O Brasil não é grande somente geograficamente. Culturalmente temos tanta diversidade que é bem difícil ter contato com os vários tipos de expressões artísticas e costumes marcantes de cada região. Uma forma de conhecer um pouco mais das culturas específicas que se espalham pelo país é através do cinema, que retrata cotidianos distintos das grandes cidades – que, infelizmente, concentram praticamente todas as salas de exibição.
Um bom exemplo disso é o longa do diretor Gabriel Mascaro, que mostra os bastidores das vaquejadas apresentadas pelo nordeste. O conflito entre cenas rústicas e afeto entre os personagens às vezes causa estranhamento, mas o sentimento é gerado mais pelo inusitado diante de um cotidiano desconhecido do que pelo filme em si.
Não se trata dos rodeios que em algumas cidades se tornaram eventos gigantes, que movimentam grandes cifras e pagam prêmios milionários. As vaquejadas são bem mais simples, rústicas e acabam expressando a vida daqueles que a tornam possível. Para que se chegue aos bois derrubados e imobilizados pelos cavaleiros existe muito trabalho pesado, mal remunerado e desconsiderado.
É interessante vermos a indignação – legítima – de algumas pessoas com o tratamento dispensado aos animais no filme. Existe uma louvável onda crescente de preocupação com os maus tratos, porém o que fica muito chamativo é a aproximação do estilo de vida das pessoas, frequentemente animalizadas.
Os personagens são transportados junto com os animais, dormem em espaços improvisados que mais parecem um curral, tomam banho ao ar livre improvisando uma cortina sob o caminhão. A forma com que tratam os bois não é pior do que a forma como são tratados pelos fazendeiros.
Qual o limite da diferença de tratamento entre humanos e animais é bastante discutível. Há até quem veja o filme e não encontre nada de errado com nenhum dos tratamentos. Porém uma demanda é primariamente distinta: a cultura. Ainda que a própria vaquejada possa se encarada como uma forma de expressão cultural, é latente a necessidade de cultura por parte dos personagens, seja de forma consciente – buscando atividades lúdicas que fujam do convencional – ou inconsciente, para que ascendam para uma vida mais digna.
A expressão artística é mostrada de forma curiosa no filme. Galega (Maeve Jinkings), a caminhoneira que leva o gado para os locais das vaquejadas, é também uma dançarina que ao som de músicas bregas e vestindo uma bizarra cabeça de cavalo se apresenta aos peões em um palco improvisado.
A vestimenta de Galega fica por conta de Iremar (Juliano Cazarré), o vaqueiro que quebra o estereótipo de atitudes masculinas desenhando roupas femininas e sonhando em trabalhar com costura. Assim como a dança de sua amiga, as roupas de Iremar não primam pela qualidade estética e deixam claro que a falta de referências artísticas é um fator bastante limitante para o trabalho alternativo dos dois.
Essa crítica, que pode parecer elitista, é pertinente a partir do momento que as expressões artísticas dos personagens não criam uma identidade própria, mas tentam imitar sem sucesso o que é considerado de bom gosto.
Grandes formas de arte nasceram marginalizadas antes de chegar ao reconhecimento, porém traziam elementos novos e contestadores, que são praticamente vetados aos personagens que, sem acesso à cultura, acabam já fazendo um grande trabalho ao romper com estereótipos de gênero.
Fica clara a perpetuação desta forma rústica e animalizada da vida com a personagem infantil Geise (Samya de Lavor). Filha de Galega e abandonada pelo pai, não há meritocracia que livre a menina de seguir os passos daqueles que a cercam. Adultos que foram tratados como bichos a vida inteira não veem outra forma de tratar a criança, senão de forma rude. Pode parecer evidente para quem vê de longe, mas para os personagens nem sempre é perceptível que às vezes a menina só precisa de um abraço.
A forma com que olhamos para os comportamentos sociais não é estática. A própria indignação com os maus tratos aos animais é relativamente recente. Trazer esse incômodo para as telas de forma direta e crua, aproximando a vida dos animais com a das pessoas, pode abrir caminho para uma conscientização de que comportamentos são aprendidos e relegar seres humanos a uma vida rude e desnecessariamente difícil só pode resultar em atitudes reprováveis, que não irão mudar com um passe de mágica.
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