terça-feira, 27 de setembro de 2011

Hesher

A influência da banda Metallica no filme do diretor Spencer Susser pode ser notada de forma imediata pelas letras que consagraram o logotipo da banda e foram usadas também para o nome do filme. Além disso, várias músicas da banda, que foi uma das precursoras do thrash metal, formam a trilha sonora do filme, o que é raro, já que os integrantes do Metallica não costumam autorizar o uso de suas músicas. O que faz deste filme uma exceção é que o personagem Hesher (Joseph Gordon-Levitt) foi inspirado em Cliff Burton, o genial baixista que morreu em um acidente com o ônibus da banda em 1986, e a encenação realmente lembra o músico.

O roteiro transita entre drama e comédia para mostrar o inusitado encontro do pequeno TJ (Devin Brochu), que acabou de perder a mãe, com Hesher, que entra na vida do garoto por acaso e se recusa a deixá-lo em paz – quase como um Bartleby, de Herman Melville – mas apesar de não se encaixar na realidade na qual se encontra, assim como o personagem da literatura, Hesher não se aquieta e reage, ora com violência, ora com discursos recheados de metáforas vulgares, portanto cômicas, para ilustrar situações sérias.

Com o desenrolar das histórias dos dois personagens é possível notar certa relação entre o estilo de vida de ambos, sendo que a forma com que Hesher trata TJ, muitas vezes parecendo mais com desdém do que com amizade, indica a forma com que provavelmente foi tratado e se habituou, ou seja, sempre sozinho, sem poder contar com outras pessoas e com uma necessidade latente de encarar as dificuldades da vida. Sem escrúpulos Hesher parece ter a personalidade imbatível, sendo que não há situação ruim que um pouco de adrenalina não resolva – e quem acompanhou alguns relatos sobre a cena trash metal do início dos anos 80 sabe como costumavam ficar os camarins das bandas, formadas por jovens como o personagem.

Um indivíduo como Hesher não passa a agir de forma agressiva sem motivos e o filme de Susser é uma proposta interessante para ver dois períodos da vida de um estereótipo em momentos diferentes, pois uma das interpretações possíveis é que TJ é um Hesher em formação. Em um extremo o garoto acabou de perder a mãe e como se isso já não fosse bem difícil ainda tem que lidar com a hostilidade na escola, as atitudes patéticas de seu pai (Rainn Wilson), que de todas as maneiras de lidar com a súbita perda da esposa, parece escolher sempre as piores, e o amor platônico que cria por Nicole (Natalie Portman), sendo que a atração de TJ pela moça pode ser explicada muito mais por uma espécie de Édipo, com o garoto vendo na moça que o defendeu a figura da mãe que ele teve que abandonar, mais do que propriamente uma atração pelo feminino.

Em meio a todas essas dificuldades o outro extremo é Hesher, que pela convivência acaba servindo de modelo para o garoto. A forma rude de resolver os problemas e os discursos, nos quais a discrepância entre forma e conteúdo pode desagradar a quem assiste, passam a influenciar TJ em suas atitudes. O garoto também é forçado por Hesher a enfrentar seus medos e sua timidez, como talvez o controverso personagem também tenha sido forçado. Indiretamente TJ é instruído a valorizar sua família e isso indica que Hesher dá valor ao que não teve, sobretudo com os divertidos diálogos entre o cabeludo, coberto com tatuagens caseiras bem toscas, e a avó de TJ. Em mais uma referência a Cliff Burton, o diretor coloca a música Anesthesia, em off, tocada por Hesher. Poucos além do lendário baixista poderiam compor um solo tão elaborado ainda no começo da carreira, o que aproxima o personagem do músico e é mais uma obra do Metallica com a qual TJ entra em contato.

Longe de ser uma obra prima do cinema, Hesher tem o mérito de trazer para as telas um protagonista cujo estilo de vida é muitas vezes até marginalizado, porém muito comum desde o início dos anos 80. Sem dúvida muitos se identificarão com o bom humor incompreendido, as insanidades e o lado obscuro do personagem, que não se encaixa em um mundo no qual realmente não vale a pena se encaixar. A maneira informal de Hesher é desprezada pelo que geralmente é formal e no mínimo risível, como as atitudes do pai de TJ diante dos problemas.

Difícil dizer se o jovem se tornará mais um Hesher quando crescer um pouco, mas se por um lado explosões de violência não são o melhor exemplo para o menino, por outro ele teve uma forte referência de vida intensa e de uma personalidade que não se resigna aos problemas, enfrentando todos ao invés de baixar a cabeça. Na atual época do “politicamente correto”, na qual parece haver uma obsessão por afastar as crianças do que seria ruim Hesher nos mostra que a essência dos problemas é mais complexa do que a dicotomia entre certo e errado.


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um Conto Chinês (Un Cuento Chino)

Se no filme Além da Estrada vemos dois jovens dando uma chance para as oportunidades da vida, esforçando-se para transformar tudo em benefícios, nesta deliciosa comédia do diretor Sebastián Borensztein vemos o protagonista Roberto (Ricardo Darín) como um solitário de meia idade, rabugento, mal humorado e repleto de manias, que de tão insólitas e repetitivas ficam extremamente divertidas nas telas.

É óbvio que mesmo que tentemos guiar nossas vidas com rédeas curtas, pensando meticulosamente em cada detalhe do cotidiano, uma série de imprevistos irão aparecer. Se não formos até a montanha (de percalços) ela virá até nós. A construção do personagem de Roberto é coerente ao cercar os cenários com antiguidades e lembranças antigas, afinal é recente a ideia de aproveitar os imprevistos da vida. Hoje, para muitos, chega a soar estranho – tanto que o resultado é cômico – tanta meticulosidade e a tentativa tão desesperada de controlar o destino.

Se voltarmos à Idade Média veremos que a sociedade não tinha alternativa à rotina do cotidiano, tendo cada classe suas atividades pré-definidas quase pela vida toda. Em período bem mais recente, há poucas décadas, ainda que houvesse maior mobilidade social e diferentes caminhos a serem seguidos pelos indivíduos, o mais comum era um casamento arranjado, quase ao mesmo tempo em que se encontrava um emprego no qual havia possibilidade de permanecer ao longo de toda a vida. A cruzada moderna não tem cunho religioso, mas é, sobretudo nas grandes cidades, contra a rotina e a falta de grandes acontecimentos no dia-a-dia. Contra esse sentimento de urgência pelo novo não faltam focos de resistência, como Roberto.

O que desconstrói a rigidez do personagem é a súbita presença do chinês Jun (Ignacio Huang), que sem falar uma palavra de espanhol entra na vida de Roberto e obriga uma considerável mudança de hábitos, sobretudo para quem é tão metódico. O convívio forçado de dois personagens tão distintos abre espaço para duas perspectivas interessantes.

Primeiro notamos a necessidade da comunicação sem palavras. Em meio à ansiedade crescente da modernidade, com telefone, televisão, rádio, internet e inúmeras outras formas de informação que nos bombardeiam, tornando tudo urgente e imediato para que o tempo de mais informações não seja perdido, acaba não sobrando atenção para tudo que fuja da palavra em qualquer uma de suas formas. De repente a fala não se torna desnecessária, mas inútil devido aos idiomas tão distintos e o único caminho é tentar algum tipo de contato através de cada detalhe que costuma passar despercebido. Gestos, olhares, expressões, silêncio e tudo o que em tese pode substituir palavras, mas que costuma nos colocar em pânico pela falta de hábito de usá-los sem poder dizer nada para auxiliar o contato, deve ser usado amplamente nas ‘conversas’ entre Roberto e Jun.

Outro detalhe curioso é a ambiguidade do comportamento de Roberto, pois sendo tão solitário e mal-humorado poderíamos esperar que ele criasse oportunidades de se afastar de Jun e se livrar do problema que surgiu de repente em sua vida, porém ele não cria tais situações e ainda as evita. Na verdade a personalidade de Roberto foi formada aos poucos até chegar ao que vemos na tela, e ainda que a solidão seja um hábito e a meticulosidade cresça exponencialmente aos que se acostumam com a vida solitária, vemos Roberto tratando as pessoas que precisam de ajuda com muito apreço, provavelmente com o apreço que muitos lhe negaram, formando o indivíduo aparentemente em guerra contra o mundo, mas que na verdade apenas tenta evitar as hostilidades da vida. A incompreensão da maioria das pessoas em relação a essa personalidade acaba apenas reforçando o estereótipo que se cria ao redor do personagem, de alguém amargo, mas que no fundo só vive a vida em uma eterna defensiva.

