terça-feira, 27 de março de 2012

A Onda (Die Welle)

E o fascismo é fascinante deixa a gente ignorante e fascinada.
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada.
A história se repete mas a força deixa a história mal contada.


Saber que o roteiro do filme de Dennis Gansel foi baseado em fatos reais só o torna mais perturbador e instigante. A tentativa pedagógica do professor Reiner Wenger (Jürgen Vogel) de por em prática um regime autocrático com seus alunos até perder o controle da situação pode parecer absurda, mas o longa é bem conduzido ao ponto de convencer que a experiência é assustadoramente viável, bastando que o líder saiba quais os pontos certos a serem trabalhados. Dizer que a Onda é uma loucura é uma conclusão rasa diante de tudo que dá estrutura à ideia.

A escola inevitavelmente tem grande influência no sistema de pensamento do indivíduo. É uma etapa fundamental no processo de socialização de cada um e trabalha em um processo de formação individual, consequentemente de formação da própria sociedade. Outro importante pilar desse processo de formação é a família, como indica o filme através de Karo (Jennifer Ulrich), que contesta ordens escolares principalmente depois de ter sido alertada pela mãe sobre a importância de lançar um olhar crítico em relação às ordens recebidas. Uma análise possível é que as principais críticas não devem ser destinadas apenas ao professor, mas ao ensino prévio que os estudantes tiveram, pois todos encontraram na Onda pontos que a escola deveria oferecer desde os primeiros anos, porém acompanhados de senso crítico.

O grande atrativo da Onda acabou sendo a oferta do que os estudantes, mesmo sem se dar conta, demandavam, ou seja, respeito e tolerância para evitar o bullying, como no caso de Tim (Frederick Lau); o trabalho em grupo; uma meta a ser seguida por adolescentes confusos; desafios a serem vencidos; etc.

Evidentemente que o trabalho do professor é censurável. Para exemplificar, quando os estudantes não querem marchar e o professor coloca como sentido para tal atitude atrapalhar a aula da outra turma, ele passa (junto com a ideia de trabalhar em grupo) a intolerância e a rivalidade negativa aos alunos. Vemos nessa cena como os adolescentes gostam e querem uma meta, um desafio, portanto cabe ao professor encontrar formas de lhes estimular, porém sem criar rivalidades hostis como no filme.

Entretanto o docente viu desde o início que os estudantes preferiam sua aula, mesmo com um tema menos atrativo, à aula de anarquia com um professor extremamente conservador e desinteressante. Além disso, talvez nada seja mais estimulante a um professor do que seu plano de aula se mostrar extremamente bem sucedido, ao menos aparentemente, fazendo com que os limites de Reiner se tornassem quase inexistentes.

Além do desdobramento do experimento dentro da escola, o lado político do implemento de um regime autocrático, sobretudo na Alemanha, torna-se bastante inquietante. Mais de meia década após a queda do Terceiro Reich não faltam obras de arte, em todas as suas vertentes, retratando os horrores da Segunda Guerra. Até mesmo no filme, quando o Reich é mencionado, alguns alunos se mostram enfadados com o assunto recorrente. Fora das telas, sempre que algum material novo sobre o tema é lançado alguém comenta sobre o suposto esgotamento.

A lição explícita da Onda é que um regime autocrático não está tão distante e tão inerte quanto parece, ou quanto deveria. Em uma época carente de ideologia, quando ser politizado é quase um absurdo, um bom orador pode muito bem maquiar certos termos fascistas e exaltar o conteúdo integralista de um regime autocrático para dar vazão ao potencial de um grupo unido diante de um objetivo.

O que fica implícito no filme é que talvez seu conteúdo não esteja restrito a uma sala de aula alemã, distante da vida real. Em uma sociedade baseada no consumo, onde as pessoas são induzidas a comprarem roupas semelhantes, ouvirem músicas parecidas, consumirem os mesmos alimentos, etc., não é muito difícil supor que as pessoas abdiquem de sua individualidade, mesmo sem perceber, e prefiram um padrão a ser seguido a refletir sobre suas próprias vontades e necessidades. Acostumadas com a falta de senso crítico, ficam mais susceptíveis a ideologias políticas que aparentemente as fortalecem.

Não é raro vermos, por exemplo, uma polarização política no Brasil, através da qual eleitores do sudeste tendem a se posicionar como superiores à população nordestina, sem perceber a manipulação que permite a exploração do povo, já que este está mais preocupado com falsas disputas regionalistas do que com o combate à exploração como um todo. Mesmo dentro de uma cidade é possível identificarmos falsas clivagens que criam pequenos grupos, forjando uma superioridade tão falsa quando a Onda.

Os problemas sociais que permitem a criação de um grupo como a Onda devem ser combatidos em suas raízes, não em suas aparências. Esta é uma das grandes lições que a sociedade insiste em não aprender depois do Nazi-Fascismo.

terça-feira, 20 de março de 2012

Raul - o início, o fim e o meio

Quem não tem colírio usa óculos escuros
Quem não tem filé come pão e osso duro
Quem não tem visão bate a cara contra o muro


O filme do diretor Walter Carvalho acompanha a vida de Raul Santos Seixas do início ao fim. O material filmado para a produção foi extenso e diversificado, além disso, a própria vida de Raul Seixas foi cheia de altos e baixos, com fases distintas e divergências que fizeram da metamorfose ambulante um dos artistas mais consagrados do Brasil. Mesmo com essa diversidade o resultado final é um ótimo documentário, que mostra vários depoimentos sobre cada tema, deixando que a conclusão seja tirada por cada fã.

Foi ainda na infância que Raul começou a ter contato com o rock, estilo que também vivia sua infância, dando os primeiros passos desajeitados com Elvis Presley. Entre o mar de fãs de Elvis estava o menino baiano, que desde cedo mostrava divergências com os padrões sociais, enfrentando a família não como desrespeito, mas para traçar o próprio destino, como descreveria anos depois na canção ‘Sapato 36’. A descoberta e paixão pela música acabaram canalizando a criatividade do garoto que poderia não saber muito bem para onde estava indo, mas sabia que estava em seu caminho.

O novo estilo musical chegava timidamente ao país. Ainda desconhecido e primando sempre pela liberdade, contestação e questionamento, o rock se encaixou perfeitamente à personalidade intempestiva de Raul, que desde sua primeira banda, Raulzito e os Panteras, contribuiu decisivamente para o desenvolvimento de um rock brasileiro, misturando elementos nacionais como o baião, a MPB, o acordeom, mas sem perder as influências internacionais. Essa síntese fica clara em “Let me sing, let me sing”, na qual o músico mostra muito bem seu estilo despojado, com personalidade forte, que conseguiu encaixar ritmos nordestinos em meio a muito rock, blues e country.

