma extremamente prejudicial, as obras de artes contemporâneas – sobretudo a literatura e cinema – seria muito interessante se mais artistas se inspirassem em fontes surrealistas para narrativas alternativas às tradicionais.
Um comentário:
Continuando a agradecer a sua indicação,
informamos que, desde Junho 2013, mudamos para esse novo endereço:
http://sonatapremieres.blogspot.com/
Postar um comentário