Um conto chinês trabalha a comédia implícita nos fatos inusitados e mostra que é possível e muito produtivo a realização de filmes divertidos, mas com boas histórias, ao invés de roteiros vazios com piadas esparsas. Aos poucos nos encantamos com Roberto não apenas pela diversão que ele nos proporciona, mas pelas suas atitudes em relação à vida – e é claro que tudo fica mais fácil com a encenação de Ricardo Darín. Se chegamos ao fim do filme esperando pela reaproximação do personagem de um antigo amor é pela consciência de que uma companhia faria bem ao seu lado rabugento, e que é um desperdício seu lado atencioso viver sozinho.


terça-feira, 6 de setembro de 2011

Além da Estrada

O longa do diretor Charly Braun (não é nome artístico!) conta com roteiro simples, mas não simplista, e encanta com a beleza das paisagens uruguaias, além da simpatia de muitos personagens que aparecem ao longo da viagem que forma o road-movie. O encontro causal do argentino Santiago (Esteban Feune de Colombi) com a belga Juliette (Jill Mulleady) proporciona uma viagem envolvente, tanto pela estrada com percalços quanto pelo que há além da estrada, metafórica para o curso da vida dos personagens.

Em meio à ficção há depoimentos de moradores locais cuja espontaneidade dificilmente poderia ser encenada, e é mérito do diretor ter inserido esses trechos de forma muito natural na trama, misturando ficção e realidade sem cortes repentinos. Outra ferramenta que contribui para dar naturalidade à história é o enredo abstrato e incerto, assim como o futuro de quem põe o pé na estrada, sem saber muito bem o que virá pela frente.

A meta de Santiago é bastante clara, pois quer conhecer um terreno deixado pelos pais, falecidos, em Rocha. Já Juliette vem da Europa para tentar encontrar um antigo amor, com a esperança de uma vida melhor. A partir daí a estrada – da viagem e da vida – pode até ser bem traçada e planejada, mas conta com inúmeros e inevitáveis cruzamentos, a partir dos quais não se sabe muito bem o que pode acontecer. O que resta é encarar os imprevistos e tirar proveito deles da melhor forma possível.

A história do filme se desenrola à medida que os dois personagens principais se deparam com a necessidade de se desviar do que haviam planejado. É evidente que no cinema vemos personagens agindo sob direção e tomando atitudes que remetem a um roteiro, porém a forma com que o diretor apresenta o filme aproxima muito a ficção e a vida real. Desta forma o que faz os desvios de percurso serem bons ou ruins depende em grande parte da forma com que são encarados e trabalhados. Assim como na vida de qualquer um, pesa nas decisões dos personagens os conselhos de pessoas mais velhas, que tem a vantagem de poder contar com a maturidade, pois se é, felizmente, inevitável sermos surpreendidos por imprevistos, a maturidade nos ajuda a ter discernimento e nos afastar um pouco das piores escolhas – sempre tão atrativas quando queremos agradar.

Como o vínculo do casal de amigos é construído desde o início do filme, com o contato entre os dois sempre aumentando, algumas cenas em que eles estão separados podem soar um pouco estranhas e soltas. O interessante é que as cenas de estranhamento condizem com a denúncia de que o local pacato, hospitaleiro e extremamente atraente aos visitantes já é alvo da especulação imobiliária, com a elevação dos preços dos terrenos e cujo desdobramento, ainda que o filme não fale, é a inevitável descaracterização local. Tão estranho quanto o afastamento do casal, quando o afeto entre os dois é substituído por atitudes muito mais egoístas, é a ideia de descaracterização do vilarejo.

Sem uma grande trama, quase fundamental em filmes mais comerciais, o que nos prende aqui é a expectativa sobre o que haverá para além da estrada de cada personagem e como cada um vai lidar com os imprevistos que os lançam um contra o outro. A expectativa estimulada pelo filme é de que os dois fiquem juntos, pois a cumplicidade e ternura entre os dois, somadas às cenas gravadas com uma super-8, dão a impressão de um relicário de bons momentos. A dúvida é se ambos aproveitarão as boas chances que o acaso lhes proporciona, e essa dúvida nos vem por ser tão comum desperdiçarmos os acasos na vida real.

Lamentar que histórias como a de Santiago e Juliette só acontecem nos cinemas é frequente. De fato não é todo dia que temos a chance de viajar por lindas paisagens no interior do Uruguai, encontrar pessoas agradáveis e desfrutar bons momentos. Porém o filme não traz nada de extremamente cinematográfico, exibindo apenas um recorte do momento em que as estradas dos dois personagens se cruzam. Assim como torcemos para que eles deem uma chance um ao outro, também podemos olhar para além da estrada que seguimos. Por vezes, os atalhos e desvios podem oferecer grandes surpresas.


terça-feira, 23 de agosto de 2011

Diário de uma busca

O cinema latino está repleto de filmes que abordam as ditaduras militares que assolaram o continente na segunda metade do séc. XX. O tema é bastante compreensível, dado a forma com que estes governos assolaram os países, e muito importante para que as gerações seguintes às ditaduras tenham clareza sobre como a população era (mal)tratada, independente de indicadores econômicos. O diferencial do documentário de Flavia Castro é que a diretora não aborda uma grande personalidade ou um grande fato da história do Brasil, mas a história do militante Celso Afonso Gay de Castro, para ela o mais importante. Seu próprio pai.

Dentro desta proposta dificilmente o filme deixaria de ser intimista e a diretora explorou muito bem o recurso de contar a história da própria família. Todo narrado em primeira pessoa, o documentário ganha mesmo traços de um diário, que começa na década de 1960 e percorre os caminhos que o pai, militante de esquerda, foi obrigado a percorrer para fugir da perseguição política do regime opressor contra o qual lutava, até sua morte que, como tantas outras deste período, foi cercada de mistérios e contradições.

O resultado final mostra a trajetória de sua vida entrecortada com o final trágico e misterioso, sendo que um ponto marcante é que não se trata apenas da diretora contando a história de vida de Celso Castro, mas a construção de sua trajetória a partir de lembranças, documentos e entrevistas. Assim o filme não mostra como Flavia Castro se lembra dos fatos narrados, mas como a menina, filha de um casal de militantes, que vivia em reuniões políticas e frequentemente era obrigada a mudar de país, interpretava aquela situação bastante caótica até mesmo para um adulto.

Em meio a tanto material que nos fornece uma visão geral sobre a ditadura militar, encontramos no “Diário de uma busca” uma fonte bastante particular e pessoal, através da qual podemos fazer comparação com o todo e tirar conclusões específicas, não apenas dos efeitos gerais da repressão militar e supressão de direitos do cidadão, mas também as consequências desta situação de extrema tensão, tanto sobre quem dedicou a própria vida por uma causa, quanto para seus familiares e pessoas ao redor, como Sandra Castro e seu irmão Joca, que também participa do filme.

É de uma forma bastante imparcial que a diretora mostra a menina repreendida por chamar o pai pelo nome verdadeiro, ao invés do nome de guerra (seja lá o que isso signifique para uma criança), a ainda menina que acaba exigindo o direito de ao menos compartilhar um segredo com a melhor amiga, a jovem já bastante politizada depois de tantas reuniões partidárias, a moça que chegou a dividir suas angústias com o pai – que por um lado presenciou o fim da ditadura, mas por outro fez parte de uma geração que teve que lidar com uma grande frustração política – até chegarmos ao trabalho da cineasta, que de forma corajosa exibe, sem aparente rancor, o conteúdo de cartas e depoimentos de familiares, para tentar juntar, em uma espécie de quebra-cabeças, com o conteúdo de documentos oficiais e depoimentos de profissionais e quem sabe esclarecer um pouco a morte do pai – cabe chamar a atenção para a entrevista com o filósofo Daniel Bensaïd, pouco antes de sua morte.

É antiga a tentativa dos homens de reconstituir acontecimentos a partir de pequenos indícios encontrados em um local, sobretudo quando há um crime a ser desvendado. Se com o tempo a tecnologia interveio com ferramentas para facilitar o trabalho de peritos, fornecendo bases mais sólidas que as mágicas divagações de personagens literários como Aguste Dupin ou Sherlock Holmes, a força política interveio com a parcialidade e os interesses particulares sobrepostos aos públicos. Não são poucos os casos mal explicados ocorridos durante a ditadura militar, sendo que a insistente manutenção de documentos secretos dificulta, intencionalmente, ainda mais a investigação sobre o que realmente acontecia nos bastidores do poder naquela época.

O caso de Celso Castro é mais um em que as peças não se encaixam nem grosseiramente, pois os testemunhos são por vezes omissos, os laudos contradizem a versão oficial e os depoimentos de familiares e amigos, ainda que não tenham muito valor jurídico, não explicam porque Celso estaria envolvido no suposto assalto que culminou em sua morte. Para tornar o fato ainda mais misterioso, o apartamento no qual se desenvolveu a ação era de um ex-oficial nazista.

