terça-feira, 2 de setembro de 2014

A Pedra da Paciência (Syngué sabour)

A psicanálise, em linhas bem gerais, estimula que a pessoa analisada fale sobre sua própria vida e aos poucos pequenos detalhes encaixados acabam revelando fatos de seu inconsciente, do qual nem a própria pessoa se dava conta.

Claro que para isso o psicoterapeuta deve estar presente, ninguém consegue ‘se analisar’ sem ajuda. Apesar disso, algumas linhas psicanalíticas podem ser notada neste longa do diretor Atiq Rahimi.

Em estado vegetativo após levar um tiro na nuca, um homem afegão (Hamidreza Javdan) passa o dia sob os cuidados da esposa (Golshifteh Farahani). Como se isso não fosse uma situação complicada o suficiente, esses cuidados não são ministrados em um hospital, com profissionalismo, mas no quarto de casa, com uma mísera sonda de soro ligada à boca e um pano húmido para o banho.

Em região constantemente bombardeada e sob o fogo cruzado de milícias afegãs, a esposa vive o dilema de abandonar o marido – pelo qual no fundo não tem grande sentimento afetivo – ou arriscar a própria vida para cuidar dele.

Neste contexto entra em cena a metáfora da pedra da paciência, uma pedra mágica para os persas, que ouve os lamentos de um interlocutor, até que se rompe libertando a pessoa de seus traumas. Ao saber dessa lenda a esposa começa a se aproximar aos poucos do marido e a falar sobre sua própria vida, como se fosse ele sua pedra da paciência.

O machismo em si já é uma expressão da ignorância. Nada de bom pode surgir de um pressuposto de superioridade sem nenhum fundamento. Porém o machismo levado ao extremo, como em regimes mais conservadores que se baseiam em fundamentalismo religioso, como vemos no Afeganistão e como vimos por muito tempo no Brasil de algumas décadas atrás, proporciona algumas cenas tragicômicas, como vemos no filme.

Qualquer animal tem seus mecanismos de defesa. Os humanos também, e com a intervenção da racionalidade. Em uma sociedade em que a mulher segue sendo tratada ora como uma escrava, ora como ferramenta para o marido, é inevitável que estratégias sejam traçadas para que as punições não sejam postas em prática.

Conforme as confissões da afegã são narradas, vemos que ela não almejava nada muito grandioso. Reclamava da falta de contato com o marido, que beijava suas codornas utilizadas em rinhas, mas nunca a esposa; narrava as estratégias utilizadas contra o próprio marido, não por desejo de enganá-lo, mas por necessidade de não ser punida por uma culpa que não era sua; e uma série de eventos inimagináveis para uma sociedade com a nossa, ou seja, ainda muito machista, porém longe do extremismo afegão.

O sentimento da esposa em relação ao marido é bastante ambíguo. Chega a amaldiçoa-lo, mostrando seu ódio, mas após tanto tempo de convivência forçada, ela não abre mão da esperança de que as coisas melhorem, caso ele volte do coma.

Essa complacência pode ser encarada com certo romantismo e esperança feminina, mas há também uma motivação racional. O machismo é sempre muito bem blindado contra reações femininas. A esposa sabe que mulheres que já foram casadas são vistas como um objeto de segunda mão, com pouco ou nenhum valor de mercado. Longe de querer aceitar a vida que levava, também não é uma boa opção assumir o papel de divorciada ou mesmo de mãe de dois filhos sem um pai presente.

Além de um retrato da sociedade afegã vista de dentro, o filme mostra quem ganha com o machismo vigente, ou seja, ninguém. É evidente que as mulheres são as que mais sofrem, tanto física quanto psicologicamente, mas não dá para dizer que os problemas não atingem também os homens.

Sem querer transformar os agressores em vítimas, o homem em coma é o retrato do machista sob as consequências dos próprios atos. Frio a ponto de dispensar mais atenção a uma codorna que à própria família, enganado graças a sua imposição de regras insanas, ferido em uma discussão desnecessária.

Colocado desta forma parece uma situação distante da que vivemos por aqui. De fato superamos algumas ações do machismo, mas enquanto mulheres seguirem sendo agredidas, violentadas, por vezes assassinadas, e com direitos restritos em relação aos dos homens, não podemos nos orgulhar de termos superado o machismo. Ele existe, nos cerca, nos envergonha e se não tomarmos cuidado, nos seduz.


Um comentário:

Helena disse...

Apenas uma pequena correção: quem beija as codornas, na realidade, é o pai da moça. É explicitado em um momento onde ela narra que o único modelo de casamento que ela já teve foi o dos pais e que o pai expressava mais carinho pelas codornas do que pela família, até o dia onde ela deu uma das aves para um gato de rua que sempre passeava pela casa...

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...