A genialidade de Raul não costumava andar só. Ao longo da vida o artista contou com vários parceiros para letras e melodias, muitos deles aparecem no filme com depoimentos emocionantes e divertidos. Tendo uma vida marcada por fases tão diferentes, é natural que algumas entrevistas se mostrem contraditórias entre si, mas um ponto alto do filme é manter exatamente uma característica muito presente na vida e obra de Raul, ou seja, a fuga do maniqueísmo para mostrar que o mundo é mais complexo do que a divisão entre certo e errado pode sugerir.

As parcerias não renderam apenas músicas. Com os grandes amigos que fez durante a vida, Raul desenvolveu suas ideias sobre temas recorrentes em suas canções. Religião, drogas, amor, política, etc. Cada um desses temas poderia render um documentário à parte, já que as letras não costumavam ser diretas e claras.

Repletas de metáforas e com assuntos complexos – ainda que abordados propositalmente de forma simples – algumas músicas de Raul, sobretudo as que foram compostas em sua fase mais mística, possuem diversas interpretações que muitas vezes chegam a conclusões contrárias. Gerar polêmica era a provável intenção do músico; se equivocam aqueles que pensam compreender definitivamente uma das obras daquele que já dizia ter passado por todas as religiões, filosofias, políticas e lutas. Que aos onze anos já desconfiava da verdade absoluta.

Com o auge de sua carreira no auge da ditadura militar, Raul driblou várias vezes a censura, mostrando de forma direta e discreta o ouro de tolo que era o crescimento econômico do período. Não deixou de engrossar o número de exilados da época, fazendo do período que passou nos Estados Unidos uma grande aprendizagem. Ainda que a carreira internacional que tanto almejava não tenha decolado, o artista deixou algumas de suas marcas no país, como suas músicas e familiares.

As entrevistas com as companheiras que Raul Seixas teve ao longo da vida permeiam o documentário com depoimentos que revelam um lado muito terno. Não dá para pensar em uma família nuclear e tradicional por parte de quem cantou o amor em sua forma mais livre, que se por um lado pode machucar – característica inerente a este sentimento – por outro também liberta e agrega a cada indivíduo que o experimenta. Raul sabia muito bem que um amor a dois profana o amor de todos os mortais, sendo este mais um aspecto vivido intensamente pelo músico, até o fim de sua vida.

Com muita competência a vida de Raul Seixas foi condensada nessas duas horas de documentário, que servem tanto de memória aos que presenciaram a carreira do artista, quanto de apresentação deste que é um dos maiores nomes da música nacional. Sua vida pode ter sido curta, mas de intensidade infinita, guiada na palma de sua mão. Raul Seixas morreu dormindo tranquilamente, deixando uma legião de fãs e um legado para o rock nacional. Não importa quem esteja no palco, alguém na plateia sempre gritará: TOCA RAUL!




terça-feira, 13 de março de 2012

Nossa vida não cabe num Opala

O filme do diretor Reinaldo Pinheiro conta a história de quatro irmãos que, depois da morte do pai (Paulo Cesar Pereio), continuam a vida dura, com uma série de problemas e que, principalmente através da relação de dependência com Gomes (Jonas Bloch), revelam implicitamente relações de poder impostas por questões de gênero e, sobretudo econômicas.

Para ganhar a vida os dois irmãos mais velhos, Monk (Leonardo Medeiros) e Lupa (Milhem Cortaz), roubam carros. Os dois têm perfis diferentes, já que o primeiro chega a ser criticado por ter estudado, gostar de leitura e não ter, materialmente, ganhado nada com isso, enquanto Lupa, que ganha destaque com a ótima atuação e com a quebra certas tensões com um pouco de humor, sempre se orgulhou de, aparentemente, viver a vida da forma que lhe convém, avesso às formalidades e imposições sociais. O estudo parece não ter feito diferença entre os irmãos e o alvo dos roubos não é qualquer carro, mas Opalas, carro antigo que sempre foi símbolo de masculinidade.

O irmão mais novo é Slide (Gabriel Pinheiro), que tem os mais velhos como referência e mesmo contra a vontade deles quer seguir os passos de ladrão de carros. Um ponto em comum entre os três, herdado do pai da mesma forma que a profissão, é a dependência de Gomes, que financia a família e faz com que os roubos sejam lucrativos. Evidentemente que essa relação não é harmoniosa e os irmãos são explorados economicamente. Todos têm consciência disso e a todo o momento lembram Gomes que o finado pai foi arruinado por ele, que deixa claro sua indiferença.

Por fim, a única irmã é Magali (Maria Manoella), que apresenta outra relação de dominação muito presente na história. O machismo é latente ao longo de todo o filme, a ponto de incomodar, indignar e envergonhar qualquer pessoa. Todos os homens do filme são machistas, cada um de sua forma, e Magali é o principal alvo, sobretudo de Gomes. A tímida tecladista que se apresenta em um bar, onde é obrigada a abandonar suas preferências musicais e tocar músicas bregas, para atrair clientes ainda mais bregas, acaba sendo assediada de forma repugnante, por homens que insistem em tratar mulheres como mercadoria. Gomes, indicado como o melhor cliente, é o que mais considera como virtude ter dinheiro para pode pagar pelo que quer.

Até aqui o filme, infelizmente, retrata o cotidiano. Não faltam exemplos reais que corroboram os estereótipos encenados, porém é interessante notar a submissão do machismo ao poder econômico, indicando inclusive, ainda que historicamente mulheres sejam as grandes vítimas desse absurdo sem nenhum sentido, que o machismo em si não chega a ser benéfico para o homem, a menos que ele detenha também o poder econômico.

Os três irmãos, orgulhosos em ostentar a virilidade quando estão juntos, acabam ocasionalmente saindo com Silvia (Maria Luiza Mendonça) e ela é o exemplo mais claro de como muitas vezes a imagem que o machismo impõe ao homem é insustentável, sobretudo quando estes são sobrepujados por outras relações de poder. Aqueles mesmos machos que contam vantagem nos botecos com histórias nas quais são mais que heróis, mostram-se perdidos diante de Silvia, tão submissos diante das mulheres quanto diante daqueles que os oprimem economicamente. O único que consegue se manter um pouco mais coerente é Monk – que fique claro que ser coerente para sustentar o machismo não é nenhum triunfo.

