Neste filme o diretor Juan José Campanella intercala personagens interagindo no tempo vigente com lembranças de um crime cometido vinte e cinco anos antes, em 1974. Vencedor do Oscar e merecedor de qualquer prêmio que tenha ganhado, ‘O segredo de seus olhos’ tem a sutileza do silêncio, do olhar, da palavra não dita, do sentimento não vivido. Pensando no conjunto, a obra me remeteu a uma história de Edgar Alan Poe com essência contemporânea.
O enredo que guia o filme é um crime. Liliana Coloto (Carla Quevedo) foi estuprada e assassinada. Um caso misterioso e com poucas pistas, sem muitos recursos tecnológicos na década de 70, portanto a ser desvendado através da reflexão – semelhante ao detetive Auguste Dupin, de Poe.
Aqui os investigadores em questão são Benjamín Expósito (Ricardo Darín) e Pablo Sandoval (Guillermo Francella), que em meio a toda tensão da história, utilizam o talento de Darín como ator e o alcoolismo de Sandoval como personagem para garantirem algumas cenas de comédia mais engraçadas que muitos filmes criados com essa finalidade.
Junto ao crime misterioso, há também a idealização feminina. Assim como as mulheres de Poe, aqui também vemos a mulher idealizada, perfeita, angelical e inatingível. Isso se expressa mais claramente na quebra da relação entre Liliana e seu noivo Ricardo Morales (Pablo Rago), que passa a ter na vingança seu único propósito de vida.
Porém um olhar mais atento encontra muitas semelhanças com a vida de Expósito, a partir do momento que ele conhece Irene Menéndez Hastings (Soledad Villamil), sua chefe no departamento. Ainda que por motivos bastante distintos, também é um amor que apesar de correspondido, não é vivido, e por isso é perfeito no sentido de que não conta com desgastes naturais do tempo, para tirá-lo de um nível onírico e trazê-lo para o plano real.
Nem tudo é encarado com o romantismo que pode marcar presença até mesmo na resolução de um crime hediondo. Contextualizando o filme em seu período histórico, existe a tentativa, na Argentina prestes a iniciar a ditadura militar, de conseguir uma confissão sob tortura para supostamente encerrar o caso; existe o machismo que influencia na investigação de um crime contra a mulher; além do revanchismo, que prejudica qualquer investigação.
À parte de burocracias, machismos e corrupções, Expósito e Sandoval seguem a busca através de pistas abstratas, utilizando como base um olhar, uma intuição, uma paixão. Esses elementos que têm pouco valor jurídico carregam muito mistério e podem revelar segredos mais profundos, desde que bem interpretados.
É com essas provas pouco objetivas que Expósito chega a outro ponto que lembra Alan Poe. No conto ‘O demônio da perversidade’ (The imp of the perverse) o escritor desenvolve brilhantemente a ideia de atos cometidos com a consciência do erro e posteriormente a confissão, já que de nada serviria ao narrador guardar para si determinado feito – ainda que a confissão fosse um erro do ponto de vista pessoal.
Com base nisso Expósito trabalha sua intuição de forma tão bem estruturada que leva todos que estão próximos a crer que ele está certo. O trabalho em equipe complementa a investigação com os papéis fundamentais de Irene, uma mulher inteligente que sabe usar a ignorância do machismo a seu favor, induzindo uma confissão que se mostra, ao assassino, menos importante que sua virilidade; e Sandoval, que utiliza seu alcoolismo e os amigos de bar para indicar a força da paixão, sobretudo ao time de futebol, que é incondicional. Em breve cena num estádio Campanella consegue mostrar a magia do futebol como poucos conseguiram.
O curioso é que segundo Sandoval um sujeito pode trocar de tudo, menos de paixão. A metáfora ilustrada pelo futebol se aplica aos dois amores do filme por estes não terem sido vividos. A verdade é que a paixão, sim, termina, porém não até que seja vivida em sua plenitude. Ela tem seu próprio tempo, que quando não é cumprido a deixa latente. Podemos fingir que não existe, empurrar para baixo do tapete, mas acabar mesmo, somente se for vivida, assim a convivência mostra ao poucos os defeitos, as desilusões, as decepções que esfriam o ímpeto inicial.
Apesar de parecer pessimismo, trata-se de um tema antigo na literatura. O debate de como seria a vida de Romeu e Julieta caso tivessem passado a vida juntos leva a discussão ao menos até o tempo de Shakespeare. Aliás, é possível indicar uma relação ainda mais forte de Expósito e Irene com o casal shakespeariano.
Há na Argentina certa clivagem social com base nos sobrenomes. Os de origem europeia têm mais status que outros e isso fica bem evidente quando um desafeto do investigador, ao notar o clima de romance o provoca dizendo que ela é uma Menéndez Hastings e ele é apenas um Expósito. Mais que o sobrenome ela tem o amparo legal de uma família influente no meio jurídico, ele é apenas um sujeito esforçado, talentoso, em um mundo que nem sempre valoriza o esforço e o talento.
Claro, um amor, mesmo que correspondido, pode não acontecer por uma série de fatores. A diferença social é um dos aspectos, mas independente dos motivos que impeçam a paixão, o fato é que ela permanecerá presente. Ricardo, o noivo de Liliana, não tem opção e tem que conviver com o peso de uma paixão interrompida pela morte. Benjamín e Irene seguirão com uma paixão pendente, que dura ou até a morte, ou até ser vivida e cumprir seu próprio tempo.
4 comentários:
Nossa, AMEI o artigo! Acabei de assistir o filme e de alguns não poucos artigos que li até agora, esse foi o mais perfeito de todos. Perfeito porque cada opinião expressa fez sentido pra mim. Parabéns mesmo! ;)
Parece impossível dizer o que me marcou no filme sem roubar suas palavras, então vou no crtl c crtl v mesmo: ``‘O segredo de seus olhos’ tem a sutileza do silêncio, do olhar, da palavra não dita, do sentimento não vivido.`` <3
Ps: a conexão entre a história do filme e histórias do Edgar Allan Poe que você fez foi muito boa! Adorei!
Esse tipo de comentário dá ânimo para continuar com o blog ^^
Que bom que gostou! Obrigado, mesmo!
Amei a forma como interpretou,continue!
Este artigo me fez achar o filme ainda melhor!
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