terça-feira, 12 de setembro de 2017

Corações Sujos

As batalhas europeias da Segunda Guerra costumam ser estudadas a fundo nas aulas de história. Porém o Japão, que fazia parte dos países do eixo, só costuma ser lembrado por aqui devido ao ataque de Pearl Harbor e às bombas atômicas que encerraram definitivamente a Guerra.

O Brasil começou a abrigar, no início do século 20, uma das maiores colônias japonesas do mundo. Com o início da Guerra esses imigrantes, que já sofriam certo preconceito devido às particularidades culturais, passaram a sofrer forte repressão por parte do Estado e da sociedade.

Os conflitos sociais do pós-guerra gerados no Brasil são amplamente descritos pelo jornalista Fernando Morais, no livro Corações Sujos, e ganharam as telas com o trabalho do diretor Vicente Amorim.

É difícil compreendermos com clareza a devoção dos japoneses à pátria e ao imperador. Até o fim da Guerra o imperador tinha caráter divino e abrir mão desse status foi um dos itens de rendição do imperador Hirohito.

Quando as rádios e jornais brasileiros começaram a divulgar a derrota dos países do Eixo, muitos japoneses simplesmente se recusavam a acreditar que o Japão havia perdido a guerra, um fato até então inédito na história milenar do país. Mesmo as mensagens em japonês que confirmavam a derrota eram encaradas como propagandas falsas dos Estados Unidos.

O problema é que os japoneses que aceitavam o fim da guerra passaram a ser considerados traidores. Eram os chamados ‘corações sujos’, que após terem a casa marcada – semelhante aos judeus na Alemanha – eram condenados à morte.

Não era um simples assassinato. À vítima era oferecida uma alternativa, que as diferenças culturais também dificultam nossa compreensão. Os considerados traidores tinham a possibilidade de cometer suicídio, uma forma de morrer com honra, que normalmente era uma alternativa recusada, levando à execução.

As autoridades brasileiras, responsáveis por impedir os conflitos, não sabiam como resolver o problema. Mais que isso, desde a Segunda Guerra costumavam ser hostis aos japoneses, considerados inimigos quando o Brasil passou a combater o Eixo.

Um episódio marcante, que deu origem à organização de japoneses destinada a combater os corações sujos, foi a abordagem policial na qual um soldado brasileiro usou uma bandeira do Japão para limpar a bota. A bandeira nacional é considerada sagrada pelos japoneses, a ponto de ser oferecida junto com uma adaga aos condenados que optassem pelo suicídio.

Os conflitos começaram a tomar grandes proporções, mas ninguém conseguia convencer os japoneses mais radicais de que a guerra havia, de fato, acabado com a rendição japonesa. A dificuldade de identificar membros da seita responsável pelos assassinatos era um agravante. Milhares de imigrantes chegaram a ser presos, mas muitas vezes não havia provas de ligação com os conflitos.

A organização criminosa foi desmanchada aos poucos, com alguns líderes presos e outros assassinados. Já a discriminação em relação aos imigrantes japoneses foi mais duradoura.

É interessante pensarmos em como a tolerância aos imigrantes varia ao longo do tempo. Hoje é estranho pensarmos em japoneses hostilizados, ou mesmo no medo que havia entre os brasileiros de que o Brasil pudesse, por influência dos imigrantes, passar a ser como o Japão.

Quando crises internacionais fazem o sentimento de nacionalismo voltar a ganhar força, os exemplos históricos nos ajudam a compreender como certos discursos não fazem sentido em longo prazo.

Tanto a fidelidade dos japoneses radicais, dispostos a matar seus conterrâneos por aceitarem a derrota que de fato ocorreu, quanto o preconceito contra os imigrantes fomentado por uma política estatal alinhada aos combates da Guerra se mostraram absurdos com o tempo.

Não faltam exemplos históricos que nos ensinem como o nacionalismo, que nasce com o pretexto de exaltar qualidades de um povo, logo se transforma em ódio a um segmento adotado como inimigo. O resultado não costuma variar muito.

Levado ao extremo o nacionalismo deixa um grande número de mortos, segregações e limitações de pessoas que poderiam ser brilhantes, mas são ofuscadas pelo preconceito que as reduz a um rótulo descabido.

Hoje o Japão é visto como exemplo a ser seguido, graças ao desenvolvimento tecnológico e econômico. As colônias japonesas no Brasil estão mais adaptadas culturalmente e também são respeitadas, porém o duro período vivido pelos imigrantes em meados do século passado deve ser lembrado, sobretudo para que não se repita em relação a outros imigrantes.


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