quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Na quadrada das águas perdidas

O Brasil é um país múltiplo. Em todos os sentidos. Chega a soar estranho nos referirmos a ele no singular. Seria muito mais condizente falarmos em Brasís, vários, especificando sobre qual exatamente queremos dizer quando o singular Brasil é citado.

Dentro do mesmo nome há desde grandes megalópoles como a cidade de São Paulo até o sertão nordestino, isolado e aparentemente inóspito, enquanto um olhar mais atento não revela a riqueza local.

É este olhar atento que os diretores Wagner Miranda e Marcos Carvalho nos oferecem, traduzido brilhantemente pelo sertanejo Olegário (Matheus Nachtergaele), que como em uma poesia sem palavras cruza o sertão feito um personagem de João Cabral de Melo Neto, apresentando com naturalidade as dificuldades e recompensas que a terra hostil tem a oferecer.

Munido de poucos bens materiais, Olegário deixa a casa de pau-a-pique na companhia de duas cabras, na carroça puxada pelo burro, com a escolta de um cão e sob o olhar simbólico do urubu, que parece segui-lo de perto.

Durante a peregrinação nordestina, famosa desde o clássico “Vidas Secas”, vemos o homem em comunhão com o meio que o cerca. Olegário se diferencia de Fabiano, o protagonista que Graciliano Ramos imortalizou, por ser ainda mais solitário e, consequentemente, ainda mais calado. O filme não tem diálogos, não tem monólogos, não tem palavras. Tudo é dito com imagens, com as cores vivas e quentes do sertão.

A serpente denunciando a morte; as tartarugas (ou algum parente próximo) anunciando a vida, que assim como as recém-saídas do ninho tende a ser lenta, porém resistente ao sol e à seca; a ave de rapina entre os dois extremos, a espreita de uma morte que lhe garanta a própria vida. São várias as metáforas que enriquecem a caminhada de Olegário, que entre guerras e pactos com o sertão, segue seu caminho obstinadamente.

Diante das dificuldades que parecem tornar a vida quase impossível, podemos ser tentados a pensar que aquela condição humana é inadmissível, sobretudo com a existência velada da chamada indústria da seca, que lucra e, portanto sustenta muitas daquelas dificuldades. Entretanto não é só com as recompensas que o sertão oferece ao nordestino que podemos encarar sua vida como muito mais natural que a vida urbana.

Muitas dificuldades do sertanejo poderiam ser sanadas com medidas relativamente simples e alguns investimentos em infraestrutura, porém não seria uma alternativa viável pensar no sertão urbanizado, com muitos elementos que só estão presentes na cidade. Mesmo que o sertanejo tenha direito a serviços básicos, aos quais todos os cidadãos têm, pelo menos em tese, direito, aquele ambiente não deve ser totalmente descaracterizado ou modificado por intervenções humanas.

Um exemplo prático pode ser notado a partir de Guimarães Rosa. O médico/escritor passou parte da vida vagando pelo sertão mineiro, visitando povoados isolados para cuidar da população doente. Tudo isso no lombo de animais e sem a infraestrutura de um grande hospital. As histórias vividas viraram grandes obras da literatura brasileira.

Hoje, quase cinquenta anos depois da morte de Guimarães Rosa, a figura do médico que viaja sem rumo e sem estrutura, em busca de moléstias a serem tratadas, ficou para trás. A tentativa de trazer médicos de outros países para atuarem em áreas isoladas, como o sertão retratado no filme, esbarra no falso argumento de que a carência do país não é de profissionais, mas sim de infraestrutura.

De fato, os investimentos no desenvolvimento de cidades são precários e isso influencia na baixa qualidade de serviços de saúde, educação, segurança, etc., entretanto esperar que locais ermos sejam reestruturados e cidades sejam construídas no lugar de vilarejos seculares é utopia inviável e desnecessária.

Em todo o Brasil, ou em muitos brasís, há diversos ‘olegários’, que precisando de serviços básicos não podem esperar pela chegada de investimentos que, mesmo contando com uma política extremamente eficiente, diferente da que estamos habituados, demorarão muito tempo para chegar.

O que fica claro no filme é que dificuldades podem ser contornadas sem que a harmonia entre homem e meio-ambiente seja radicalmente alterada, sendo possível a união de conhecimentos empíricos com pequenas intervenções tecnológicas que facilitem a vida daqueles que vivem em locais tão distantes. Não é imprescindível a construção de toda uma infraestrutura de primeiro mundo para que só então profissionais possam atuar.


Um comentário:

Bel B disse...

Surpresa. Não sabia da existência deste filme. Chamou-me atenção pelo mesmo título de uma música de Elomar.

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