terça-feira, 15 de abril de 2014

Quase dois irmãos

A história de uma nação constrói seu momento presente. Apesar disso a história costuma ser citada de forma enviesada, sendo a multiplicidade dos fatos e suas versões uma grande contribuinte para o uso estratégico de acontecimentos passados.

No Brasil, quando falamos de corrupção buscamos raízes históricas, tentando minimizar o problema alegando que os desvios de conduta dos governantes sempre existiram por aqui. Já quando a ideia é a implementação de cotas para negros, os opositores alegam que a escravidão já ficou no passado, portanto supostos privilégios não fariam sentido.

Juntando raízes do período colonial com um fato bem mais recente, curto, mas não menos marcante de nossa história, a diretora Lucia Murat aborda a ditadura militar e seus desdobramentos de forma extremamente didática, através de três períodos da vida dos dois protagonistas.

Miguel, branco, e Jorge, negro, se conhecem ainda na infância graças ao contato de seus pais, na vida adulta (interpretados por Caco Ciocler e Flavio Bauraqui) voltam a se encontrar na cadeia, porém com uma diferença fundamental: Miguel é preso político e Jorge um preso dito ‘comum’.

Por vezes a opinião popular parece indicar uma fusão desses dois conceitos. Mais que isso, parece reduzir toda e qualquer infração a um crime passível das penas mais cruéis. Entretanto é necessário saber diferenciar o que é uma violência política e o que é uma violência criminal.

Principalmente em países europeus, com tradição democrática e histórico de lutas políticas, por mais que haja conflitos entre policiais e manifestantes, não existe a criminalização de movimentos sociais, o que existe é uma noção mais clara de que, em uma democracia, reivindicar um direito é uma base fundamental da estrutura política.

No Brasil a sociedade teve como exemplo a escravidão, que marca cerca de 75% de nossa história. Nunca houve uma classe trabalhadora organizada e politizada que reivindicasse seus direitos constitucionalmente. Os negros que tentassem algum tipo de organização eram torturados e mortos, para que os outros não seguissem o mesmo exemplo.

Essa cultura de repressão associada à clivagem social entre brancos e negros cria um cenário bem interessante para o filme. De um lado os presos políticos tentando engajar o restante dos presidiários, colocando problemas em votação e criando uma estrutura de poder horizontal – pelo menos em tese. Do outro lado os presos por atitudes criminais começavam a colocar nos presídios as regras que com o passar dos anos tornaram-se quase uma constituição à parte nas instituições prisionais.

Nossa tendência maniqueísta de olhar para os fatos em busca de um certo e outro errado nos atrai para uma visão egoísta das situações, encarando tudo o que for mais próximo a nós como certo e o mais distante como o errado que merece punição mais severa.

Esse conflito desnecessário é bem expresso no filme pelos presos políticos, que acabam tentando impor ordens tal qual o governo que combatiam, e pelos presos comuns, que se negavam a acatar decisões que seriam benéficas para todos. Tudo extremamente vantajoso para aqueles que estão no poder.

Dividida e brigando entre si a população fica muito mais fraca do que unindo forças em torno de um objetivo em comum. Essa conclusão é válida para um cotidiano restrito, como uma cadeia dividida no período de ditadura militar, e também para uma sociedade inteira, da qual o filme não se esquece.

Além da infância e juventude, vemos os dois protagonistas na era pós-reabertura política, em situações muito mais próximas do que vivemos hoje. Corroborando os estereótipos, Miguel – branco e preso político – virou senador e Jorge – negro e ex-presidiário – líder do tráfico em uma favela. O destino quase pré-definido desde a infância tem raízes que vão muito além do período da ditadura.

A escravidão institucionalizada pode ter acabado há mais de um século, a ditadura há cinquenta anos, porém nossa sociedade segue estigmatizada por estes períodos. Negros seguem marginalizados desde a infância, com menos oportunidades, lotando presídios e taxados de culpados por problemas sociais dos quais são vítimas. Militantes políticos, embora tenham mais liberdade que nos anos da ditadura, seguem criminalizados, como se lutar por um direito fosse uma afronta à democracia, ao invés de um de seus pilares.

No topo de uma relação de poder extremamente verticalizada encontram-se, há séculos, aquela minoria que têm responsabilidades diretas pelos problemas sociais. Cometendo crimes econômicos realmente expressivos e lesando com isso toda a sociedade, promovem a criminalização de movimentos sociais e a perpetuação do racismo, que entre outros fatores desviam o foco da desigualdade social insana que tanto prejudica o país desde seu passado mais remoto.


2 comentários:

Amanda Azevedo disse...

Oi, Alexandre!

Parabéns pelo blog e pelos textos aqui publicados.

Conheci hoje e passarei por aqui mais vezes, com certeza.

Beijos! Boa semana e bons filmes!

Att.
Amanda.
:)

Alexandre disse...

Bem-vinda! Espero que volte sempre =)

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