terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O Regresso (The Revenant)

Mais uma vez o diretor Alejandro González Iñárritu apresenta um longa com fotografia impecável, que nos prende por cada detalhe minuciosamente estudado para que o resultado final seja um filme esteticamente irretocável e que, através de uma história bem específica, nos permite encontrar nuances de um universo muito mais amplo.

Ambientado no início do século XIX, o filme é baseado no explorador Hugh Glass (Leonardo DiCaprio). É fundamental lembrarmos que os EUA desta época não tinham tanto peso político, as cidades eram pequenas e boa parte do território era inexplorado pelos colonizadores.

Até então a expansão norte-americana não fazia vítimas em outros continentes. Havia ainda a necessidade de exterminar os índios que habitavam o território há séculos e, ainda que o filme não enfatize a carnificina promovida pelos recém-chegados europeus, notamos que estava plantada a semente de uma ideologia baseada na expansão à força.

Basta olharmos para a atual população do país para ver o resultado da expansão dos colonizadores, porém o grupo retratado no filme estava de fato rodeado por perigos. Evidentemente os índios estavam defendendo suas terras e para isso não hesitariam em matar aqueles que tentavam mata-los, como se isso não bastasse ainda havia a grande quantidade de neve e os animais selvagens, como o urso que atacou Hugh Glass e o deixou à beira da morte.

O mais curioso é que a despeito de todos os perigos mais evidentes, é em seu próprio grupo que o protagonista encontrará o maior entrave. Todo o sofrimento do personagem – que muitas vezes é exagerado e completamente inverossímil – seria extremamente atenuado, não fosse o egoísmo e a descrença na sua recuperação por parte de um dos integrantes de seu grupo.

Se pensarmos a história do filme como o desabrochar da política norte-americana, o personagem John Fitzgerald (Tom Hardy) pode tranquilamente corroborar a teoria de Hobbes, um dos grandes pensadores da filosofia política. Ao observar as interações sociais que ocorrem no filme, é quase inevitável a conclusão de que precisamos mesmo de um contrato social que se por um lado limita as ações individuais, por outro garante a proteção contra a barbárie.

Mesmo que a época retratada por Iñárritu seja muito distinta da que vivemos hoje, ainda é extremamente forte na sociedade norte-americana a ideia de proteção individual através do porte de armas. O medo de que a violência legítima se restrinja ao Estado, porém seja insuficiente, forma um Estado beligerante que não impede o armamento de seus cidadãos.

Esse mesmo medo coletivo instiga uma ação preventiva contra qualquer um que possa oferecer uma leve ameaça. Vendo o filme podemos imaginar que Fitzgerald já havia dado sinais de que não era uma pessoa confiável, de forma que os outros integrantes do grupo de Hugh poderiam ter tomado uma medida preventiva. Da mesma forma, hoje qualquer um que seja apontado pelo governo como uma ameaça em potencial ganha a repulsa da população, com direito a apoio de ações preventivas.

Dependendo da forma como esse discurso é estruturado pode parecer tentador a ideia de violência como uma forma de justiça, afinal a ideia seria evitar que essa mesma violência fosse praticada pelo lado contrário. O que não podemos esquecer é que o conceito de justiça está sempre ligado a valores morais e sociais. Hugh Glass representa um colonizador europeu, cujos descendentes dominaram todo o território americano impondo valores e cultura.

Do ponto de vista dos índios essa justiça preventiva seria válida somente se eles atacassem os europeus ainda quando os barcos se aproximassem da costa americana, afinal foi a partir desta expansão colonizadora que as tribos locais foram dizimadas.

Pode parecer exagero estender uma história pontual para a formação de uma nação, porém ainda que Hugh Glass tenha tido a particularidade de sobreviver a um ataque de urso e posteriormente a tantos infortúnios, a base da expansão britânica em solo americano foi toda feita por grupos semelhantes.

Hoje essa expansão já está consolidada na América, mas ainda existe em inúmeros países, sobretudo no oriente médio, onde soldados americanos realizando ocupações que não visam à colonização e povoamento, mas que seguem matando habitantes locais e extraindo riquezas para o desenvolvimento econômico dos EUA e empobrecimento crônico dos países ocupados.

Citar a segurança para justificar uma invasão pode ser sedutor, afinal todos querem se sentir seguros. Só seria conveniente substituir a forma beligerante de solucionar conflitos pela diplomacia. Seria bastante vergonhoso concluir que diante de uma situação de perigo, que muitas vezes pode ser até imaginária, o máximo que conseguimos fazer é reagir instintivamente, feito um urso que defende a cria.


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