O cinema latino está repleto de filmes que abordam as ditaduras militares que assolaram o continente na segunda metade do séc. XX. O tema é bastante compreensível, dado a forma com que estes governos assolaram os países, e muito importante para que as gerações seguintes às ditaduras tenham clareza sobre como a população era (mal)tratada, independente de indicadores econômicos. O diferencial do documentário de Flavia Castro é que a diretora não aborda uma grande personalidade ou um grande fato da história do Brasil, mas a história do militante Celso Afonso Gay de Castro, para ela o mais importante. Seu próprio pai.
Dentro desta proposta dificilmente o filme deixaria de ser intimista e a diretora explorou muito bem o recurso de contar a história da própria família. Todo narrado em primeira pessoa, o documentário ganha mesmo traços de um diário, que começa na década de 1960 e percorre os caminhos que o pai, militante de esquerda, foi obrigado a percorrer para fugir da perseguição política do regime opressor contra o qual lutava, até sua morte que, como tantas outras deste período, foi cercada de mistérios e contradições.
O resultado final mostra a trajetória de sua vida entrecortada com o final trágico e misterioso, sendo que um ponto marcante é que não se trata apenas da diretora contando a história de vida de Celso Castro, mas a construção de sua trajetória a partir de lembranças, documentos e entrevistas. Assim o filme não mostra como Flavia Castro se lembra dos fatos narrados, mas como a menina, filha de um casal de militantes, que vivia em reuniões políticas e frequentemente era obrigada a mudar de país, interpretava aquela situação bastante caótica até mesmo para um adulto.
Em meio a tanto material que nos fornece uma visão geral sobre a ditadura militar, encontramos no “Diário de uma busca” uma fonte bastante particular e pessoal, através da qual podemos fazer comparação com o todo e tirar conclusões específicas, não apenas dos efeitos gerais da repressão militar e supressão de direitos do cidadão, mas também as consequências desta situação de extrema tensão, tanto sobre quem dedicou a própria vida por uma causa, quanto para seus familiares e pessoas ao redor, como Sandra Castro e seu irmão Joca, que também participa do filme.
É de uma forma bastante imparcial que a diretora mostra a menina repreendida por chamar o pai pelo nome verdadeiro, ao invés do nome de guerra (seja lá o que isso signifique para uma criança), a ainda menina que acaba exigindo o direito de ao menos compartilhar um segredo com a melhor amiga, a jovem já bastante politizada depois de tantas reuniões partidárias, a moça que chegou a dividir suas angústias com o pai – que por um lado presenciou o fim da ditadura, mas por outro fez parte de uma geração que teve que lidar com uma grande frustração política – até chegarmos ao trabalho da cineasta, que de forma corajosa exibe, sem aparente rancor, o conteúdo de cartas e depoimentos de familiares, para tentar juntar, em uma espécie de quebra-cabeças, com o conteúdo de documentos oficiais e depoimentos de profissionais e quem sabe esclarecer um pouco a morte do pai – cabe chamar a atenção para a entrevista com o filósofo Daniel Bensaïd, pouco antes de sua morte.
É antiga a tentativa dos homens de reconstituir acontecimentos a partir de pequenos indícios encontrados em um local, sobretudo quando há um crime a ser desvendado. Se com o tempo a tecnologia interveio com ferramentas para facilitar o trabalho de peritos, fornecendo bases mais sólidas que as mágicas divagações de personagens literários como Aguste Dupin ou Sherlock Holmes, a força política interveio com a parcialidade e os interesses particulares sobrepostos aos públicos. Não são poucos os casos mal explicados ocorridos durante a ditadura militar, sendo que a insistente manutenção de documentos secretos dificulta, intencionalmente, ainda mais a investigação sobre o que realmente acontecia nos bastidores do poder naquela época.
O caso de Celso Castro é mais um em que as peças não se encaixam nem grosseiramente, pois os testemunhos são por vezes omissos, os laudos contradizem a versão oficial e os depoimentos de familiares e amigos, ainda que não tenham muito valor jurídico, não explicam porque Celso estaria envolvido no suposto assalto que culminou em sua morte. Para tornar o fato ainda mais misterioso, o apartamento no qual se desenvolveu a ação era de um ex-oficial nazista.
É impossível chegar a uma conclusão definitiva sobre um fato ocorrido há tanto tempo, porém com tantos interesses e tantos grupos políticos envolvidos, ou seja, militares, nazistas, militantes e todos interagindo em uma sociedade cujo cenário político era bastante tumultuado e transitório, não seria nenhum absurdo que a corda tenha arrebentado para o lado mais fraco.
O filme lança luz sobre a vida de um militante da época da ditadura, que individualmente pode não ser um ícone da política brasileira, mas assistir ao "Diário de uma busca" suscita algumas reflexões. Além do trabalho de Celso e tantos outros ser heroico, dado a discrepância de forças entre militares e civis, é prudente lembrarmos que os mesmos militares que (des)governaram o país ainda têm muita força política. É uma tarefa histórica e importante do cinema retratar certos períodos, de uma forma que pode se tornar didática aos que não viveram tal período.
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