terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um Conto Chinês (Un Cuento Chino)

Se no filme Além da Estrada vemos dois jovens dando uma chance para as oportunidades da vida, esforçando-se para transformar tudo em benefícios, nesta deliciosa comédia do diretor Sebastián Borensztein vemos o protagonista Roberto (Ricardo Darín) como um solitário de meia idade, rabugento, mal humorado e repleto de manias, que de tão insólitas e repetitivas ficam extremamente divertidas nas telas.

É óbvio que mesmo que tentemos guiar nossas vidas com rédeas curtas, pensando meticulosamente em cada detalhe do cotidiano, uma série de imprevistos irão aparecer. Se não formos até a montanha (de percalços) ela virá até nós. A construção do personagem de Roberto é coerente ao cercar os cenários com antiguidades e lembranças antigas, afinal é recente a ideia de aproveitar os imprevistos da vida. Hoje, para muitos, chega a soar estranho – tanto que o resultado é cômico – tanta meticulosidade e a tentativa tão desesperada de controlar o destino.

Se voltarmos à Idade Média veremos que a sociedade não tinha alternativa à rotina do cotidiano, tendo cada classe suas atividades pré-definidas quase pela vida toda. Em período bem mais recente, há poucas décadas, ainda que houvesse maior mobilidade social e diferentes caminhos a serem seguidos pelos indivíduos, o mais comum era um casamento arranjado, quase ao mesmo tempo em que se encontrava um emprego no qual havia possibilidade de permanecer ao longo de toda a vida. A cruzada moderna não tem cunho religioso, mas é, sobretudo nas grandes cidades, contra a rotina e a falta de grandes acontecimentos no dia-a-dia. Contra esse sentimento de urgência pelo novo não faltam focos de resistência, como Roberto.

O que desconstrói a rigidez do personagem é a súbita presença do chinês Jun (Ignacio Huang), que sem falar uma palavra de espanhol entra na vida de Roberto e obriga uma considerável mudança de hábitos, sobretudo para quem é tão metódico. O convívio forçado de dois personagens tão distintos abre espaço para duas perspectivas interessantes.

Primeiro notamos a necessidade da comunicação sem palavras. Em meio à ansiedade crescente da modernidade, com telefone, televisão, rádio, internet e inúmeras outras formas de informação que nos bombardeiam, tornando tudo urgente e imediato para que o tempo de mais informações não seja perdido, acaba não sobrando atenção para tudo que fuja da palavra em qualquer uma de suas formas. De repente a fala não se torna desnecessária, mas inútil devido aos idiomas tão distintos e o único caminho é tentar algum tipo de contato através de cada detalhe que costuma passar despercebido. Gestos, olhares, expressões, silêncio e tudo o que em tese pode substituir palavras, mas que costuma nos colocar em pânico pela falta de hábito de usá-los sem poder dizer nada para auxiliar o contato, deve ser usado amplamente nas ‘conversas’ entre Roberto e Jun.

Outro detalhe curioso é a ambiguidade do comportamento de Roberto, pois sendo tão solitário e mal-humorado poderíamos esperar que ele criasse oportunidades de se afastar de Jun e se livrar do problema que surgiu de repente em sua vida, porém ele não cria tais situações e ainda as evita. Na verdade a personalidade de Roberto foi formada aos poucos até chegar ao que vemos na tela, e ainda que a solidão seja um hábito e a meticulosidade cresça exponencialmente aos que se acostumam com a vida solitária, vemos Roberto tratando as pessoas que precisam de ajuda com muito apreço, provavelmente com o apreço que muitos lhe negaram, formando o indivíduo aparentemente em guerra contra o mundo, mas que na verdade apenas tenta evitar as hostilidades da vida. A incompreensão da maioria das pessoas em relação a essa personalidade acaba apenas reforçando o estereótipo que se cria ao redor do personagem, de alguém amargo, mas que no fundo só vive a vida em uma eterna defensiva.

Um conto chinês trabalha a comédia implícita nos fatos inusitados e mostra que é possível e muito produtivo a realização de filmes divertidos, mas com boas histórias, ao invés de roteiros vazios com piadas esparsas. Aos poucos nos encantamos com Roberto não apenas pela diversão que ele nos proporciona, mas pelas suas atitudes em relação à vida – e é claro que tudo fica mais fácil com a encenação de Ricardo Darín. Se chegamos ao fim do filme esperando pela reaproximação do personagem de um antigo amor é pela consciência de que uma companhia faria bem ao seu lado rabugento, e que é um desperdício seu lado atencioso viver sozinho.


3 comentários:

Alana Gabriele disse...

Parabéns, adorei a analise do filme, pois foi muito construtivo para meu trabalho da faculdade.
Gostaria de deixa outra analise por um lado mais conceitual. O filme baseia-se em relações interpessoais, o princípio da ética. Uma relação interpessoal tem uma consciência que permite emitir um juízo de comportamento(bem e mal) nas relações, e também há a liberdade que nos permite fazer escolhas. Basicamente mostra que não há sentindo ter consciência e liberdade quando não temos o próximo, pois é através dele que nos conhecemos. Assim há uma alteridade implícita, no qual Roberto se coloca no lugar de Jun com consideração de valorização. Exercendo sua bondade por dever e sua ética.
Abraços!

Alexandre disse...

Obrigado pelo contato! Que bom que gostou do texto =)
Eu não tinha pensado nesse seu ponto de vista, mas achei interessante. Isso que é bom no cinema, dá para fazer várias análises sobre a mesma obra!

Unknown disse...

O que o Roberto coleciona?

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