terça-feira, 4 de outubro de 2016

O bosque de Karadima

A religião é apenas um dos aspectos da Igreja Católica. Sua força política, que apesar de vir diminuindo continua extremamente atuante na sociedade, já foi preponderante, quando a Igreja era a instituição central de toda a sociedade. Eram as autoridades eclesiásticas que cuidavam da educação, legislação, condenação e uma série de outros aspectos, hoje ramificados por órgãos específicos do Estado.

Mesmo que formalmente os Estados sejam laicos e o poder das Igrejas restrito pela liberdade de escolha dos fiéis, em cidades pequenas e distantes dos centros urbanos as paróquias e seus padres ainda têm muita força de atuação. Assim as carências da população acabam sendo sanadas – ainda que aparentemente – pelo padre; em geral uma figura carismática, vista pelos fiéis como sábia e representante divino.

Levando para as telas sua versão da história do Padre Fernando Karadima (Luis Gnecco), o diretor chileno Matias Lira consegue mostrar claramente como a concentração de poder nas mãos da Igreja ainda causa muitos problemas, sobretudo por se tratar de uma instituição administrada por pessoas, que nada têm de santas, independente do que cada um espera desta classificação.

No filme as vítimas de Karadima são sintetizadas na figura de Thomas Leyton (Benjamín Vicuña). Qualquer jovem de uma pequena comunidade chega à igreja vendo no padre a autoridade máxima. A relação de subordinação é instantânea e a grande diferença de idade coloca o pároco em posição ainda mais privilegiada, pois suas experiências de vida o fazem prever o comportamento e muitas vezes até o pensamento do jovem seminarista.

A tática da Igreja de manter a população amedrontada, temendo os supostos castigos divinos impiedosos, é uma arma recorrente de Karadima, que coloca atitudes comuns como pecado, censurando o prazer a ele vetado pela igreja. Os desejos sexuais aflorados na adolescência é apenas uma das ferramentas do padre, através da qual estabelece vários laços com Thomas – afetivos, coercitivos, sociais, etc.

Não bastasse o vínculo insano criado pela pedofilia, Karadima ainda tem o poder econômico a seu favor, pois deixa claro que paga os estudos do seminarista, que nunca chegou a ter plena convicção de seu dom para o sacerdócio. Se tentarmos nos colocar no lugar de Thomas devemos nos afastar de nossas alternativas à subordinação ao padre e compreender que a formação daquele indivíduo sempre teve as opções bloqueadas pelo padre.

A história ganha ainda mais complexidade quando Thomas começa a se relacionar com Amparo (Ingrid Isensee). Ao mesmo tempo em que Karadima tem que preservar seu segredo ele insiste em manter as rédeas da situação com uma espécie de jogo de xadrez psicológico com o casal. O diretor opta por mostrar um lado mais sensível do padre, que demonstra um ciúme quase incontrolável de Thomas.

De tão execrável a pedofilia não costuma nos dar margem para procurar algum traço de humanidade naquele que a pratica, mas ao exibir o padre como uma pessoa que tem seus sentimentos feridos e que quer manter o controle sobre seu seminarista, o filme mostra que um pedófilo não é uma figura estereotipada do mal. É um alerta para que pais e responsáveis não baseiem a confiança na aparência. Um potencial abusador pode ser alguém tão gentil e atencioso quanto um padre.

Evidente que estereótipos são ineficientes independente da abordagem. Mesmo com vários escândalos de pedofilia relacionados a membros da igreja, tendo sido a denúncia de Fernando Karadima uma das que estimularam outras vítimas a denunciarem explorações semelhantes, também existem vários padres com papel importante na comunidade em que atuam, preenchendo uma lacuna que as pessoas encontram em seus cotidianos.

O que devemos questionar é se essa atuação não deveria ser uma das opções da população, ou seja, que o padre da igreja local sirva de referência somente para os seguidores daquela religião em questão, tendo alternativas provenientes de outras instituições aos que assim preferirem.

Essa descentralização seria ruim para uma instituição que sempre teve pretensões políticas extremamente amplas, porém reduzindo o poder da Igreja e relegando a ela somente a esfera religiosa seria mais difícil que os padres se envolvessem em escândalos sexuais, que sempre ocorreram nas mais diversas hierarquias eclesiásticas, mas que hoje a multiplicidade dos meios de comunicação faz com que seja cada vez mais difícil esconder o escândalo embaixo do santo graal, ou do tapete.


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...