terça-feira, 18 de novembro de 2014

O lobo atrás da porta

Ao longo do século XX as relações sociais tiveram algumas mudanças consideráveis, muitas delas devido ao crescimento do movimento feminista, que passou a combater as desigualdades de gênero e a lutar por direitos básicos que as mulheres, até então, não tinham.

Hoje é evidente que as mudanças em fluxo, que dão notoriedade para as vontades femininas, muito maiores que a simples vida para a satisfação de um homem, são extremamente benéficas, porém valores retrógrados ainda são fortes e têm o poder de implicar em verdadeiras tragédias.

Essa transição fica nas entrelinhas do longa do diretor Fernando Coimbra. A relação extraconjugal que forma o triângulo amoroso entre os protagonistas é apenas um verniz sobre o ideal de família perfeita e sobre o machismo que dá ao homem privilégios de gênero.

As traições devem ser tão antigas quando a ideia de monogamia. O escândalo de uma relação entre amantes marcam a história quando, frequentemente, os casos de infidelidade são protagonizados por pessoas famosas, ou cujas consequências extrapolam os limites familiares, tendo efeito sobre um grupo maior de pessoas.

O que marca a diferença do que vivemos hoje é que há um século as traições masculinas eram mais frequentes e mais aceitas pela sociedade, enquanto a mulher que protagonizasse uma traição seria socialmente censurada, com sua pena moral extremamente agravada se o relacionamento culminasse em uma gravidez indesejada.

Estamos longe de uma igualdade plena de direitos. Ainda existe certa complacência com a infidelidade masculina e o peso da gravidez indesejada recai quase que totalmente sobre a mulher, porém é inegável que vários fatores, como a inserção da mulher no mercado de trabalho e maior escolaridade das mesmas, aproximaram os gêneros e uma mãe solteira hoje não carrega um peso moral tão grande quanto no início do século passado.

É nessa realidade que se encaixa a personagem Rosa (Leandra Leal). Ela não se importa em manter uma relação com Bernardo (Milhem Cortaz) mesmo depois de descobrir que ele é casado e tem uma filha pequena. Por outro lado mantem o ideal de um relacionamento romântico, sonhando com o dia em que o amante irá abandonar a família para ficar somente com ela.

Bernardo tem o comportamento padrão dessas relações, ou seja, utiliza os benefícios que os valores machistas ainda vigentes proporcionam para manter os dois relacionamentos, inventando todas as desculpas necessárias enquanto pode.

Ainda que este cenário seja cada vez mais comum, o desenrolar dessas histórias sempre rendem conclusões problemáticas, quando não trágicas. Valores conflitantes fazem com que boa parte da sociedade ainda considere obrigatório o conceito de casamento eterno, fiel e preponderante para a família padrão, composta por um casal fiel e seus filhos.

Mesmo que haja uma tolerância muito maior aos filhos anteriores ao matrimônio, é gritante o despreparo de casais e antigos casais para lidar com uma nova realidade familiar. Poderíamos esperar que com a assimilação de novos valores e até mesmo de desenvolvimentos morais, as pessoas demonstrassem maturidade diante de impasses.

Já não toleramos – felizmente – que os pais negociem o casamento dos filhos visando aglomerações econômicas, tão pouco que casais continuem juntos mesmo sem afinidade afetiva para manter a tradição de um casamento eterno. Mas ainda não é tão chocante o jogo psicológico que utiliza crianças como reféns.

Se tivermos a pretensão de melhorarmos socialmente deveríamos notar que tão inconcebível quanto um casamento escolhido pelos pais é o fato de tentar manipular os filhos ou enteados de alguma forma para atingir os adultos envolvidos.

Assistindo ao filme, na qualidade de expectadores oniscientes, a interação dos protagonistas pode parecer insana, o problema é que com pequenas nuances de comportamento e com desfecho distinto o enredo do filme é muito mais comum do que deveria.

Não se trata de tolerar qualquer comportamento de forma impassível e isenta de sentimentos, mas sim de compreender quando os sonhos antes compartilhados já não seguem por caminhos paralelos, sabendo respeitar o momento de se afastar.

O filme coloca a cartada final – e insana – nas mãos de Rosa, mas cabe ressaltar que é o tipo de história em que a responsabilidade não pode ser carregada por somente uma das partes. Bernardo, a exemplo de tantos personagens semelhantes na vida real, passa todo o tempo agindo de forma egoísta e irresponsável. Isso não justifica nem autoriza o comportamento irresponsável das demais pessoas envolvidas, mas instiga reações desproporcionais.

Ainda que tenhamos melhorado ao longo do último século, ainda temos muito que aprender em termos de relacionamentos que começam e terminam.


2 comentários:

Olecram, o outro disse...

Bela reflexão sobre o filme, que é assustadoramente contextualizado aos dias atuais.

Alexandre disse...

Que bom que gostou! (do texto e do filme =)

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