terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O vendedor de passados

Costumamos pensar no passado como algo distinto de nós. Algo que aconteceu a parte de nossa existência, o que daria margem para correções de fatos que supostamente poderiam manchar nossa imagem. É nessa linha que se desenvolve o longa do diretor Lula Buarque de Hollanda, adaptado do romance homônimo do angolano José Eduardo Agualusa.

O protagonista Vicente (Lázaro Ramos) cria um passado para as pessoas, reunindo fotos, vídeos, áudios – verdadeiros ou não – para que determinada característica seja ressaltada ou fatos sejam omitidos. Esta ilusão vem da esperança de que nossos problemas sejam externos, apenas um detalhe que aconteceu ocasionalmente, portanto podem ser omitidos, senão criados, para que nosso verdadeiro eu não seja prejudicado por isso.

Só não podemos esquecer que o que somos hoje não é mais que o resultado de fatos ocorridos no que chamamos de passado. Somos indissociáveis de tudo o que nos aconteceu. Assim, de pouco adianta criar ou remover alguns fatos, pois os traços reais moldam nossa personalidade, por vezes de forma inalterável.

Histórias baseadas em fatos passados quase sempre estão envoltas em mistério, que aqui aparece com a distinta personagem vivida por Alinne Moraes. Ela procura Vicente à procura de um novo passado, porém se recusa a fornecer qualquer tipo de material sobre sua vida. Quer uma história completamente nova, com apenas uma exigência, a de ter cometido um crime.

A vida moderna, em certa medida, nos cobra um passado hegemônico. Se por um lado cada história de vida é única, por outro somos cobrados por cumprir os estudos dentro de determinada faixa etária, entrar no mercado de trabalho, aprender um idioma, entrar na faculdade, etc. Tudo que corresponda às expectativas de nosso campo de possibilidades.

Não cumprir determinada demanda ou, pior, cometer algo que não se espera – como um crime – é algo que muitos gostariam de mudar para evitar problemas. Querer inserir um crime fictício em seu passado é algo difícil de compreender. Porém, Vicente vive garimpando objetos antigos, cada um com seu passado, e sabe que as pessoas não têm uma história, mas versões da mesma história, distintas de acordo com quem a recorda.

Há quem acredite que o ideal é mantermos uma vida sem mistérios, a personagem sem passado do filme prefere que a vida seja propriamente um mistério, o que a torna muito mais atraente e sedutora.

Somos tão condicionados a cumprir as rotinas sociais que quando conhecemos alguém que fuja do padrão não procuramos compreender suas causas ou aceitar de imediato seus motivos. Uma pessoa que escolha mudar radicalmente de carreira depois dos trinta anos dificilmente conseguirá um estágio, sem o qual terá suas possibilidades profissionais restritas.

Em um mundo corporativo a exigência é que as escolhas profissionais sejam feitas ainda na adolescência, quando muitos sequer imaginam o que querem fazer da vida. Porém o que chama mais a atenção é essa exigência se estender para relacionamentos não corporativos. Daí vem a necessidade da maioria dos personagens de comprar um passado. A ideia é tentar omitir uma particularidade indesejada.

Do lado oposto, o que mais atrai na personagem que não passa sequer um número de telefone ao vendedor de passados não é o inusitado de sua atitude, mas o mistério que instiga a querer saber mais, a conhecer e desvendar os detalhes com base em pequenas nuances.

Não há nada de errado em preferir pessoas ditas transparentes, ainda que essa transparência soe falsa na maioria das vezes, mas a ideia que fica do filme é que somos seres complexos, múltiplos e versáteis. Esperar que uma pessoa apresente uma autobiografia revelando todos os fatos já vividos e os projetos futuros é mais que uma ilusão, chega a ser um conformismo com a mediocridade da rotina.

Sem detalhar muito a história do filme para não frustrar nenhuma surpresa, em meio à trama é citada a ditadura militar argentina. Uma alegoria muito interessante para um filme que questiona a veracidade do passado. Em todos os países sul-americanos que viveram sob ditaduras militares, existem diversas versões sobre os motivos que levaram a ruptura democrática, quem foram os apoiadores e financiadores dos golpes, quantos civis foram torturados e mortos, etc.

O passado, tanto em um nível micro, como a da personagem do filme, quanto em um nível macro, como um longo período da história de um país, é formado por versões e reconstruído a cada narrativa. Em uma das frases marcantes do filme, a personagem misteriosa afirma: “você acredita em tudo o que te dizem”. Algumas pessoas, sim.


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