Historicamente o cinema nacional alternativo deve driblar inúmeras dificuldades econômicas para desenvolver as narrativas. Não é diferente nesta obra do diretor Adirley Queirós, que chega a inserir uma viagem no tempo em seu filme, sem que isso implique em gastos astronômicos com efeitos especiais.
A base do enredo se desenvolve em uma região que escancara um abismo social gigantesco. Nos arredores de Brasília, que possui renda per capita compatível com as áreas mais ricas da Europa, estão as cidades satélites, periferia composta por descendentes daqueles que construíram a capital e vivem hoje em uma situação econômica oposta à magnificência da cidade que sedia o governo federal.
Um baile de black music realizado nessa periferia foi palco de mais uma intervenção desastrosa da polícia militar, criando dois protagonistas do filme, um cadeirante (Marquim do Tropa) atingido por um dos policiais e outro com a perna amputada (Shockito) ao ser pisoteado pela cavalaria da tropa.
Até aqui não há nada de ficção na trama. Trocando por um baile funk ou um show de rap falamos da realidade cotidiana de qualquer periferia brasileira, onde as ações com uso de força desproporcional, quando não desnecessária, da polícia militar fazem com que, segundo dado divulgado recentemente, dois terços da população tenham medo da instituição.
O passo seguinte do filme é hiperbolizar a realidade para escancarar os problemas sociais reais. O acesso da população retratada na capital brasileira já é restrito por uma série de fatores econômicos e sociais; no filme este acesso é restrito para quem tem um passaporte, que logo vira moeda de troca de altíssimo valor.
Além disso, a impunidade que costuma absolver policiais militares que cometem verdadeiras atrocidades é tão institucionalizada que é combatida por autoridades do futuro, que mandam um agente (Dilmar Durães) em uma viagem no tempo para reunir provas contra a corporação.
Permeando a questão central da injustiça, que coloca vítimas como culpados e absolve criminosos, vemos as dificuldades de quem não conta com a assistência mínima por parte do estado. O cadeirante passa boa parte do dia fazendo a programação de sua rádio pirata, montada no porão de sua casa. Não contando com mais que elevadores precários para que a locomoção possa ser feita em seu sobrado, vemos poucas alternativas para o personagem que passará o resto da vida naquela situação.
Cadeirantes passam por uma reformulação total da vida, não é somente uma questão de mobilidade – como se fosse pouco – mas uma mudança psicológica, uma reordenação de atividades simples que passam a tomar muito mais tempo e dificuldades que apesar de evidentes nós nunca paramos para pensar. O mínimo de coerência por parte de um Estado que torna um de seus cidadãos paraplégico é oferecer-lhe todas as condições de conforto, para tentar ao menos minimizar suas dificuldades antes inexistentes.
A situação do personagem amputado não é muito melhor. Evidentemente suas limitações são menores, já que uma prótese é bem mais simples e eficiente do que uma cadeira-de-rodas, porém não é aceitável que mais uma vítima gratuita da violência estatal tenha que permanecer trabalhando para prover o próprio sustento.
Como já foi dito, a narrativa do filme é baseada em extrapolar a realidade. Em teoria essas vítimas da violência teriam garantida ao menos uma pensão vitalícia, na prática o que vemos são pequenas esmolas se comparadas às reais necessidades de acompanhamento médico em diversas áreas.
A parte de ficção científica do filme, que envolve a viagem no tempo, traz um lado mais lúdico e cômico à trama. Porém analisando os fatos comparados ao que temos no cotidiano, mais absurdo do que um personagem viajar no tempo para reunir provas de um crime é a veracidade de personagens lesados permanentemente por aqueles que deveriam zelar pela segurança, para que posteriormente tenham que levar uma vida dura, marcada por batalhas diárias, enquanto os responsáveis seguem suas vidas profissionais, aterrorizando a população marginalizada.
Branco sai, preto fica traz uma infinidade de denúncias sociais que qualquer país minimamente civilizado já deveria ter sanado. Uma população que tem medo da polícia, que por sua vez dá todos os motivos para que esse medo fique cada vez maior, não tem como se sentir segura. Cidadãos que devem recorrer a tratamentos caseiros por não poderem contar com o atendimento profissional em um hospital não têm como manter a confiança em um Estado que além de abusar da violência não cuida de suas vítimas.
O ideal seria olhar todo o argumento do filme como uma ficção científica insólita. Infelizmente chega a este nível somente a viagem no tempo, o restante dos fatos são assustadoramente plausíveis.
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