terça-feira, 11 de novembro de 2014

Mil vezes boa noite (Tusen Ganger God Natt)

Encontrar bons filmes não chega a ser uma tarefa difícil, sobretudo entre os estrelados por Juliette Binoche. O mérito deste longa do diretor Erik Poppe é unir em uma história simples uma série de problemas que nos proporcionam um turbilhão de sentimentos.

Por um lado a protagonista Rebecca (Juliette Binoche) poderia ser o exemplo máximo de mulher bem sucedida. Com uma boa situação econômica, uma vida confortável na Irlanda e uma família que poderia estrelar um comercial de margarina. Por outro lado Rebecca trabalha como fotógrafa em zonas de conflito e parece que a tensão e instabilidade dessas zonas atingem em cheio os pilares de sua vida.

Ao mesmo tempo em que o diretor nos deixa extasiados com a fotografia impecável do filme, chocados com a preparação de um atentado a bomba logo no início e emocionados com a dedicação de Rebecca, que arrisca a própria vida por ver em seu trabalho uma ferramenta de denúncia, ainda tempos que lidar com conflitos familiares egoístas e até certo ponto imaturos.

É compreensível que seu marido, Marcus (Nikolaj Coster-Waldau), preocupe-se com a segurança e as filhas sintam medo com as viagens da mãe, principalmente a mais velha, entretanto a reação de Marcus é sempre conservadora, provinciana e incompatível com a personalidade corajosa de Rebecca.

Em nosso cotidiano é muito mais comum encontrar pessoas que se assemelham a Marcus, ou seja, sabemos ao menos superficialmente das mazelas e tragédias que assolam certas partes do mundo – não necessariamente na África ou Oriente Médio, pode ser no bairro ao lado, dependendo da cidade –, porém dificilmente estamos dispostos a dar um passo além da indignação tímida e passiva.

Os temores da família em relação à vida da fotógrafa são toleráveis. Diante de uma situação de risco o medo é natural e benéfico, pois impõe limites que podem nos salvar. O problema é que o mesmo medo que nos salva, muitas vezes nos castra, nos coíbe e nos empareda em um cotidiano minúsculo, onde permanecemos trancafiados, habituados com um horizonte limitado e pobre.

Rebecca é o exemplo extremo que ilustra essa ideia. Por que uma pessoa com tantas possibilidades de conforto e tranquilidade enfrenta a objeção das pessoas que ela mais ama para se embrenhar em situações perigosas na tentativa, sem nenhuma garantia de sucesso, de salvar pessoas que ela nem conhece?

Não fosse nosso egoísmo e individualismo exacerbados a questão mais pertinente seria o que faz alguém se acomodar ao olhar pela janela e ver tantos absurdos. Na Irlanda ainda é possível que a sociedade seja mais homogênea e os choques de realidade não sejam tão explícitos, fazendo com que Rebecca buscasse nos conflitos da África e Oriente o material de suas inquietações. Já nas grandes cidades brasileiras a fotógrafa poderia cruzar poucos quarteirões para sair de sua confortável e luxuosa casa e chegar em algum lugar marcado por conflitos, que clama por serviços e poderia fornecer muito material de denúncia.

Independente do país em que morasse, o fator comum seria a reação de surpresa da maioria das pessoas, esperando que ela utilizasse seu talento como fotógrafa para temas considerados mais seguros. Colocam os locais de conflito como perigosos – e muitos de fato são – mas não consideram a hipótese do abandono por parte do restante da sociedade como um agravante para a violência e para a baixa qualidade de vida local.

Diante do abismo social entre as classes distintas, é muito conveniente que as classes mais altas se eximam da culpa, que de fato não é individual mas coletiva. Claro, não é a proposta do filme estimular que todos peguem uma máquina fotográfica e corram para zonas de conflito, ele apenas escancara uma clivagem desnecessária que se estabelece na sociedade por parte daqueles que não somente se contentam em reduzir sua existência a um local confortável, como ainda querem coibir a ação dos que estão dispostos a correr riscos por uma mudança indispensável.

Fechamos os olhos para a existência de oprimidos, alimentamos medos que muitas vezes são desnecessários ou exagerados e com isso nos fechamos em um mundo pequeno, o menor possível, esquecendo que fronteiras não existem naturalmente. A manutenção desta realidade é bem pior para aqueles que sofrem com a violência diária, porém cabe destacar que os adeptos da postura conservadora de Marcus também são atingidos.

Seria exagero dizer que essas pessoas são vítimas, mas o preço que pagam é ter uma vida limitada pelo medo, pela alienação que absorvem de geração em geração, fazendo o possível para coibir quem tenta fugir pelo menos um pouco da desigualdade insana que nos cerca.


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