É impossível chegar a uma conclusão definitiva sobre um fato ocorrido há tanto tempo, porém com tantos interesses e tantos grupos políticos envolvidos, ou seja, militares, nazistas, militantes e todos interagindo em uma sociedade cujo cenário político era bastante tumultuado e transitório, não seria nenhum absurdo que a corda tenha arrebentado para o lado mais fraco.

O filme lança luz sobre a vida de um militante da época da ditadura, que individualmente pode não ser um ícone da política brasileira, mas assistir ao "Diário de uma busca" suscita algumas reflexões. Além do trabalho de Celso e tantos outros ser heroico, dado a discrepância de forças entre militares e civis, é prudente lembrarmos que os mesmos militares que (des)governaram o país ainda têm muita força política. É uma tarefa histórica e importante do cinema retratar certos períodos, de uma forma que pode se tornar didática aos que não viveram tal período.


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Os famosos e os duendes da morte

My weariness amazes me, I'm branded on my feet,
I have no one to meet
And the ancient empty street's too dead for dreaming.
(Bob Dylan)


Depois de fazer sucesso na internet com o curta “Tapa na Pantera”, o diretor Esmir Filho lançou seu primeiro longa metragem, baseado no livro homônimo, de Ismael Caneppele, que no filme interpreta o misterioso Julian.

Vemos na tela elementos contemporâneos com os personagens que se comunicam pelo MSN e colocam vídeos no Youtube. O protagonista é um jovem conhecido pelo nickname Mr. Tambourine Man (Henrique Larré), que vive em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul e parece não caber dentro dos limites da cidade, ansiando ampliar seus horizontes e ao menos viajar para ver o show de Bob Dylan, famoso autor da música utilizada pelo jovem como nickname.

A internet e as músicas dão um verniz moderno para um tema antigo. Ao menos desde o romantismo vemos jovens lidando com existências aparentemente vazias, não condizendo com a realidade da maioria que os cerca. Características marcantes no período romântico, o suicídio e a morte permeiam o filme do começo ao fim. Para abordar o controverso e refutado tema da morte, tão marcante no romantismo, o diretor optou por uma estética simbolista, com fotografias claras e planos oscilando rapidamente entre sonho e realidade o diretor exibe sequências que dizem muito com poucos diálogos, apenas com imagens que a princípio confundem, mas aos poucos esclarecem tanto a história quanto o emaranhado de sentimentos do protagonista. Há também a metáfora – restrita a o título – utilizando a emblemática figura mitológica dos duendes, que não trabalham para o Papai Noel ou na história da Branca de Neve, mas para a morte, seduzindo e atraindo para ela.

Apesar da melancolia vivida pelo protagonista ser notada há séculos na sociedade, a história do filme traz duas particularidades decorrentes da pequena cidade em que se desenvolve. Primeiro que o suicídio não é um caso pontual e isolado na cidade, mas um problema aparentemente recorrente, já que por motivos diversos alguns moradores decidem saltar de uma ponte rumo ao suposto fim redentor. Além disso, o restante da população é composto por um povo alegre e coeso pelas tradições da colonização alemã, sendo que mesmo os jovens – geralmente contestadores e inovadores – se satisfazem com a rotina quebrada pela tradicional festa junina, mantida mesmo após um suicídio, mostrando o quanto o ato é banalizado no município e o quanto as tradições são mantidas e respeitadas. Ainda que essa alegria seja aparente e oculte angústias e tristezas pessoais, é suficiente para que os indivíduos se sintam incluídos em um grupo social.

A importância de sentir-se incluso em um grupo é claramente exposta por Émile Durkheim, no livro “O suicídio”, onde indica a existência do suicídio egoísta, caracterizado muito bem pelos elementos trabalhados no filme, ou seja, um indivíduo, ou um pequeno grupo deles, não se encaixa no ambiente onde vive, sente deslocado e incompreendido. A partir disso a conclusão que cada um tira da própria existência é variável, podendo perfeitamente caminhar para o sentimento de inutilidade, ou seja, dado à falta de relações que o prendam à sociedade, provocar a própria morte não apenas acabará com o sofrimento pessoal, mas ainda trará pouco impacto entre os demais – raciocínio que de certa forma é até corroborado pela banalidade com que os moradores encaram o fato.

Evidentemente o filme toca a cada um que assiste de forma diferente, ainda que alguns refutem o tema central e tentem reduzi-lo a uma bobagem tétrica, é inevitável a identificação pessoal em ao menos algumas cenas, sendo que muitos devem encontrar grande identificação com o personagem Mr. Tambourine Man. Importante ressaltar que a angústia do jovem, que vive sua vida virtual embalada ao som de Bob Dylan, também tem aspectos positivos, tais quais os poetas românticos que, se por um lado morriam cedo em virtude do spleen que os cercava, por outro deixavam obras admiráveis, extraídas da existência por vezes classificada de vazia, porém cheia o suficiente para gerar bons frutos. A morte prematura é trágica e lamentável, mas a vida morosa, imersa numa predestinação de felicidade sem motivo não é uma opção das mais atraentes.

No filme o protagonista conhece Julian, personagem obscuro e marginalizado, em parte pelo preconceito diante do que é desconhecido, mas talvez haja entre os dois uma cumplicidade de sentimentos suficiente para instigar maior contato, não necessariamente benéfico, porém diante de opções não muito atraentes para a vida, não há escolhas fáceis de serem tomadas, tão pouco caminhos agradáveis de serem seguidos. Provavelmente essa dificuldade é o que torna o filme tão atraente para alguns e entediante para outros – aqueles acostumados a fechar os olhos e aceitar o que for mais fácil.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Solidão e Fé

Mais que um documentário sobre rodeios, o que a diretora Tatiana Lohmann nos apresenta é um olhar feminino sobre um universo predominantemente masculino. Não se trata das mega produções milionárias em que se transformaram as festas de rodeio – ainda que inevitavelmente este seja o cenário de algumas partes do filme –, mas sim da visão bastante particular de uma cineasta que até então não conhecia os bastidores de uma arena e o quanto estes bastidores ainda mantêm da tradição que deu origem aos espetáculos atuais.

A ideia de domar um animal selvagem acompanha a história da humanidade desde seus primórdios e foi esse desejo, ou mesmo necessidade, que aliado à diversão nas horas vagas daqueles que conduziam o gado em longas jornadas, deu origem à festa realizada no meio rural. Aos poucos o entretenimento passou a ser lucrativo, portanto moldado para atrair cada vez mais público – e mais dinheiro. Em meio à modernização, a profissionalização e mesmo a transformação da festa em esporte, perdura a figura do peão de boiadeiro, visto muitas vezes como guerreiro, herói ou mesmo um mito, que enfrenta sua sina em uma arena repleta de espectadores.

Neste universo situado entre a modernidade e o tradicional Tatiana Lohmann opta por narrar seu trabalho em primeira pessoa, expondo claramente suas intenções e o caminho percorrido ao longo das gravações. O resultado desta escolha é extremamente positivo, pois a diretora expõe também os preconceitos que tinha antes de iniciar o trabalho – sem dúvida presentes em muitos que olham a sinopse do filme – e desconstrói pouco a pouco as barreiras que existiam entre a cineasta e o tema retratado. Assim como ela foi seduzida pelos bastidores do rodeio e seus personagens, sua forma de apresentar o trabalho também seduz a quem assiste e desfaz muitos preconceitos.

O primeiro ponto a ser desconstruído é a imagem de maus tratos aos animais, que recentemente passou a ser a grande polêmica em torno dos rodeios. O filme deixa claro que nenhuma injúria aos animais foi presenciada e que a fiscalização sobre o tratamento dos touros é rígida. É claro que as críticas em relação ao evento são muitas e existem diversos argumentos contra sua realização, mas uma das funções de um documentário é exatamente esclarecer alguns pontos relevantes sobre o tema analisado, sendo que nesta obra em particular é coerente a argumentação de que um touro de rodeio é um animal bastante valorizado neste meio, valendo uma pequena fortuna a seu proprietário, de forma que não seria muito inteligente maltratá-lo. Além disso, como já foi mencionado, o sistema capitalista lapidou os rodeios ao seu interesse, de forma que maus tratos significariam lucros menores.

Voltando o foco do documentário sobre a figura do peão de boiadeiro, Tatiana Lohmann torna marcante sua visão feminina sobre os homens que dedicam suas vidas às montarias. O olhar delicado, complementado pela narrativa suave da voz feminina, contrasta com a imagem do homem rústico, quebrando até mesmo a rigidez de cenas repletas de adrenalina, como o peão se preparando sobre o touro antes de entrar na arena. Até mesmo no machismo histórico, enraizado na figura do peão, a diretora encontra brechas como a forte ligação de um dos peões com sua mãe e a devoção de todos à figura feminina da Virgem Maria.

