Mais uma vez os conflitos sociais urbanos chegam às telas pelo olhar do diretor Kleber Mendonça Filho, que já se destacou em ‘O som ao redor’ e agora nos oferece uma história baseada nos interesses do capital financeiro, que podem moldar uma sociedade para além da vontade de seus indivíduos.
O edifício Aquarius tem apenas dois andares acima do térreo, com poucas mas suficientes vagas para os carros dos moradores e espaços internos amplos, característico das construções mais antigas e menos lucrativas.
Um roteiro mais que conhecido nas grandes cidades tem como base a expansão de uma área economicamente atrativa. Logo as grandes construtoras começam a comprar imóveis e demolir, abrindo espaço para edifícios majestosos. Muitos moradores do local consideram a prática uma benção, já que acabam recebendo um valor acima do mercado, que permite uma mudança de vida, inesperada, mas que acaba sendo bem-vinda.
A questão é o que fazer quando por algum motivo alguém se recusa terminantemente a vender o imóvel. Pior, quando é um apartamento que acaba interferindo na negociação de diversos moradores, como é o caso da protagonista Clara (Sonia Braga).
O diretor constrói a personagem de modo a deixar claro que o dinheiro não é um problema para ela. Aposentada e com imóveis alugados, sua renda é mais que suficiente para suas necessidades, não há uma preocupação com o futuro financeiro dos filhos e as memórias guardadas em cada canto do apartamento não podem ser compradas ou transportadas para um novo local.
Mais que uma personagem, Clara é a personificação de um estereótipo que coloca os valores pessoais acima dos financeiros – característica que evidentemente só é possível graças à condição de conforto econômico. E na outra extremidade está Diego (Humberto Carrão). Neto do dono da construtora, recém-chegado do exterior, está, em suas palavras, com sangue nos olhos para concluir a compra e construir o novo edifício. Sem dúvidas mais um arranha-céu à beira mar, daqueles que fazem sombra na praia.
Com exceção de uma expropriação estatal não há nada que obrigue o proprietário a vender seu imóvel, ainda que fosse uma cabana de madeira emperrando a construção de um imenso investimento imobiliário. A lógica do capital econômico como valor supremo é tão enraizada que por vezes nos esquecemos de que nem todos querem coloca-la em prática, e todos que vivem em um prédio deveriam estar cientes de que entraves como o do filme não têm, ou não deveriam ter, uma solução que excedesse o diálogo.
Pensando no filme como um exercício constante de empatia a quem assiste, é possível imaginar que aos antigos vizinhos que agora querem finalizar a venda a atitude de Clara é egoísta, mas até esse ponto todos estão dentro de seu direito. O inaceitável é que uma senhora de idade mais avançada, que já passou por momentos felizes e outros de extrema dificuldade, seja agora chantageada e emocionalmente fragilizada por um jovem mimado, que passa a usar técnicas tão infantis quanto sua personalidade indica para forçar Clara a vender seu apartamento.
Os impasses que surgem nos conglomerados urbanos não tem uma solução exata, que resolva todos os casos da melhor forma aos envolvidos. Assim, não há um veredito final sobre o que fazer em um impasse como o que é apresentado no filme. Uma coisa é certa, Clara tem plena consciência do que quer e não faz nada de errado, somente tenta seguir sua vida e resolver as coisas com serenidade. Bem diferente de Diego.
Vale a pena lembrar o protesto no festival de Cannes, da equipe do filme contra o golpe. Claro que o processo de criação de um filme é longo e quando o diretor começou a desenvolver o projeto de Aquarius o golpe no Brasil não estava articulado – ao menos não de forma explícita. Porém acaba sendo bastante simbólico que em meio ao lançamento do filme os interesses do capital financeiro não obriguem uma moradora a vender seu apartamento, mas forcem uma troca presidencial.
O lado ruim da repercussão do protesto seria uma polarização desnecessária, levando as pessoas a assistirem ao filme com um lado político escolhido anteriormente, sabendo de antemão se gostariam ou não da história. Por outro lado, sendo um filme voltado ao circuito alternativo, que inevitavelmente luta por uma sala de exibição, é de se supor que a imensa maioria das pessoas que se sentiram incomodadas com o protesto e por isso taxou o filme sem assisti-lo, já não deixariam um blockbuster de lado para ver um filme alternativo.
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