De maneira sutil, por vezes cômica, o filme mostra como a vantagem que o machismo oferece à maioria dos homens não passa de migalhas para confortar ignorantes, que caso percebessem os absurdos ao que se sujeitam, poderiam unir forças contra a dominação econômica, ao invés de contar vantagem sobre uma falsa postura, que sustenta uma superioridade que na maioria das vezes não beneficia quem a detém.

No caso do filme, o machismo é o elemento que satisfaz os irmãos, que com exceção de Monk mal se dão conta da própria condição de marionetes, pois quem realmente ganha com toda a situação exposta é Gomes, que por deter o poder econômico diante dos irmãos, inclusive Magali, pode até utilizar as táticas mais mesquinhas para obter o que quer, sem a oposição por parte dos desarticulados oprimidos, jogados uns contra os outros por uma estrutura social predatória.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Tomboy

O filme de Céline Sciamma começa mostrando o cotidiano de uma família francesa que acaba de mudar para um novo bairro. Um casal com duas crianças, recheando o período conturbado de mudança com brincadeiras que deixam a transição mais leve e com uma vida bastante harmônica, daquelas que não parecem ter potencial para virar roteiro de cinema. Ao contrário das aparências, a história que se desenvolve é surpreendente, tocante e suscita muitas reflexões.

Conforme já indica a sinopse e o trailer, portanto não é nenhuma revelação comprometedora, a filha mais velha é Laure (Zoé Héran), que graças aos cabelos curtos e o corpo ainda sem os efeitos dos hormônios pós-puberdade, não têm muitas dificuldades para se passar por Mickaël entre os novos amigos que faz na vizinhança. A partir de então a vida dupla, já que os pais não sabem que a filha se passa por menino, é vivida com muita naturalidade por Laure, talvez muito por conta da falta de contato com padrões sociais que, mesmo sendo absurdos, podem inibir atitudes e até desejos.

É curioso que o tema seja abordado a partir de uma criança. O resultado é um filme leve e por vezes até divertido, apesar da complexidade de algumas situações. A presença da infância deve deixar os mais ignorantes bastante confusos – sobretudo aqueles que não se desvencilham da necessidade de ‘explicar’ tal comportamento com rótulos patéticos como doença, falta de vergonha, falta de religião, etc. E deixa as possibilidades de desdobramentos da história também muito vagas, afinal naquela idade as aspirações de uma pessoa podem ser muito confusas em todos os sentidos, trabalho, estudos e, por que não, sexualidade.

O fato é que Mickaël começa a se enturmar com as demais crianças da vizinhança e seu segredo não é fator determinante para os conflitos que aparecem, pois um grupo de crianças, em qualquer lugar do mundo, terá algumas divergências independentes da sexualidade. Já Laure segue sendo a filha mais velha, brincando com a irmã e agradando aos pais. Tudo muito simples, mas tanto em casa quanto com os amigos, a menina deve manter um segredo que não é exatamente fácil. Sabe que a atitude desagradaria aos pais, portanto esconde a identidade masculina que criou para corresponder às expectativas. Também sabe que ninguém em seu círculo de amizades aceitaria a mudança de gênero sem nenhum tipo de problemas, afinal a infância pode nos remeter à ideia de inocência e pureza, mas sabemos que as crianças podem ser bastante cruéis entre si.

A simplicidade com que a menina vive suas duas personalidades encontra contraste na intolerância das outras pessoas, e o curioso é que esta intolerância não se baseia em quem é Mickaël, mas em quem as outras pessoas esperam que Laure seja. De fato todos os pais geram, ainda que sem perceber, expectativas em relação aos filhos e não há nada de mal nisso, mas é fundamental que estejam conscientes de que muitas, se não todas essas expectativas, não serão cumpridas. Os filhos não nascem com a responsabilidade de corresponder aos pais e devem crescer com apoio para se desenvolverem como indivíduos com vontade própria, desejos e muitas vezes dúvidas em relação às quais os pais deveriam intervir no sentido de auxiliar, não de confundir ainda mais, reagindo muitas vezes com violência quando o comportamento ou os desejos dos filhos diferem muito do esperado.

Ainda que a criança tenha coragem para contrariar a expectativa dos pais e agir como Mickaël fora de casa, todo grupo de pessoas é regida por ações sociais coletivas, mesmo ainda na pré-adolescência, o que influencia muito no comportamento das crianças, sempre tão preso aos padrões e sempre tão hostis em relação a tudo que seja diferente do esperado. Esses padrões são formados em grande parte pelo círculo social em que a criança vive, ou seja, independente de como os pais de Laure tratem o comportamento da filha, seu convívio com a sociedade não será fácil, afinal o repúdio ao que foge do padrão, sobretudo quando falamos sobre sexualidade, é antigo e extremamente sólido – vide as recentes agressões físicas, bancadas evangélicas no governo, etc.

A sensação que fica em várias partes do filme é que apesar da vida não ser nada fácil, por vezes nada agradável e frequentemente desestimulante, Céline Sciamma consegue nos mostrar que, ao menos nas telas, os temas mais difíceis também têm momentos de leveza e recompensa. Esses momentos podem ser bastante raros, mas muitas vezes é o que nos resta.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A Separação (Jodaeiye Nader Az Simin)

O título da obra de Asghar Farhadi já nos remete a escolhas difíceis. Uma separação, de qualquer natureza, não é fácil, envolve uma série de ponderações e por mais que seja consensual, sempre haverá divergências – por vezes intencionais – a serem superadas. Como se fosse pouco, o enredo traz mais uma série de situações difíceis cujas escolhas dos personagens ganham complexidade por conta do machismo, fundamentalismo e conflitos de classes.

A separação que guia o filme é pedida por Simin (Leila Hatami), que quer seguir sua carreira no exterior, enquanto o marido Nader (Peyman Moaadi) alega que precisa cuidar do pai, com estágio avançado de Alzheimer. Simin não vê motivos afetivos para o divórcio, elogia o marido, mas vive o drama que a vida moderna cobra dos casais. Há algumas décadas a maioria das mulheres trabalhava cuidando da casa e dos filhos. Com a mais que merecida igualdade de direitos, que ainda engatinha em alguns aspectos, as mulheres passaram a estudar mais, trabalhar fora (geralmente fazendo jornadas duplas, por não poder abandonar a árdua jornada no lar) e frequentemente o relacionamento torna-se um empecilho na vida do casal. Ou seja, quando apenas um dos dois trabalha é mais fácil para o casal enfrentar mudanças juntos, quando as obrigações atraem ambos para lados opostos, as coisas ficam mais difíceis, complicando ainda mais com a presença de filhos, como no caso da família iraniana em questão, com a filha adolescente Termeh (Sarina Farhadi), que não aceita a separação dos pais.