Fica claro com o desenrolar do filme como o estereótipo do indivíduo que ganha a vida de rodeio em rodeio é construído socialmente e é cercado por uma aura que encanta os que se aproximam. No depoimento dos homens mais velhos notamos um machismo latente, que hoje poderia beirar o cômico, não fossem as consequências trágicas que essa forma de preconceito pode acarretar; e é nesse meio bastante fechado e rígido que os peões nascem e crescem, desenvolvendo a personalidade com base nos discursos que acompanham desde pequenos. Aos poucos esse estereótipo vem mudando e os homens mais novos já não são tão radicais em suas falas, ainda que os resquícios do machismo ainda estejam presentes. Esta mudança também remete ao espetáculo que rompeu as fronteiras da área rural e agora deve servir às grandes massas. Aquela figura retratada pelos velhos homens de rodeio já não venderia tanto.

Aos poucos a figura do peão adaptou-se, mas não perdeu o encanto sobre o rodeio. É este encanto que aos poucos deixa a diretora do filme cada vez mais compenetrada em seu trabalho, trazendo consigo quem assiste ao filme e passa a compreender um pouco mais aqueles homens solitários – tanto na vida errante quanto nos segundos de eternidade sobre o touro –, devotos e que inconscientemente resgatam a figura do herói. Apesar do filme não ter a intenção de abordar aspectos econômicos dos rodeios, é evidente a disparidade da distribuição do lucro dos eventos, já que as arenas lotadas, que ostentam dezenas de logotipos e investem alto na caracterização do espetáculo contrastam com as casas simples daqueles que arriscam suas vidas – com total consciência e desejo – para levar entretenimento ao público. Ganhar um carro ou uma moto pode ser muito para os rapazes de vida simples que chegam ao estrelato relâmpago, mas não chega a fazer grande diferença no lucro que os rodeios promovem às empresas. Parece que o que move os peões é muito mais a paixão que o dinheiro.

Uma frase muito marcante de Tatiana Lohmann estampa os cartazes do filme: “Tem aspectos num homem que uma mulher não entende, só contempla.” A recíproca é verdadeira, pois a delicadeza extraída de um universo tradicionalmente rústico tem a marca feminina que ultrapassa nosso entendimento. Melhor mesmo é contemplar.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O senhor das moscas (Lord of the flies)

Adaptado do romance homônimo, escrito por William Golding, a obra do diretor Harry Hook mantém o valor pedagógico de análise social. Após a queda de um avião militar no meio do oceano um grupo de jovens cadetes sobrevive e consegue chegar até uma ilha, sem a presença de adultos, salvo um militar gravemente ferido e impossibilitado de coordenar as crianças.

O início do filme mostra um pouco das características que os meninos já tinham antes de chegar à ilha. Como nos indica o casal de sociólogos Peter e Brigitte Berger, as instituições começam a agir sobre o indivíduo muito cedo e no filme fica clara a presença da educação militar recebida pelos garotos, com hierarquias e respeito pelas patentes, a prática de bullying – principalmente ao Piggy (Danuel Pipoly), que deixa claro sempre ter sido tratado daquela forma – e a impressão que os meninos têm do exército.

Como já indicava Émile Durkheim, o indivíduo é moldado pela sociedade, portanto cada um reagirá de acordo com a forma que foi socializado. É notável no filme como as crianças repudiam a educação militar quando cantam uma música que refuta as práticas militares e quando temem que o militar ferido se recupere, de forma que sugerem tratar o adulto com rigidez, assim como eram tratados. Ainda de acordo com Durkheim, há uma separação do ser individual e do ser social, sendo a educação proveniente de diversas instituições (inclusive do estado, formando indivíduos também voltados à sociedade), assim podemos compreender melhor um ponto fundamental do filme.

Dado que o processo de socialização começa muito cedo, e age continuamente sobre os indivíduos, vemos no filme indicações de práticas sociais presentes em todas as sociedades, como as histórias contadas em roda como uma forma de transmissão de conhecimento, jogos e brincadeiras auxiliando no aprendizado, ou rituais de pintura do corpo e utilização de adereços corporais para diferenciação do grupo. Aos poucos notamos também a presença de elementos individuais, como a preocupação de Ralph (Balthazar Getty) com os demais – por vezes impondo rigidez ao comportamento dos outros –; já Piggy é extremamente centrado, mais humano e racional, que provavelmente são características da educação familiar, e o garoto não rompe com as instituições que lhe foram apresentadas na infância, pois quer até construir um relógio (objeto que não tira do pulso); Jack (Chris Furrh) simboliza muitos daqueles que querem se divertir, sem tanto compromisso com os deveres, empurrando os mesmos até que a situação torne-se insustentável.

Passada a euforia da anomia os garotos concordaram que precisavam de regras, mas, como em toda a história da humanidade, é difícil – se não impossível – um consenso sobre as leis, de forma que a fratria foi inevitável entre as crianças. Os dois grupos chegam a lembrar Esparta e Atenas, pois os liderados por Rlph eram baseados na Razão, defendiam a assembleia e buscavam consenso para o bem comum, semelhante a Atenas. Já os liderados por Jack eram baseados na caça e treinavam como guerreiros, impunham a lei através do medo ou compravam apoio com a carne caçada. Esta prática de oferecer benefícios aos derrotados lembra a forma imperialista de dominação oferecendo o produto final e omitindo os meio através dos quais os bens foram obtidos.

O grupo de Jack reflete a síntese entre a educação obtida no colégio militar, impondo a força e dominando o inimigo, e a instituição familiar, que é comprovado quando um dos garotos conta que o líder foi para o colégio militar por ter roubado um carro. Já o grupo de Ralph também tem características militares como a disciplina e a obediência frente uma hierarquia, porém quando a maioria é seduzida pela força do outro grupo sobram os que aparentam ter uma referência familiar mais forte e coesa, como notamos em Simon (James Badge Dale), que demonstra afeto arrumando um animal de estimação – diferente dos caçadores que buscam suas presas.

Muitos comportamentos das crianças são condizentes com suas idades, afinal eles brincam, jogam, brigam e por vezes cedem à pressão do que estão vivendo. A cena em que o óculos de Piggy é quebrado deixa claro o quanto o diretor quis explicitar a infância, pois o garoto chora copiosamente e baba feito uma criança de colo. Outro comportamento da infância é a necessidade de transgredir o direito do outro. Assim, quando uma criança quer um brinquedo que não lhe pertence, a tendência é que ela use a força, até que algum adulto intervenha para sua socialização. Na ilha, como não há instituições que reprovem o uso da força, é válido a vontade amparada pelo poder da força.

Os líderes dos grupos são os dois mais velhos, entrando na puberdade, ou seja, pela socialização que tiveram até então essa é a idade em que os meninos têm a necessidade de dominar o meio em que vivem e se impor diante dos demais. Esse comportamento foi encarado como natural do ser humano, até que os estudos da antropóloga Margaret Mead mostraram que em algumas tribos os homens não exercem dominação sequer na adolescência e as mulheres podem dominar a tribo. O desdobramento do filme é uma hipótese plausível. Mesmo sem revelar detalhes, é possível ressaltar aqui um mesmo fato executado de três maneiras diferente, acidental, praticado na emoção de uma ação social e uma atitude extrema da falta de mecanismos de socialização.

É um filme muito bom para ser trabalhado em escolas, inspirando debates e elucidando a importância da socialização, talvez na contramão da individualização da sociedade. Aos que gostam, há um episódio dos Simpsons inspirado no filme, evidentemente que com muito humor e bem distante da tensão de muitas partes da obra original. O episódio é intitulado “O ônibus” e foi exibido na nona temporada.


sexta-feira, 22 de julho de 2011

Quarta B

Este filme do diretor Marcelo Galvão foi lançado em 2005 e continua extremamente atual e relevante, principalmente com as recentes manifestações pela descriminação da maconha apoiada por muitos intelectuais e artistas. O filme não é panfletário, muito menos visa fazer uma análise séria sobre o tema, mas sim lançar um olhar bem humorado através de estereótipos muito bem articulados.

Um argumento muito utilizado pelos que defendem a descriminação é o livre arbítrio e a autonomia do indivíduo para decidir se quer ou não consumir drogas, mas quando um tijolo de maconha é encontrado em uma sala da quarta série, a solução não pode ser deixada na mão dos supostos usuários mirins, portanto uma reunião com os pais em pleno domingo chuvoso foi marcada, para que todos encontrassem em conjunto alguma solução satisfatória.

