O dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos, é 13 de dezembro e o milagre ao qual o título do filme faz referência ocorreu no ano de 1912, ou seja, o nascimento de Luiz Gonzaga em Exu, Pernambuco. O brilhante artista que ganhou o nome em homenagem à Santa é um grande responsável pela difusão do instrumento que marca tantas culturas no interior do Brasil: a sanfona. Entretanto o documentário de Sérgio Roizemblit aborda muito mais do que o instrumento, pois guiado pelo carismático Dominguinhos o filme viaja por várias regiões do Brasil mostrando diversas particularidades culturais embalado por boas músicas, lindas paisagens e músicos que muitas vezes são injustamente desconhecidos.
As filmagens duraram ao todo mais de dez anos, o que proporcionou ao trabalho final imagens de verdadeiras lendas da nossa cultura que já faleceram, como Sivuca, Mário Zan (inexplicavelmente desconhecido após bater recordes de vendas) e Patativa do Assaré. É com este último que começamos a viagem pelo Brasil. No nordeste, poucos meses antes de falecer, o poeta nos presenteia declamando seu poema em homenagem ao amigo Luiz Gonzaga. Tão grande quanto a emoção desta cena é a decepção pelo seu centenário (agora em 2009) ser tão negligenciado e esquecido.
Seguindo pelo nordeste vemos alguns encontros de grandes sanfoneiros fazendo forró de raiz; o encontro improvisado de repentistas na beira da estrada, acompanhados pelo acordeom de Dominguinhos; Arlindo dos 8 baixos, que não largou os oito baixos nem depois de perder a visão; Camarão, que já não pode tocar em pé devido à problemas na coluna, mas comanda os forrós tocando sentado; e os diversos “causos” entre os quais ganha destaque Pinto do Acordeom, que conta como teve que tocar “New York, New York” para salvar a própria vida - nesta cena é necessário ressaltar o bom trabalho de Roizemblit que, diferente do que é mostrado no vídeo abaixo, não limitou-se a mostrar o sanfoneiro improvisando a letra e Dominguinhos se divertindo. Quem ver o filme entenderá do que estou falando!
Rumo ao sul Dominguinhos dirige sua caminhonete até o pantanal matogrossense. Começamos a notar diferenças sutis no ritmo das musicas e grande mudança de cenário entre o cerrado e o pantanal. A criação de gados está presente nos dois ambientes, mas é manejada seguindo costumes locais, pois no nordeste os vaqueiros lidam muitas vezes com a caatinga e cavalgam em meio aos espinhos das árvores, enquanto as planícies do centro-oeste alteram o modo de conduzir o gado. É impossível deixar de destacar o voo de um casal de araras azuis flagrado por Roizemblit, de causar inveja em qualquer documentário da Nacional Geographic.
Ampliando a diversidade cultural o documentário nos leva ao sul do país. Lá o som da gaita tem influencias diferentes do nordeste, vindas da Itália e mesmo do tango argentino. Ainda que os acordes sejam os mesmos, a música não tem tanto gingado quanto o forró nordestino. É interessante notar também a postura dos músicos que, diferente dos nordestinos, preferem tocar a gaita sozinhos a fazerem encontros para duetos. Um dos ritmos tipicamente gaúcho é o “bugio” e o filme mostra como sua origem é mesmo a espécie de macacos. Com o baixo da gaita o músico imita o som do primata para fazer a base e a dança imita os movimentos do bugio.
Novamente rumo ao norte o filme deixa pela primeira vez o interior e chega à maior cidade do país. São Paulo, por receber imigrantes de todo o Brasil, sintetiza muito bem a diversidade cultural de norte a sul e coloca na sanfona inúmeros elementos. O instrumento é utilizado no jazz, hip hop, música árabe, japonesa, etc. Além disso, anima as festas fundamentais aos imigrantes nordestinos que têm grande peso na história da cidade. Finalmente a história de Dominguinhos, que até então acompanhava as entrevistas, ganha o merecido destaque, pois em certo sentido simboliza muito bem os imigrantes nordestinos.
O músico de simpatia inigualável saiu do nordeste ainda criança, como tantos outros, e enfrentou onze dias em um “pau de arara” para chegar ao sudeste. Tocava pandeiro com os irmãos para conseguir dinheiro e ajudar a mãe a fazer a feira, mas o que mudou sua vida foi conhecer o gênio Luiz Gonzaga, que lhe deu um acordeom e foi seu padrinho na música. Dominguinhos se emociona – e nos emociona – ao lembrar-se de tantos nordestinos que deixam a terra que amam para tentar uma vida melhor e muitas vezes não têm a chance de voltar para casa, assim como os pais do músico.
Para terminar a viagem o longa nos leva de volta ao nordeste com a entrevista do mestre Sivuca. Talvez seja o último registro do músico que morreu em 2006, cujos dedos passeiam pelas teclas da sanfona em um dueto inenarrável com Dominguinhos, que apesar de mais novo, inspira o mestre – segundo palavras do próprio Sivuca. A obra termina com um grupo de irmãos que toca para Santa Luzia, o que prende todos no cinema até o fim dos créditos.
Muitas vezes ao longo do trabalho sentimos vontade de aplaudir o que é exposto, como se estivéssemos vendo as apresentações ao vivo e, apesar da intenção do filme não ser esta, saí da sala com vontade de colocar uma mochila nas costas e refazer a viagem pelo Brasil que toca sanfona! Para quem não gosta de documentários, essa é uma ótima dica para uma revisão de conceitos.
Geralmente eu só coloco o trailer, mas diante do Milagre, não colocar esse vídeo seria um pecado =)
Um comentário:
Oi Alexandre! Que bom seu artigo! Nos enche de satisfação perceber que nossa mensagem é bem recebida. Muito obrigado pela atenção. Abraço!
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