A situação de Nader também não é nada fácil. Optar entre manter a família unida ou continuar dando atenção para o pai doente, sobretudo quando se está sob uma forte tradição de união entre pai e filho, é uma tarefa ingrata. Pouco importa que o mal de Alzheimer impeça que o pai lembre-se do filho ou que uma enfermeira possa dedicar-se ao idoso em tempo integral, a doce ilusão de que a nossa presença fará bem ao ente querido é mais que suficiente para deixar alguém bem confuso quando está na mesma situação que Nader. É evidente que, dificuldades pessoais a parte, o personagem tem um grande aliado: o machismo que faz com que o pedido de divórcio tenha que ser julgado, por um homem, que dirá se o motivo alegado pela esposa é válido ou não.

No meio desta situação bastante desconfortável Razieh (Sareh Bayat) é contratada para cuidar do idoso e é ela quem acaba revelando as dificuldades mais desnecessárias dos conflitos. Por um lado os costumes rígidos de ordem religiosa impõem uma série de restrições que limitam os serviços de Razieh; seguindo a risca os preceitos religiosos ela nem poderia exercer o trabalho. Mas ao mesmo tempo o capitalismo também atua no Irã, dividindo a sociedade em classes e fazendo com que os mais pobres tenham que optar entre a tradição religiosa e o pagamento das dívidas. Essa é uma escolha muito mais difícil de ser compreendida aqui. Nossa sociedade tende a compreender com maior facilidade a ideia de um casal que não quer se separar, mas ao mesmo tempo não tem como continuar junto. Mais difícil é aceitar que costumes tenham a força de impedir a obtenção de um emprego e, quase impossível, é encararmos com estranhamento a relação de poder que se estabelece com base na classe social, de tão enraizado que é este tipo de relacionamento.

O comportamento de Nader em relação a Razieh pode até ser atenuado com base na relação pai e filho, já que é bastante aceitável que ele espere o melhor tratamento para o pai e pode agir por impulso em determinadas situações, mas mais uma vez o machismo está do lado de Nader, mesmo que o personagem seja muito menos machista do que o estereótipo que construímos da sociedade em questão, é possível notar um amparo diante de agressões cuja simples existência já caracteriza uma violência inaceitável.

O enredo do filme, baseado em estruturas complexas de relações conturbadas, mostra que a vida é repleta de escolhas difíceis, que podem se tornar ainda mais complicadas diante de tradições incompatíveis com o estilo de vida moderno. Tais tradições, religiosas, sociais ou de qualquer outra origem, podem fornecer amparo e guiar as decisões pessoais de cada personagem, mas fica nítido que em conflitos a hierarquia sem sentido prático é utilizada em benefício de poucos, perpetuando relações de poder e dificultando a solução de problemas, ou até mesmo criando empecilhos desnecessários.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

2 Coelhos

Afonso Poyart estreou em longas metragens em grande estilo ao dirigir seu próprio roteiro. A trama entrecortada, estrelada por nomes consagrados do cinema nacional, ganhou efeitos acima da média para produções nacionais, tendo ritmo frenético e fortes referências hollywoodianas, sem deixar de lado algumas marcas típicas do cinema nacional, como o bom humor permeando situações tensas.

Podemos ver diversos problemas sociais e políticos do país unidos em uma única trama através do plano mirabolante de Edgar (Fernando Alves Pinto) de roubar uma quantia milionária de dinheiro, proveniente das falcatruas envolvendo o traficante Maicon (Marat Descartes), o deputado Jader (Roberto Marchese) e informantes que trabalham no judiciário, principalmente Júlia (Alessandra Negrini). Nas entrelinhas da trama existem várias referências a muitos problemas que ou servem de suporte para os grandes crimes financeiros, como a desigualdade social expressa de diversas formas, ou ocorrem de forma mais pontual, como a direção imprudente, que diariamente causa tantas vítimas em nosso país.

Separando um pouco os problemas abordados, já que isoladamente todos já causam grandes transtornos, vemos que uma população com consciência eleitoral é fundamental, mas isso não chega a resolver todos os problemas. Criticando a eleição de candidatos que mais parecem artistas de stand up comedy e de despreparados que encaram o cargo público como um visto permanente para a impunidade, Poyart deixa implícito que esse tipo de bandido é apenas uma das partes envolvidas em grandes esquemas de criminalidade.

Votar de forma séria e correta é evidentemente fundamental em um regime que ainda tenta ser democrático, mas quando parte do judiciário, escolhido a dedo com base em amizades e favores pessoais, está disposta a reforçar o salário significativamente alto auxiliando esquemas ilícitos, o problema foge da alçada do voto. A conveniência de um esquema tão vantajoso para políticos e juízes vem inibindo tentativas de reforma política há muito tempo, além da dificuldade de se manter informações sigilosas entre funcionários que devem ser de confiança, mas que podem ser seduzidos pela tentação do dinheiro fácil.

O crime organizado também mostra sua força no filme. Agindo muito além do tráfico de drogas – ainda que fortemente subsidiado por este – muitos criminosos como Maicon tiram proveito de grandes esquemas ilegais para conseguir ainda mais dinheiro, capaz de sustentar a indústria do tráfico de forma mais eficiente que qualquer usuário, por ter lucro alto com menos interferência da polícia, já que envolve pessoas do alto escalão do judiciário e da esfera política. O crime organizado é um dos braços armados de um sistema estruturado para trabalhar com grandes quantias de dinheiro sujo, sem despertar muitas suspeitas. O outro braço armado costuma ser a própria polícia, que não tem destaque no filme, mas que dificilmente não participa de transações ilegais como a retratada no filme.