Em pouco tempo de reunião fica claro que a questão das drogas ainda é tratada com muito preconceito, hipocrisia e até mesmo ignorância em relação ao tema, de forma que se em uma pequena sala de aula um grupo de menos de vinte pessoas esbarra na criação desnecessária de impasses, uma solução nacional para as drogas é incomparavelmente mais complexa e deve ser acompanhada de muito debate e esclarecimento, ao invés da implícita lei do silêncio que a sociedade tenta impor desde o início do séc. XX.

Ao serem informados do motivo da reunião a primeira reação de todos, como era de se esperar, foi a negação do envolvimento do próprio filho. Essa reação é natural por vários motivos, alguns poucos podem realmente ter essa certeza baseada em motivos reais, porém a maioria afirmaria o mesmo graças à devoção dos pais aos filhos, cujo excesso pode facilmente atrapalhar a relação familiar, fechando os olhos dos responsáveis para as reais demandas dos filhos, não apenas em relação às drogas, mas a quaisquer outras demandas que as crianças possam ter. Além disso, não é difícil imaginar que em uma situação como a do filme, qualquer um que assumisse a participação do filho no incidente seria crucificado ou incinerado em praça pública, como toda sociedade que mantém fortes raízes moralistas insiste em agir.

Em uma sequência infelizmente realista, após a negação geral de quem seria o dono na maconha encontrada, era necessário encontrar um culpado, já que a culpa é outra característica antiga e extremamente enraizada na sociedade. Como é inadmissível um problema que não tenha culpados, sendo ainda muito mais confortável culpar quem estiver por perto, conseguindo a isenção da responsabilidade, são usados os argumentos mais preconceituosos por parte dos pais na tentativa de encerrar o problema, como se a existência de um bode-expiatório permitisse que todos voltassem para suas obrigações e deixassem a educação dos filhos a cargo da escola, sem que isso tome grande parte do tempo dos pais.

Apesar da trama do filme girar em torno da maconha encontrada na classe, cabe notarmos como a educação dos filhos pode ser precária quando deixada nas mãos de pais que não são capazes de entrar em um acordo, preferindo ratificar preconceitos, como se estes fossem suficientes para que a criança desenvolvesse um bom caráter. Parece que o imediatismo da sociedade moderna, que exige resultados instantâneos e faz com que cada dia seja pautado pelo atraso, reflete na forma com que os problemas são encarados. Desta forma a educação dos filhos também tende a ser encarada como aspectos pontuais, ao invés do esclarecimento geral que terá como consequência o discernimento da criança sobre como agir em determinadas situações imprevistas, ou seja, se as drogas chegam à sala de aula, o mais fácil seria encontrar um único culpado e puni-lo exemplarmente, ao invés de conversar com as crianças sobre o tema, de forma clara e elucidativa, ao invés de carregada de preconceito e equívoco.

Como desfazer eventuais equívocos sobre o tema? A proposta do filme é uma das mais inusitadas, que rende cenas muito engraçadas: fumar a maconha na reunião para ver quais os reais efeitos do consumo. Claro que nem todos concordam imediatamente com a proposta, mas o principal é que os efeitos da droga fazem com que os pais revelem as próprias fraquezas e inseguranças. Depois das risadas que o filme proporciona, não é difícil perceber o porquê de tanto autoritarismo e certezas (ainda que para ratificar atitudes patéticas). A postura apenas reflete a insegurança que cada um carrega dentro de si, e se esforça para esconder, até que se sinta relaxado a ponto de expor as próprias fraquezas. Alguns podem até achar que o resultado é ruim, afinal conflitos particulares não devem vir a público, mas ao menos diante de atitudes absurdas, tais conflitos podem ser esclarecedores.

De forma descompromissada, Marcelo Galvão apresenta vários desfechos para a trama. Mostra a diversidade de possibilidades para o desfecho de um tema tão controverso, o que pode ser visto como alternativas para um problema que muitos ainda insistem em olhar como encerrado, desde que reduzido à repressão e proibição. Independente de qual a opinião individual sobre as drogas, a repressão pura e simples não tem surtido efeito. Talvez o esclarecimento seja mais útil, melhorando não apenas a relação das pessoas com as drogas, mas também com outros preconceitos.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Chuva (Lluvia)

Acho que a chuva ajuda a gente a se ver.
(Caetano Veloso)


Este longa da diretora argentina Paula Hernández tem enredo bastante simples e conta com basicamente dois personagens interagindo ao longo do filme. Apesar da simplicidade, o trabalho proporciona grandes reflexões, evidenciando de forma bastante curiosa a relação, tanto do indivíduo com a cidade onde habita, quanto deste com outras pessoas.

Em meio a uma tempestade que deixa Buenos Aires com o trânsito bastante familiar aos paulistas, Alma (Valeria Bertuccelli) dá de cara com um desconhecido que entra em seu carro, fugindo misteriosamente de uma multidão enfurecida. Aos poucos ela descobre que o desconhecido é Roberto (Ernesto Alterio) e quem assiste descobre que, apesar da fuga inusitada, ele não é muito mais misterioso que Alma, que carrega sempre um porta-malas cheio com seus pertences e parece morar em seu carro.

Não demora a descobrirmos que Alma abandonou o marido e agora está sozinha. Mesmo em uma grande cidade como Buenos Aires a personagem, além de não encontrar um lugar para viver, tem que lidar com o sentimento de solidão e desamparo, capaz de fazer com que até o desconhecido Roberto ganhe status de grande amigo, apenas para ter com quem interagir. O mais curioso é que essa parece ser uma opção de Alma, já que ela conversa com a mãe pelo telefone e reencontra com amigos em uma festa, mas parece realmente desejar abandonar seu passado, ao menos enquanto a tempestade de sua vida, em conjunto com a chuva que não cessa ao longo do filme, não passa. Nem mesmo os telefonemas do marido, abandonado sem maiores esclarecimentos, são atendidos.

A princípio Roberto veio da Espanha para resolver alguns problemas de família, passando a lembrar da conflituosa relação com o pai. Não é por acaso que o objeto que marca a relação com o pai, e até acaba ajudando no encontro com Alma, é um piano, ou seja, algo que pode produzir belas melodias, sendo ao mesmo tempo pesado, trabalhoso e difícil de carregar. Durante a viagem ocorre o inesperado encontro. Se uma grande cidade tem a capacidade de isolar pessoas, mesmo abrigando tanta gente que convive diariamente, ainda que por obrigação, esta mesma grande cidade também proporciona encontros únicos, como o que vemos no filme, e infelizmente costumam não ser tão bem aproveitados quando ocorrem na vida real. Na ficção, Alma e Roberto, depois de certa resistência natural, começam a expor suas vidas e em pouco tempo a amizade entre os dois proporciona para ambos uma espécie de análise, na qual falando dos próprios problemas os personagens começam a perceber os próprios defeitos e a encontrar soluções satisfatórias.

Para a protagonista o novo amigo é a possibilidade de uma alavanca para retirá-la de um estado quase letárgico – resta saber se ela aproveitará isso. Ambos não são mais dois adolescentes com tantas certezas erráticas sobre a vida, de forma que podem perfeitamente tirar proveito da nova amizade, sem tornarem-se dependentes ou mesmo prejudicar um ao outro. Pode não ser tarefa das mais fáceis, mas sem dúvida a experiência de vida pode auxiliar muito, desde que as pessoas envolvidas tenham vivido dispostas a aprenderem com o tempo.

Roberto tem um papel que a princípio pode parecer mais fácil, pois em breve retornará ao seu país e reencontrará sua família, diferente de Alma que deve reestruturar toda sua vida, porém a gentileza do personagem, notada desde o início, e a forte identificação que tem com a moça podem gerar grandes dilemas a serem superados. Ou seja, é necessária uma síntese entre os benefícios que a nova amizade lhe trouxe, ajudando a esclarecer melhor seus próprios problemas e sentimentos, e os novos problemas que podem surgir.

Através de problemas bem comuns fora das telas, vemos atitudes plausíveis dos personagens, que têm o mérito de aceitar muito bem os encontros casuais que uma metrópole proporciona. Novos contatos nos proporcionam novas experiências e uma troca de conhecimentos que permite maior crescimento dos indivíduos. Impasses são naturais, se não buscarmos nenhum, eles nos encontrarão; mas experiência e conhecimento para lidar com os problemas e com as dúvidas da melhor maneira possível dependem muito da disposição que temos para obtê-los. Se por um lado a chuva incomoda e torna os dias cinzas, por outro lava e renova.

Mais uma boa produção argentina, que não ganhou grande destaque nas telas brasileiras. Produções conjuntas entre os dois países seriam muito bem vindas.


terça-feira, 28 de junho de 2011

Poesia (Shi)

Poesia pode até ser interpretado como a forma da protagonista Mija (Yun Jeong-hie) encarar a vida, cheia de percalços. Pode indicar uma certa função da arte, de auxiliar a descrever as experiências que vivemos, para assim ordenar nossos pensamentos e facilitar resolução dos problemas, mas o que mais chama a atenção no longa do coreano Lee Chang-dong é o machismo, que atinge a protagonista pelas três gerações de homens com quem ela deve conviver.

