terça-feira, 14 de junho de 2016

A terra e a sombra (La tierra y la sombra)

Uma pequena casa cercada por um imenso canavial é o cenário deste longa do diretor César Acevedo. A grave enfermidade de Gerardo (Edison Raigosa), que graças aos problemas pulmonares não pode sair de casa, é o vértice de vários outros entraves, tanto de sua família quanto da situação social, comum aos grandes polos canavieiros da América do Sul.

Colher a cana-de-açúcar é trabalho árduo. As folhas cortantes e densas são queimadas para tornar o corte viável; o que não significa que a dificuldade acabe. Além da fuligem e poluição que se espalham – que provavelmente é a causa da doença de Gerardo – os trabalhadores devem trabalhar cobertos dos pés à cabeça, sob sol intenso, realizando uma tarefa exaustiva.

Esses trabalhadores costumam receber de acordo com a quantidade de cana cortada, portanto a família toda deve trabalhar. Com Gerardo de cama, sua esposa Esperanza (Marleyda Soto) cortando cana, sua mãe Alicia (Hilda Ruiz) ajudando na colheita e o filho pequeno em casa, foi preciso que seu pai Alfonso (Haimer Leal) voltasse para casa depois de muitos anos para ajudar.

É clara a clivagem entre homens e mulheres da família. Enquanto o machismo é expresso por abandonos e imposições de vontades, sua desconstrução se dá pela evidência de que nos momentos mais difíceis são as mulheres da família que tomam a frente, sem hesitar quando precisam realizar o trabalho mais pesado e ainda lindando com irresponsabilidades masculinas.

O universo rústico que domina suas vidas quebra o estereótipo machista de mulher delicada, cuja preocupação é cuidar da aparência. Se embrenhar em um canavial durante todo o dia implica em mãos calejadas e corpo recoberto pelo suor misturado às cinzas. Neste caso a dominação masculina se dá por meio da força impositiva dos trabalhos domésticos após a jornada extrema.

No canavial impera a rotina repetida há séculos. No Brasil um dos grandes ciclos de nossa história econômica é o ciclo da cana, desde então grandes áreas rurais se concentram nas mãos de pouquíssimos proprietários, que enriquecem explorando a força de trabalho de uma legião de homens e mulheres, antes escravos, hoje mal remunerados, com péssimas condições de trabalho e, como fica claro através de Gerardo, sem nenhum tipo de assistência.

Com grande quantidade de mão-de-obra disponível, os trabalhadores nos canaviais são vistos como peças descartáveis, que caso fiquem doentes como o personagem, podem ser tranquilamente substituídos sem prejuízos ao empregador.

No setor agrário o advento da tecnologia costuma ser benéfico ao proprietário de terra. As plantações de cana podem eliminar as queimadas e substituir um exército de trabalhadores por uma colheitadeira mecânica, que não apenas colhe, mas fatia as canas e separa as folhas. Tudo ótimo, exceto para os trabalhadores dispensados, que passam a não ter mais a renda da colheita e não têm mais a terra para cultivar e prover o próprio sustento.

A realidade agrária regida por um modo de produção que visa somente o lucro de poucos proprietários implica inevitavelmente em um roteiro como o do filme. O desdobramento histórico dos países latino-americanos concentra as terras nas mãos de poucos fazendeiros, estes mantém o poder político necessário para barrar qualquer tentativa de reforma agrária e ainda conseguem explorar a mão-de-obra em um regime análogo ao da escravidão, pois pagam aos cortadores o mínimo necessário, quando tanto, para sobreviver.

Todo o sistema de monocultura, baseado em vastas propriedades, plantação de um único produto e governo omisso – dadas as intervenções de bancadas ruralistas – só traz vantagens sob uma fria óptica econômica. A ampliação do lucro e redução do preço final dos produtos tem como base um rastro de problemas socioambientais.

Aos poucos, e bem mais lentamente do que deveria, as implicações ambientais como poluição advinda da queima, contaminação por agrotóxicos e desgaste do solo vêm sendo denunciadas e combatidas.

Já os problemas sociais que atingem a base da cadeia produtiva rural pertencem àqueles que não têm voz, que, como no filme, padecem de enfermidades adquiridas por más condições de trabalho e que raramente chegam aos olhos dos que assistem deslumbrados à colheitadeira que a princípio parece trazer apenas benefícios.

Filmes como o de César Acevedo servem como alerta em relação a problemas que parecem distantes. Dificilmente um filme assim chega a ser exibido para aqueles que são retratados. Encravados em áreas rurais, distantes de cultura e entretenimento, resta aos trabalhadores personificados por Gerardo, Esperanza, Alicia, a chance remota de que as denúncias feitas pelo filme ganhem corpo. A necessidade de grandes mudanças estruturais é urgente.


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