Em meio a tantas falcatruas a população costuma servir de coadjuvante, muitas vezes sem nem se dar conta de que muito dinheiro desviado é produto de roubo direto do cidadão. Diante das diversas formas de violência, a abordagem direta de um indivíduo para adquirir seu dinheiro ou bens pessoais é apenas uma forma de agressão, as mais impactantes do ponto de vista econômico e social são as agressões veladas, que vão desde o favorecimento de criminosos de altas classes sociais (absolvendo um filhinho de papai que age fora da lei, por exemplo), até o desvio de verbas que seriam destinadas a hospitais, escolas, etc. minando assim o atendimento da população que não tem condições de optar pelo serviço privado e comprometendo em vários sentidos a formação destes cidadãos, que de uma forma ou de outra terão que sobreviver. A maioria se sujeita à vida de servidão, ganhando menos que o necessário para sanar as necessidades básicas, outros seguem um caminho que fecha o ciclo de violência, não necessariamente chegando ao comando do crime organizado como Maicon, mas geralmente cometendo assaltos e furtos como Velinha (Thaide).

Edgar é uma exceção entre a maioria da população. Resolve armar um plano extremamente elaborado para colocar os corruptos em conflito e ainda se dar bem. Diante da falta da polícia, que não interfere nos conflitos do filme, o personagem tenta fazer justiça com as próprias mãos – até certo ponto, pois o dinheiro em questão, caso a execução do plano seja um sucesso, permanecerá nas mãos de uma pessoa, em detrimento de tantas outras.

É evidente que a solução encontrada por Edgar é absurda e deve ficar restrita às telas, mas a acumulação desenfreada de capital estimula, como vemos no filme, as alianças mais inusitadas. Do chefe do crime ao deputado incompetente, passando por esferas do judiciário, a corrupção e suas diversas variantes seduzem ao ponto de uma minoria numérica conseguir acumular poder suficiente para manter um ciclo de roubos sem limites. Lutar por uma democracia social, ao invés de aceitar uma tentativa pobre de democracia política, extrapola ideologias ou viés político e visa simplesmente uma sociedade mais justa e menos insegura, por não se sentir refém de grandes falcatruas, como a que é exposta com maestria em 2 Coelhos.


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Casa Velha (Casa Vieja)

Alguns anos depois da Revolução Cubana, Abelardo Estorino escrevia a peça "Casa Vieja", que fazia um recorte da sociedade cubana e mostrava um pouco da transição pela qual esta passava. O valor das expressões artísticas para a formação ideológica é historicamente consagrado e os revolucionários cubanos aproveitaram este poder para disseminar os ideais de igualdade social entre a população, que poucos anos antes era governada por um regime bastante diferente do que tomara o poder. No Brasil o poder da arte como formadora de censo crítico é notável, mas infelizmente por seu oposto, pois para isso basta notarmos como os artistas foram perseguidos e exilados durante a ditadura militar, ou como os atuais programas de televisão subestimam a inteligência de qualquer um, mantendo seus telespectadores entretidos com obras cada vez mais fracas, previsíveis e sem graça.

Em Cuba, que mantêm desde a revolução um cinema crítico e fortemente presente em meio à população, os filmes continuam permeados por metáforas que instigam o debate entre os que assistem aos filmes. Neste contexto o diretor Lester Hamlet filmou sua versão para "Casa Vieja", re-contextualizando a essência da peça e atualizando as formas com que os conflitos são expressos, de acordo com as recentes mudanças na sociedade cubana.

No filme, o protagonista Esteban (Yadier Fernández) volta da Espanha depois de quatorze anos, quando sabe da morte iminente de seu pai. Chegando à capital cubana o jovem encontra um cenário bastante semelhante ao que deixou quando mudou de país, porém com a morte do patriarca sua família se vê diante de mudanças, com as quais não sabe lidar muito bem, após tanto tempo seguindo a mesma rotina.

É possível uma interpretação literal da obra, focando as atitudes de cada personagem diante da nova vida que de repente cai em suas mãos – ainda que a morte do pai parecesse anunciada, esse tipo de infortúnio sempre nos pega despreparados. Enquanto Esteban luta para ser aceito pela família e se esforça para que o respeito tome o lugar do preconceito, seus parentes se recusam a tolerar certas coisas que em nada influenciam em suas vidas, e cuja intolerância tem a capacidade de dificultar todo tipo de relação entre as pessoas. Aparentemente parece inconcebível que tal situação se estabeleça, no entanto o preconceito muitas vezes está tão enraizado na sociedade, que sequer notamos certos absurdos que cometemos, e apenas percebemos as incoerências quando estas são vistas de longe. Esquecendo os alvos que sofrem com a resistência do preconceito e pensando na curiosa situação de algo que permanece ruim sem sabermos exatamente o porquê – simplesmente por uma tradição sem sentido – podemos ver que não são raras as ocasiões que nos falta coragem, ou mesmo percepção, para pequenas mudanças de comportamento que nos leve a grandes benefícios pessoais.

Conforme já citado, os filmes cubanos não costumam ser tão simplistas e evidentes, dando margem a uma série de interpretações e associações com fatos cotidianos. Produzido durante uma significativa transição de poder na ilha, esta versão contemporânea de “Casa Vieja” pode ser vista como uma metáfora para o estado cubano, que foi governado por Fidel Castro ao longo de quase cinquenta anos. Com as recentes mudanças na ilha, é natural que a população se sinta desorientada, tal qual a família que perdeu seu patriarca, tendo agora que passar por um período de adaptação com a nova situação e as novas leis. Se por um lado as mudanças sociais na ilha são inevitáveis, afinal seria impossível e prejudicial manter um país nos moldes da década de 60, por outro a população cubana é politizada e instruída o suficiente para desenvolver sua economia de forma consciente, ou seja, sem que o capital seja dominado por especuladores.

Outra forma de pensar o filme, até complementar à anterior, é que Cuba nunca chegou a ser um país socialista, muito menos comunista, porém possui uma forma única de organização política e social, que conta com defeitos e problemas – como qualquer outro estado – mas também pode se orgulhar de fatores sociais invejados por muitos países. O medo do que vem de fora, simbolizado por Esteban, ou até mesmo o preconceito contra o que é diferente do tradicional, pode ser visto como a negação do que é estrangeiro e que em Cuba significa, entre outras coisas, um longo embargo econômico.

O economista Paul Singer, cujos estudos atuais são voltados para a economia solidária e desenvolvimento local, não nega a eficiência do mercado para a distribuição de bens na sociedade. O fundamental é que o governo cubano não negue erros e equívocos – que sempre existem em qualquer governo – e mantenha o ideal de igualdade social entre suas metas, de forma que a abertura da economia funcione em prol da erradicação da miséria, ao invés da concentração de capital.


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

1984

Who controls the past
controls the future.
Who controls the present
controls the past.