A protagonista é uma senhora que cuida de um velho homem rico, com sequelas de um AVC, e vive com o neto adolescente, que junto com um grupo de amigos estupra uma jovem na escola, provocando o suicídio da mesma e fazendo com que os pais dos agressores tentem comprar o silêncio da família da vítima. A reação patética dos pais mostra outra trama interessante do filme, a conhecida tradição oriental sendo substituída pelas leis vorazes do mercado, onde o dinheiro supostamente poderia comprar qualquer coisa, até mesmo a família pobre da menina violentada.

Em meio as dificuldades da vida Mija começa a frequentar aulas de poesia, buscando nas belezas do mundo a inspiração para o poema, que teima em não vir. Contempla a natureza, tenta praticar esportes, busca nos cinco sentidos palavras que se encaixem para formar seus versos, mas não consegue fazer seu poema. Apesar do otimismo e esforço da personagem, o que vem ao seu encontro é bem menos poético.

Em casa o neto é mais um adolescente que vive na letargia entre a televisão e o videogame e, ainda que a idade do jovem seja conhecida pelo desinteresse e afastamento, nunca é demais lembrar que o comportamento é formado ao longo de toda a infância, de forma que mesmo com a intempestividade própria da idade, todo adolescente age dentro de um campo de possibilidades, composto pelas experiências e valores adquiridos. Assim, a forma com que a avó é tratada parece típica e inquestionável de alguém acostumado a tirar vantagens de uma estrutura social machista, que pode culminar no estupro de uma amiga da escola.

No emprego Mija deve lidar com as grosserias de um homem na mesma faixa etária que ela, obtendo assim o próprio sustento e também o do neto. Seria compreensível a irritação de alguém que no fim da vida sofre com a debilidade de movimentos e talvez por isso acabe perdendo a paciência diante de situações corriqueiras, que de repente tornam-se grandes obstáculos, como tomar banho ou alimentar-se. Mas as reações do velho homem extrapolam a condição de vítima de um AVC e passam a explorar tanto a condição econômica, de quem paga uma pessoa e acredita que por isso pode fazer o que quiser, quanto a relação entre gêneros, ao utilizar um estimulante sexual para ‘ser um homem’ sem se importar com o que sua empregada acha disso. A imposição de poder, sexual e econômico, não se extingue sequer diante dos problemas de saúde, ainda que a protagonista tente driblar essa situação.

Entre as duas gerações retratadas vemos os pais dos garotos que violentaram a jovem na escola. A vergonha nas culturas orientais é um sentimento muito forte, podendo levar até mesmo ao suicídio como indicado no próprio filme, através da menina que, como é comum na cultura machista, se sente culpada pela violência que sofre. Os pais em questão também sofrem vergonha pela atitude dos filhos, que sem dúvida pode prejudicar o futuro dos mesmos, mas o poder econômico se associa bem ao machismo para superar o irreparável e a proposta, já que a família da jovem é pobre, é comprar seu silêncio. É assim que Mija é pressionada para conseguir pagar sua parte da dívida, com a qual não concorda, mas não tem outra opção.

Através das três gerações vemos o machismo perpetuado, em contraposição à protagonista que busca a beleza da vida. Da mesma forma o conteúdo pesado do enredo é quebrado pela suavidade das imagens e pela figura terna da senhora sempre bem vestida e de paciência quase ilimitada. Mija parece ter aprendido na prática que o passado não deve ser esquecido para que os erros não voltem a acontecer, assim, mesmo com o mal de Alzheimer recém diagnosticado, ela é a única a tentar manter viva a memória da vítima de seu neto.

O que a velha senhora ainda pode aprender é que a beleza de um poema não depende da beleza de sua inspiração, de forma que lindas obras têm frequentemente origem em fatos terríveis, indo além de uma simples descrição do que é belo e atingindo o caráter de idealização diante das tristes atitudes humanas. Sem querer adiantar o final do filme, vale a pena chamar a atenção para a forte presença feminina nas últimas cenas, quem sabe com o ideal de encerrar tantas atitudes vergonhosas dos personagens masculinos, tristemente tão reais.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Estrada Real da Cachaça

Cachaça, peço o favor que não me aborreça.
Desça para a barriga, mas não suba para a cabeça.


O road-movie de Pedro Urano percorre o interior do Brasil, principalmente de Minas Gerais, para contar algumas histórias e mostrar como a cachaça se tornou a bebida típica do país, marcando presença ao longo de todos os ciclos econômicos desde o descobrimento, com produção rudimentar, até hoje, com algumas marcas valiosas.

Tendo sua origem e predileção entre os populares, a bebida sempre teve a fama de estar à margem da sociedade, com uma imagem até pejorativa, mas como podemos ver no documentário, seu consumo vai além de alcoólatras incorrigíveis e sua história pode ajudar a compreender até mesmo a estrutura de poder da sociedade brasileira, tanto pelas classes que mais a consomem, quando pelas que mais a marginalizam.

Muito barata e acessível, a bebida forte sempre serviu de combustível para trabalhadores explorados, sendo bastante eficiente nesse sentido. Os escravos utilizaram seus benefícios no ciclo da cana e na mineração, após a abolição da escravatura os trabalhadores semi-escravos continuaram a consumir a cachaça para espantar o frio das manhãs, as dores – do corpo e da alma –, o cansaço e, talvez principalmente, o desânimo da vida explorada que se resume na rotina de ir diariamente da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Serve também de companhia para os viajantes, que precisam passar longos períodos longe de casa e da família. Um trabalhador que bebe cotidianamente nunca foi bem visto pela sociedade, e de fato o consumo excessivo da bebida tem efeitos devastadores, mas a marginalização do consumo não tem base na preocupação com o indivíduo e sim com sua força de trabalho, que irá baixar quando estiver alcoolizado, reduzindo assim o lucro do empregador que o explora. Desta forma é mais barato denegrir a imagem daqueles que consomem a cachaça do que evitar os motivos que levam os trabalhadores ao alcoolismo.

Como qualquer produto que cria raízes na cultura de uma sociedade, a cachaça não tem apenas seu aspecto prático, tendo se espalhado pelos hábitos de seus consumidores, o que também gerou preconceito de muitos. A igreja católica, que desde seu surgimento não mede esforços para barrar qualquer outra crença religiosa, sempre se empenhou em suprimir o Candomblé trazido pelos escravos utilizando técnicas bem distantes de seus próprios dogmas. De agressões aos adeptos às associações mentirosas dos elementos sagrados do Candomblé com o demônio dos católicos, a igreja viu na cachaça – utilizada em alguns rituais da religião africana – uma forma de tentar desmoralizar o culto aos Orixás. O curioso é que a miscigenação que ocorre em praticamente todos os sentidos na sociedade brasileira se estendeu às religiões, sendo que ao invés de enfraquecer o Candomblé, o catolicismo agora tem que aceitar alguns de seus adeptos utilizando a temida bebida em alguns ritos. O filme não tem a intenção de entrar em qualquer polêmica religiosa, ou mesmo de criticar a igreja, mas evidentemente não é muito coerente criticar o uso da cachaça enquanto se associa o vinho ao sangue de um profeta – isso sim, só é tolerável depois de consumir muito álcool.

O humor está presente em várias partes do filme, o que é quase inevitável diante da forma com que a bebida é conhecida, associada à descontração e ao modo descomprometido de viver. As sequências que deixam mais evidente o lado cômico são as que trazem as pessoas mais simples apresentando versos antes de virarem suas doses, o que contribui também para compreender como essas pessoas veem o produto. É possível notar que existe plena consciência de que a bebida é prejudicial e que pode aprisionar quem abusa de seu consumo, porém diante das situações apresentadas, ou seja, o consumo em botecos de pequenas vilas ou propriedades rurais, podemos questionar qual a alternativa oferecida em troca do alcoolismo, já que aos que bebem moderadamente, mantendo o controle frente à bebida, são oferecidas condições de vida bem semelhantes aos alcoólatras, que sempre são discriminados, mas raramente tratados e muitas vezes preferem abrir mão da saúde para não ter que encarar “a seco” a dura realidade.

O diretor perde um pouco o ritmo ao dar muita ênfase à forma como os mineradores trabalham atualmente, extraindo e vendendo suas pedras, pois apesar do tema estar relacionado com o cerne do documentário, visto que o trabalho pesado dos mineradores é muito seduzível pelos prazeres da cachaça, a sequência acabou fora de contexto, no entanto isso não compromete a qualidade do longa, sendo que as imagens envelhecidas em preto e branco, para resgatas a origem antiga das tais estradas reais, surpreendem positivamente, chamando mais a atenção do que os pontos negativos.

O filme é uma viagem muito prazerosa pela história da bebida que, apesar de sempre à margem, acompanha a história do Brasil bem de perto. Uma ótima opção, tanto para divertimento quanto para informação.


quinta-feira, 2 de junho de 2011

Estamos Juntos

Neste longa o diretor Toni Venturi costura diversas faces de uma grande cidade como São Paulo, mostrando a diversidade, que pode convergir para o isolamento das pessoas, expresso sob diversas formas. O paradoxo de Estamos Juntos é que a tal união que o título sugere vem pela solidão dos personagens de diversas ramificações do enredo.

A trama principal é de Carmem (Leandra Leal), jovem com futuro promissor, que vem do interior para estudar medicina em São Paulo. Além de ser residente em um hospital público ela presta serviços de orientação em um prédio ocupado no centro de São Paulo. Quem vem à capital buscando livrar-se das amarras das pequenas cidades acredita chegar vacinado contra os problemas que encontrará, e de fato algumas adversidades não são difíceis de driblar, mas é a partir do diagnóstico de um tumor que a vida de Carmem se mostra mais frágil do que ela mesma esperava. Vale ressaltar que as reações da personagem foram muito bem dosadas por Venturi, passando toda a angústia necessária, mas sem transformar o fato em um dramalhão de novela.

Como se não bastasse todos os problemas repentinos, Carmem ainda tem que suportar o peso da responsabilidade alheia, tanto do músico argentino Juan (Nazareno Casero), cujos galanteios desajeitados e o sotaque castelhano proporcionam os momentos mais engraçados do filme, quanto do amigo Murilo (Cauã Reymond), homossexual que sonhava em conquistar Juan, antes de seu affair com Carmem. Os três mostram a fragilidade das relações de amor e amizade, formando um triângulo solitário graças ao comportamento extremamente egoísta de negar a personalidade do outro, adotando a postura egocêntrica de atribuir às pessoas próximas o próprio fracasso. Posto desta forma pode parecer, e de fato é, um comportamento absurdo, porém bastante comum fora das telas. Novo mérito a ser ressaltado é a força da personagem de Carmem, pois mesmo sendo a que mais tem motivos pessoais para explodir e disparar contra todos que estão a sua volta, ela é a única a manter a sensatez, suportando calada e compreensiva muitos absurdos. É ela quem mostra a força real diante da fraqueza que os homens insistem em tentar, sem sucesso, esconder. Talvez por isso Juan vai minguando aos poucos até sumir da trama.

Longe da família e sem o apoio dos amigos (com exceção do enigmático amigo sem nome vivido por Lee Taylor), Carmem tenta uma espécie de fuga da dura realidade pela qual passa se entregando ao trabalho no hospital, onde é possível notar em cada personagem um pouco da referida solidão, que, ao meu modo de ver, indica que estão mesmo todos juntos, no mesmo barco – quase um “barco dos loucos”, sem rumo, de Hieronymus Bosch. A princípio parece justo que a personagem mantenha uma ocupação que lhe distraia, porém não é mesmo sensato que alguém em situação tão delicada – tanto física quanto psicologicamente – exerça a medicina.

Resta a Carmem o trabalho no edifício ocupado, onde a jovem enfrenta um grande choque de realidades. A mesma imposição de valores percebida entre Juan e Murilo é vista aqui, apenas com enfoques diferentes. Talvez a trama do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) pareça um pouco deslocada do desenrolar do filme, mas remete a outro longa de Toni Venturi, “Dia de Festa”, que aborda diretamente a questão da ocupação de edifícios vazios e sem função social. A princípio os militantes do edifício ocupado dão uma lição de vida ao driblar os problemas da classe média, retratada pelos médicos e músicos, resta saber até que ponto resistirão antes da tal solidão mostrar as garras.

Sem adiantar o desfecho da trama, é possível dizer que a diversidade dos personagens faz com que seja difícil a quem assiste não se identificar ao menos um pouco com a trama, ainda que as dificuldades de Carmem pareçam intermináveis. Ao menos a solidão que uma cidade tão grande tem a oferecer é bem real, uma das funções históricas do cinema é a de alertar, com suas metáforas, para que possamos aprender com os erros fictícios e evitar, ao menos um pouco, os problemas reais.


sexta-feira, 27 de maio de 2011

Quanto vale ou é por quilo?

O diretor Sergio Bianchi tomou o conto “pai contra mãe”, de Machado de Assis, como ponto de partida para seu filme. A obra original gira em torno de uma escrava fugitiva que é capturada por um capitão-do-mato (negros que, para salvar a própria pele, trabalhavam para os senhores evitando fugas). A partir disso o roteiro desenvolve mais que um filme de época, pois faz um paralelo entre a escravidão institucionalizada, descrita por Machado, e a atual condição da população explorada no Brasil – em sua maioria formada por negros.

Do ponto de vista da literatura, podemos ver o quanto a obra do escritor infelizmente permanece atual. É possível identificar o poder atuando de forma capilar e onipresente, conforme foi muito bem teorizado por Michel Foucault em “Vigiar e punir”; a parcialidade no cumprimento das leis em favor dos mais ricos; e as origens do ranço asqueroso do racismo, que permeia nossa sociedade e atua diariamente, variando apenas sua intensidade.

Hoje, fora das telas de cinema e das páginas dos livros, conforme ações que visam à equidade social sofrem com o ataque retrógrado dos que defendem direitos supostamente iguais – alegando que cotas, leis e incentivos raciais e sociais iriam ferir o a premissa da igualdade – seus defensores costumam alegar uma dívida histórica contra a população negra e indígena, porém este é o grande equívoco, já que não há dívida histórica nenhuma. Só poderíamos alegar dívida histórica se seu conteúdo estivesse relegado aos tempos de escravidão legalizada, porém o preconceito que impede a camada mais pobre – não necessariamente negros – de ascender economicamente é extremamente atuante e está tão enraizado na sociedade que seus efeitos tendem a ser atenuados até por quem o sente na pele. Este é um dos grandes destaques de Quanto vale ou é por quilo?.

Ninguém nega a barbárie de um sistema equivalente a um holocausto de quatro séculos, mas assumir simplesmente deixaria brechas para que os subjugados reivindicassem direitos verdadeiramente iguais, a partir daí moldam-se os argumentos das formas mais tragicômicas possíveis, como alegar que os próprios negros africanos escravizavam tribos rivais, o que tiraria a barbárie das mãos dos exploradores, não fosse o fato dessa escravização não ter sido espontânea, mas forçada sob a ameaça de extermínio caso a captura não fosse feita pela tribo em questão. Desconsiderando ainda que uma pessoa utilizar escravos, ainda que não tenha capturado o indivíduo em sua terra natal, não diminui a responsabilidade de quem escraviza.

Um recurso do cinema muito bem explorado é a construção da imagem, para destacar o que nossa memória heterodirigida tende a atenuar. Quando queremos suavizar alguma lembrança ou fato, o cérebro irá inconscientemente construir uma imagem mais tênue, ou seja, imaginam-se negros presos, acorrentados pelos pescoços ou atados a troncos, mas para tentar diminuir o terror de uma atitude tão vil não imaginamos o desespero causado pela privação dos movimentos, o sangue que escorria das feridas causadas pelas pesadas peças de ferro e outros detalhes, ressaltados no filme quando a trama se desenvolve no século XIX.

Transpondo o enredo aos dias atuais as cenas são menos agressivas, afinal a violência que atua sobre a população oprimida hoje é mais simbólica, ainda que não menos nociva. O sentimento falso de superioridade continua fornecendo base para abusos, com a diferença que hoje é necessário encontrar brechas na lei – nada muito difícil, visto que estas são formuladas pelos opressores.

O desvio de verbas de doações, como apresentado no filme, permite que empresas enriqueçam às custas do governo, ou seja, dos impostos pagos pela população, e ainda agreguem valor à sua marca com suposta responsabilidade social. O poder exercido pelos mais poderosos, que se aproveitam do conhecimento negado aos explorados, permite a utilização de “laranjas” para golpes que sequer são notados pelos donos das contas. A comparação direta da condição atual de negros com o período legalmente escravista. Esses e outros exemplos do filme culminam na reação extrema, que é praticamente a única, pois se a única alternativa a política é a guerra, a alternativa a uma política igualitária entre classes, sempre negada pelos poderosos, é a violência direta, que é condenável, mas bastante compreensível.