O diretor Michael Radford fez essa ótima adaptação da obra homônima de George Orwell, tornando ambas indispensáveis. O filme é bastante fiel à essência do livro, tendo evidentemente cortado algumas partes, sobre tudo as detalhadas diretrizes do fictício partido ‘Ingsoc’, que comanda de forma totalitária a sociedade retratada.

Orwell concluiu sua obra no fim da década de 40, fortemente influenciado pela Segunda Guerra e o totalitarismo que culminou na destruição de boa parte da Europa. O conteúdo de 1984 é a imaginação de como seria o mundo caso certas ideologias triunfassem, com controle de mídia, adulteração de acontecimentos, imposição de valores e costumes, além do estado atuando com mãos de aço sobre a população, que nada pode fazer além de seguir as ordens de quem tem a pretensão de zelar pelo bem estar do povo, como se este fosse incapaz de opinar ou escolher seus próprios caminhos.

O filme foi rodado no mesmo ano do título, curiosamente filmado nos mesmos dias retratados no diário que o protagonista Winston Smith (John Hurt) escrevia escondido do ‘Grande Irmão’, uma câmera que vigiava a todos os indivíduos. O curioso é que o totalitarismo, ao menos da maneira como retratada por Orwell, foi derrotado e no ano do título a Inglaterra – plano de fundo da obra – vivia uma situação política bem distinta. Seria, portanto uma obra anacrônica?

Ao longo da década de 80 países da América Latina eram governados por ditaduras militares que por vezes beiravam a encenação da obra de Orwell. A tortura aos que lutavam contra o governo, o controle de informações (com as famosas receitas de bolo no lugar de matérias censuradas nos jornais), a imposição de comportamento, etc. faziam com que a população tendesse a uma massa uniforme e acrítica, com focos de resistência, que com maior ou menor intensidade eram reprimidos pelo governo de partido único. Ainda que a realidade de tais países não fosse tão dura e rígida quanto o cotidiano narrado por Orwell, as semelhanças existiam e eram bem nítidas. Felizmente a grande maioria dos países tem hoje um cenário político multipartidário, com eleições periódicas e alternância de poder. Terá a obra de Orwell, mais de sessenta anos após o lançamento, se tornado anacrônica?

O regime totalitário dificilmente se sustenta por muito tempo, sobretudo em sociedades mais articuladas e instruídas, onde os focos de resistência encontram formas de fazer pequenas manifestações e, a partir delas, conseguir grandes repercussões. Porém Foucault já falava sobre a capilaridade do poder, que não precisa se expressar de forma grandiloquente por ter a capacidade de estar presente nos pequenos detalhes e em nuances da sociedade.

No filme o partido, que passa o dia todo dando informes através das telas espalhadas por todos os lugares, exalta o fato do analfabetismo ter subido a 56%. É evidente que atualmente essa é uma propaganda negativa para qualquer governo, mas não é por acaso que a educação vem sendo sucateada aos poucos, juntamente com a habilidade dos governos de países subdesenvolvidos de maquiar dados, divulgando baixas taxas de analfabetismo e omitindo o analfabetismo funcional. Portanto não é que a população aceita determinados absurdos, mas ela sequer os reconhece, encarando muitos abusos como atitudes corretas e necessárias.

A forma de noticiar fatos do dia-a-dia vem para complementar as ações do governo. Por um lado não há mais a censura direta do período da ditadura – sendo específico sobre o Brasil –, mas a mídia comandada por uma oligarquia de famílias, mais que tradicionais no ramo da comunicação, faz com que os interesses privados de classe permaneçam bem acima dos interesses da sociedade, enviesando tanto o conteúdo coberto pela mídia quanto a forma com que isso é feito, formando opiniões e guiando a maior parte da população para o lado que for mais conveniente.

Após alguns anos de população quase adestrada podemos verificar que quando em pequenos grupos, a população tem liberdade de criticar o governo e expressar a própria opinião, sem que isso termine inevitavelmente em tortura institucionalizada como na obra de Orwell. Porém qualquer manifestação que comece a ganhar maiores proporções, sob a falácia de restauração da ordem ou algo do tipo, é duramente reprimida pela polícia – que continua militar, mesmo após o fim da ditadura – com o respaldo da mídia, e consequentemente da população, que acaba acreditando que o monopólio legítimo da violência (uma das premissas estatais) pode e deve ser usado sem limites e sem alternativas.

A falta de contestação por parte da população e a submissão diante de qualquer abuso contra a sociedade, ou mesmo contra um único indivíduo da sociedade, abre caminho para a perpetuação de um estado que favorece poucos em detrimento de muitos, que aos poucos aprendem a amar um sistema que oprime, castra e limita as possibilidades, antes infinitas, dos indivíduos. Sem sombra de dúvidas, livro e filme são mesmo obrigatórios.


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Domésticas - o filme

O filme dirigido por Fernando Meirelles e Nando Olival inova ao colocar como protagonistas as profissionais que costumam atuar no máximo como coadjuvante. Aqui as domésticas ganham voz para, com bom humor, narrar histórias do cotidiano, que envolvem desde casos amorosos até problemas gerados pelo abuso de poder dos patrões, que muitas vezes insistem em olhar para empregadas domésticas como verdadeiras remanescentes da escravidão constitucionalizada.

Sem uma grande trama central, o roteiro difuso do longa aglomera pequenas histórias de algumas empregadas, que apesar de enfrentar dificuldades semelhantes em seus serviços, mantêm a individualidade com sonhos particulares, que tentam por em prática a despeito dos empecilhos encontrados no caminho.

É possível encontrar em meio às cômicas trapalhadas várias críticas a problemas sociais, que de tão enraizados muitas vezes sequer são percebidos ou classificados como tais. Conforme já mencionado, a existência de uma empregada para fazer os serviços domésticos é uma herança social da época da escravidão, quando algumas negras eram criadas nas casas dos patrões para aprenderem, desde cedo, a fazer os serviços necessários na ‘casa grande’, porém tendo sempre em mente a diferença social gigantesca que afastavam as pessoas que conviviam na mesma casa. Não é por acaso que ainda hoje a maioria das empregadas domésticas são negras; muitas exercem a mesma profissão das antepassadas, assim como durante a escravidão; e muito frequentemente as leis trabalhistas, que finalmente começam, de forma bastante tímida, a chegar a estas profissionais, são burladas descaradamente, sem que algo seja feito a respeito.