Quanto vale ou é por quilo? mostra que a exploração continua manchando nossa sociedade, que quando muito aboliu a legalidade dos castigos físicos arbitrários, desta forma não é por acaso que a violência – tanto entre classes distintas, quanto entre as classes mais baixas, que precisam salvar a própria pele – continua desenfreada. A simples repressão às classes mais baixas vem sendo aplicada há séculos sem sucesso, talvez a equidade social seja uma alternativa que vale a pena testar.


quarta-feira, 18 de maio de 2011

Viajo porque preciso, volto porque te amo

Neste longa o cearense Karin Aïnouz grava seu road-movie por estradas do nordeste. Talvez um dos motivos do filme ter tido grande repercussão nos festivais internacionais foi o cenário pouco convencional, pois os caminhos percorridos não passam por pontos turísticos ou pelas paisagens deslumbrantes que a região possui, mas pela terra seca, árida e esquecida, por onde espalham-se pequenos vilarejos cujas carências são ilimitadas e os estrangeiros pouco conhecem.

No Brasil o filme também teve grande sucesso, mas também foram muitas as críticas repetitivas sobre a temática supostamente esgotada das mazelas do nordeste. Tais críticas são infundadas, não só pela temática do filme ser diversificada ao invés de restrita aos problemas, mas também pelo fato de que nenhuma denúncia em relação ao descaso com a população local surtiu efeito. É possível afirmar que em se tratando de problemas sociais, o tema só está saturado após a resolução definitiva do problema.

A característica fundamental que o torna bastante particular entre as obras de estilo road-movie é a ausência de personagens, pois até mesmo o protagonista restringe-se a narrativa de José Renato (Irandhir Santos) que apresenta sua viagem de um mês a trabalho, geralmente em tom de relato para sua “galega”. Retomando a tradição da literatura modernista de guiar a obra através de um funcionário público, o geólogo fornece alguns aspectos técnicos do seu trabalho, que visa a análise do solo para a construção de um canal hidrográfico, e apesar de não citar nominalmente, a referência é a transposição do rio São Francisco. Pensando na relação entre estado e população, é curioso ver a disparidade entre o poder das classes mais altas, que em uma cidade como São Paulo têm o poder de influenciar os locais onde devem ou não ser construídas estações de metrô, e a impotência de cidadãos em condições sub-humanas, que são enxotados de uma situação já precária para que a terra em que vivem seja inundada em nome de um suposto progresso, que, conforme a história nos indica, beneficiará apenas grandes fazendeiros.

O cenário encontrado por José Renato é degradado e os moradores retratados vivem em meio ao nada. É possível que a construção de um canal conforme o sugerido traga algum benefício ao local, afinal não é difícil beneficiar uma população tão sofrida, porém as demandas por escolas, hospitais, lazer, ou seja, atenção e cidadania são latentes e não podem esperar até que uma obra faraônica seja concluída para, talvez, serem sanadas. É evidente que uma população sem opções de cultura buscará alternativas ao invés de conformar-se com o descaso, e as opções costumam restringir-se ao bar, à prostituição na beira da estrada com profissionais degradadas e, para finalmente ter um pouco de arte, ao velho circo que se esforça para seguir com as apresentações. A passividade diante dos problemas é indicada quando o personagem começa a elaborar uma crítica, mas rapidamente conclui dizendo que não está lá para isso e sim para a conclusão do relatório sobre o solo.

Outro viés do filme faz referência à segunda parte do título, pois ao viajar pela necessidade do trabalho o protagonista conta, desde o início, os dias e as horas para rever sua amada. O que surpreende, e desencanta os mais românticos, é que apesar do título bastante chamativo, um dos fatores que mais incentivou a viagem de José Renato foi o fim do relacionamento – que é revelado rapidamente, portanto não é nenhuma grande surpresa – que força o protagonista a se afastar do problema na tentativa, frustrada, de esquecê-lo. A ficção do funcionário público que, como tanta gente, busca na viagem a simbologia de afastar-se de um problema na ilusão de esquecê-lo e na esperança de que tudo esteja resolvido na volta, é mesclada com a realidade do depoimento de alguns moradores, revelando a solidão que gera uma angústia até inconsciente.

Aquele que no início conta as horas para voltar e relata o serviço adiantado, com o tempo desanima, atrasa e bate de frente com a falta de opção. A viagem torna-se chata, cansativa, repetitiva em um cenário que independente da quilometragem percorrida é sempre o mesmo; mas qual a alternativa, se voltar implica em encarar a dor do relacionamento interrompido? Em um dilema bastante parecido estão os moradores entrevistados, pois assim como o personagem, eles relatam uma vida dura, a esperança de melhora, mas no contexto em que estão inseridos fica a mesma dúvida, qual a alternativa para sair de uma condição tão hermética, que reduz a pluralidade humana a um destino quase pré-estabelecido?

A morosidade indicada pelos que não estão habituados ao dito “cinema de arte” é compreensível, até pela estrutura do filme fugir muito ao habitual, mas uma das técnicas de montagem do cinema é adequar o ritmo da obra para que fique condizente ao vivido pelos personagens, assim, acompanhando um pouco da viagem de José Renato, vemos que o filme não poderia ser diferente.


sexta-feira, 6 de maio de 2011

Cópia Fiel (Copie Conforme)

Cinema iraniano é visto no Brasil quase como um signo de filmes chatos e mal produzidos, o que é compreensível em se tratando de produções carentes de tradição e recursos e, sobretudo, com uma cultura bem diferente da ocidental, que aborda temas alternativos com uma concepção de tempo bem diversa. Aqui o diretor Abbas Kiarostami rompe as fronteiras de seu país e apresenta essa produção franco-italiana, que mescla cinema europeu com as fortes influências do diretor iraniano.

O filme é mais lento do que em geral costumamos ver, alguns pontos ganham mais ênfase que o necessário e o enredo é bastante linear, o que costuma desagradar muitos espectadores. Já os planos externos filmados na Toscana, que mais parece um cenário a céu aberto, agradam até os olhares mais desatentos. É em meio aos cenários românticos e inspiradores que Elle (Juliette Binoche) e James Miller (William Shimell) passam a maior parte do filme travando grandes discussões por sustentarem pontos de vistas divergentes em cada detalhe.

James é crítico de arte e foi para a Itália para o lançamento de seu novo livro, Cópia Fiel, no qual defende basicamente que algumas cópias de obras de arte podem ter tanto valor quanto a original. Só este tema já possibilita diversas análises e debates entre artistas, críticos e apreciadores, porém o foco do filme não está em chegar a uma conclusão sobre o valor da cópia de uma obra, mas utilizar essa ideia e as divergências das personagens acerca dela como metáfora para as relações diversas entre as pessoas. Elle é uma personagem mais complexa, pois a comerciante de arte, sempre em busca do original, apesar de fazer de tudo para se aproximar do crítico e agradá-lo, tenta convencê-lo de que sua tese é equivocada. A divergência somada a algumas atitudes nos leva a acreditar que o interesse dela é mais pessoal que profissional. Com a metáfora estruturada – e extremamente desenvolvida na primeira parte do filme – o roteiro começa a fazer um jogo de verdade e ficção muito instigante.

A partir do momento em que são confundidos com um casal em um café passam a agir como casados. Seria uma união verdadeira ou uma cópia? As discussões, até então mais técnicas e voltada para obras de arte, cujo valor é muito subjetivo, passam a ter como tema as divergências de um casamento que já dura quinze anos. Em sua busca pelo significado da vida James acredita ser este a diversão, não importa se através de cópia, desde que esta desperte emoções. A obsessão de Elle pelos originais não é restrita às obras, mas chega aos sentimentos e insiste em impor sempre com muita seriedade seus valores, que para ela são inegavelmente corretos.

Os dois pontos de vista sobre os temas debatidos pelo casal são válidos e bem argumentados, sendo que dificilmente aquele relacionamento poderia ser mantido com harmonia por muito tempo, não por um dos dois estar errado, mas pela divergência latente em relação ao modo como devemos levar a vida. James adota uma postura mais individualist, portanto o relacionamento seria mais distante, sem o compartilhamento total de alegrias e problemas; proposta interessante, desde que para mantê-la durante o casamento as responsabilidades, como a criação dos filhos, não sejam empurradas integralmente para a esposa. Já Elle exige maior comprometimento, exaspera o romantismo e sente falta de mais atenção do companheiro; proposta interessante, não fosse a imposição de comportamento e de sentimentos por parte da personagem, quase como se tudo que é diferente dela não tivesse valor, tal qual uma cópia da obra de arte original, segundo sua concepção.

Diferente do cinema ocidental, com enredo fechado e conclusões prontas, Kiarostami apresenta um diálogo bastante linear, mas que não oferece um final fechado e que suscita a reflexão. Os dois formam um casal ou uma cópia fiel? O que caracteriza um casal original? O que caracteriza um sentimento original? Em geral, costumamos colocar nossos sentimentos e nossas expectativas como originais e corretos, mas lidamos muito mal com as situações em que se invertem os vilões e heróis.

Sem trailer legendado  =/

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