Os sonhos das personagens geralmente envolvem mudar de vida e de emprego, almejam um serviço melhor, quem sabe onde sejam tratadas com mais respeito e recebam salário digno, e condições para ter uma vida que fuja do cotidiano, cansativo pelo trabalho duro e pela repetição. Porém o ciclo de vida é fortemente fechado pela falta de estudo de quem teve que abandonar a escola para trabalhar. Mesmo o filme não mostrando diretamente a formação das personagens, é possível tirar conclusões a partir de uma série de códigos de conduta de todas elas.

Apesar do humor do filme divertir e ajudar a quebrar a acidez pesada que muitas vezes cerca o trabalho das domésticas de muitas dificuldades, talvez o roteiro pudesse ser um pouco mais direto e crítico em suas denúncias, pois mesmo não tendo a intenção de explicitar certos problemas sociais, esta possibilidade poderia ter sido mais bem explorada sem comprometer o gênero de humor, presente a todo momento. É importante que a desconstrução de alguns estereótipos, como o de que certas pessoas supostamente não querem estudar, consequentemente só conseguem trabalhos pesados e mal remunerados, seja bastante clara, pois a desigualdade de condições é histórica e atrapalha a todos, atingindo vários níveis sociais em diferentes proporções. Não estudar nem sempre é uma opção, sendo que manter a população sem estudo é uma forma de continuar tendo mão-de-obra para serviços como os de doméstica e ainda manter a população passiva, aceitando a exploração do trabalho com normalidade.

Um sintoma de que existe a consciência por parte das empregadas domésticas da importância da qualificação profissional é que, com a economia brasileira aquecida, houve um aumento na procura por empregadas por parte da classe média, com isso o valor cobrado pelos serviços domésticos aumentou e já existem pesquisas indicando que a renda extra das empregadas vem sendo investida na educação dos filhos. É claro que há uma série de barreiras sociais que dificultam a ascensão das classes mais baixas e ter mais tempo de estudo não é garantia de emprego, porém é uma etapa fundamental, tanto para o desenvolvimento profissional quanto para a consciência em relação a certos abusos promovidos por conflitos de classes.

Outra característica que notamos após um período de aquecimento econômico é a escassez de profissionais dispostos a vender a força de trabalho bastante pesado dos serviços domésticos. Com a falta de empregadas, que se dá tanto por algumas delas terem mudado de profissão quanto pelo aumento de famílias que agora estão dispostas a contratar alguém para cuidar da casa, aumentou também a indignação das classes mais altas, que sempre, desde a escravidão, foram acostumadas a pagarem pouco e explorar muito as trabalhadoras que agora começam a reivindicar nada mais que direitos minimamente básicos.

Ainda que o filme seja tímido nas críticas, é uma boa comédia que faz com que finalmente as domésticas ganhem papel de destaque no cinema, como indivíduos protagonistas das próprias vidas, ao invés de coadjuvantes em casas de classe média.


terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Narradores de Javé

O longa dirigido por Eliane Caffé em 2001 mostra a história do pequeno povoado de Javé, prestes a ser inundado quando o governo da Bahia decide represar o rio para a construção de uma usina. Dez anos após o lançamento do filme sua exibição se torna cada vez mais necessária em um país que sempre exaltou seu potencial hidrelétrico, ignorando os impactos sociais e ambientais gerados pelas imensas barragens necessárias para a construção das usinas.

Para tentar salvar o local, o povo de Javé, quase todos analfabetos, pensam em escrever um livro com as histórias locais, um registro supostamente científico, para que isso sirva de argumento e impeça a construção da barragem, já que só cidades com importância histórica são poupadas. A transcrição das histórias, difundidas oralmente no povoado, fica por conta de Antonio Biá (José Dumont), que além de saber escrever sabe vender histórias e tem o dom da malandragem, que as durezas da vida ensinam tão bem.

A partir disso o filme segue como uma deliciosa comédia marcada por regionalismos e situações inusitadas dos moradores contanto as histórias da forma como lembram. Não obstante, a memória, como já dizia Walter Benjamin, é recomposta de forma única a cada vez que a invocamos e as acareações informais entre os moradores de Javé nunca chegam a um acordo sobre o que de fato aconteceu.

A divergência em relação aos fatos é bastante natural, assim como a grandiosidade de tudo o que é contado. O povo pode ser simples, sofrido e inculto pela óptica da cultura dominante, mas também têm ícones, mártires e histórias grandiosas, talvez falaciosas como qualquer sociedade, pois isso ajuda a encobrir as mazelas, dando a cada indivíduo a sensação de ser indispensável.

Antonio Biá procura fantasiar ainda mais os fatos narrados, criando fábulas a partir de fatos cotidianos e pensando em detalhes que poderiam beirar o realismo fantástico, tão bem narrados, apesar de não serem escritos. As distorções nos fatos podem, a princípio, ser criticadas, afinal a ideia era fazer um relato científico, baseado no suposto profissionalismo da ciência, que dá veracidade aos fatos de forma quase inquestionável. Porém, se Biá cria fantasias sobre as histórias narradas, os interessados em inundar o local também apresentam dados de forma tendenciosa, omitindo problemas, minimizando impactos e vangloriando as vantagens de uma usina hidrelétrica em um local distante das grandes cidades.

Empunhando a bandeira do progresso e desenvolvimento, em detrimento de comunidades supostamente menores e menos importantes, defensores das usinas hidrelétricas atropelam detalhes primordiais, como por exemplo, para quem se destina o desenvolvimento prometido, já que uma simples sondagem em áreas alagadas com o mesmo intuito (e mesmo discurso) no passado mostrará que as populações ribeirinhas permanecem estagnadas, se não piores em relação ao período anterior ao suposto desenvolvimento. Além disso, mesmo que os povoados inundados pelas represas costumem ser bastante simples, sua população cria raízes – comprovadas pelas histórias narradas em Javé – que não merecem ser simplesmente afogadas por um lago de usina. Ainda que houvesse um programa realmente sério de realocação dos moradores, nuances do local de origem são insubstituíveis, como a personagem do filme que lembra o cemitério da cidade, onde seus antepassados estão sepultados, e agora será submerso para o progresso de cidades e pessoas que aquela população sequer conhece.

A geração de energia é uma necessidade tão grande quanto os problemas que ela gera, não apenas no Brasil, mas em vários outros países que utilizam outras matrizes energéticas. Se a demanda por energia e o potencial hidrelétrico devem ser unidos, o mínimo que se espera – para não entrar no imenso impacto ambiental que uma represa causa – é que o desenvolvimento gerado pela nova usina chegue de fato à população que sacrificou suas terras, suas histórias, suas lembranças, para que grandes centros urbanos pudessem seguir suas vidas como se nada diferente tivesse acontecido. Para que as pessoas tenham histórias, é necessário condições de vida para isso, de forma que não sobrevivam para trabalhar, mas vivam a vida com o direito de extravasar a imaginação e bom humor, tão bem retratados no filme.

Com as discussões sobre a usina de Belo Monte bastante acaloradas, com ambos os lados defendendo bravamente seus argumentos, vemos que não há decisão unânime e plenamente satisfatória, mas os moradores de Javé nos mostram a discrepância de forças entre a população, que só tem suas divertidas e encantadoras histórias, e todo o aparato governamental, capaz de convencer até mesmo de que os impactos de uma hidrelétrica são pequenos. Claro que o filme é um recorte fictício baseado em tantos povoados que passaram e ainda vão passar por situações semelhantes, mas aquele povo passional e divertido sem dúvida é mais esclarecedor que a recente guerra de vídeos sensacionalistas, pró e contra Belo Monte.


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Chico Rei

Uma das grandes funções do cinema é servir de aporte para a transmissão de fatos históricos, que são de suma importância tanto para evitar a repetição de tragédias quanto para evidenciar certos absurdos passados que influenciam muito em nosso cotidiano. Toda história é contada a partir de um ponto de vista, cuja verdade acaba sendo formada por uma dialética entre lembranças e intuitos. Nessa linha de raciocínio temos, por exemplo, inúmeras obras retratando os horrores do holocausto, com algumas delas criadas por judeus que se esforçam em retratar o fato sob o ponto de vista do oprimido, ao invés do opressor.

A Segunda Guerra teve seus campos de batalha distantes do Brasil, mas nosso ‘holocausto’ foi bem mais longo. Durante três séculos negros foram covardemente capturados na África e condenados ao trabalho forçado nas lavouras e minas de ouro na América. Outra diferença para o holocausto é que hoje, judeus como Steve Spielberg podem retratar com maestria a vida de pessoas como Oskar Schindler, enquanto negros brasileiros continuam sofrendo duros preconceitos e enfrentando barreiras sociais e econômicas, que dificultam até mesmo a narrativa da história sob o ponto de vista dos oprimidos. Ainda assim temos algumas obras muito bem elaboradas para a descrição da escravidão. Uma delas, com direção de Walter Lima Junior, conta a história de Chico Rei, lendária figura que pagou pela liberdade de tantos negros quanto lhe foi possível comprar com o ouro que, com mais facilidade que o comum, encontrava nas minas.

Difícil narrar com precisão a vida de Chico Rei, interpretado por Severo d’Acelino, afinal a documentação da época era precária, sobretudo em relação a assuntos vergonhosos como a exploração tão cruel de seres humanos, por isso o filme é baseado em relatos populares e outras obras com o mesmo tema. Mais importante do que o retrato fiel do que aconteceu, é a simbologia criada ao redor do escravo que com sua facilidade para encontrar ouro, poderia tranquilamente viver em paz, mas preferiu salvar o máximo de pessoas possível. Como um tipo de Schindler de sua época, o ex-escravo pode comprar a liberdade de seu povo – aceitando aqui que a liberdade pode ser comprada – o que o torna herói em uma época em que o racismo era institucional e subsidiado até mesmo pela igreja.

Os relatos históricos do transporte desumano, do leilão de escravos, dos castigos, dos abusos e uma série de outras nuances, com a intervenção do cinema ganham a força da imagem, que choca, mas não chega sequer a um vislumbre do que foi viver tudo isso, sentir na pele e na consciência tudo o que nenhuma mente sã seria capaz de criar para rebaixar um ser humano para um estado indigno até mesmo para animais. Se hoje a situação encontrada no Brasil melhorou – já que transformar a escravidão de constitucional para crime, apesar de ser o mínimo, é uma melhora – ainda está longe do ideal e talvez mais próxima da escravidão do que gostaríamos. Em um mundo menos segregado, mas ainda preconceituoso e com fortes bases da estrutura escravocrata, as grandes fontes de renda não são mais minas de ouro, mas grandes empresas cujos donos, não por acaso, nada têm de descendência africana.

Infelizmente o filme fornece vários elementos que nos permite fazer ligação com a sociedade de hoje, não é preciso nem criatividade, basta um jornal, um programa de televisão, ou uma simples caminhada pelas ruas para notar o quanto o período da escravidão nos influencia e como essa influência é absurdamente aceita passivamente. Para piorar – como se precisasse – teorias são criadas ao longo dos anos para tentar atenuar a barbárie e, como sempre, culpar as vítimas por sua condição. Neste caso específico, é frequente atribuir a captura de escravo aos próprios negros de tribos rivais, omitindo convenientemente que essa captura era feita sob a mira de armas de fogo e das ameaças mais torpes.

Esta falácia absurda e ignorante pode ter duas justificativas. Uma delas é a evidente busca de alívio moral daqueles que se recusam a admitir a culpa, preferindo jogá-la na vítima e surpreendentemente não sentir nenhum peso na consciência por isso (caso ainda não tenha ficado claro, faço um paralelo quase infantil para dizer que, ainda que de fato as tribos rivais capturassem outras por vontade própria, a receptação de carga roubada também é crime).

A outra hipótese é bem subliminar no filme: a de julgar os escravos com base na atitude dos europeus; atitude esta que se dá pela lógica de mover o mundo pelos interesses, ao invés dos princípios. Ou seja, é possível ver no filme que, diferente de Chico Rei, que ajudou ao máximo seu povo, europeus que vinham para o Brasil eram explorados pela metrópole portuguesa, de forma leve se comparada com a exploração dos negros, porém a relação entre europeus e senhores de escravos nunca chegou perto da cooperação que havia entre os negros. Como lidar com essa inveja? Jogando a culpa nas vítimas, como sempre.

Essa é uma grande produção da década de 80, obrigatória ao pensarmos em escravidão, assim como o longa “Quanto vale ou é por quilo?”, que adapta Machado de Assis para comparar mais explicitamente a época da escravidão com os dias atuais.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cinema Aspirinas e Urubus

O longa de Marcelo Gomes é um filme de época. A história se desenvolve em 1942, quando o alemão Johann (Peter Ketnath) vem para o Brasil para fugir da guerra que devastava seu continente. Aqui já temos um dos tantos pontos interessantes do filme. Demora um pouco para notarmos que tudo ocorreu há quase setenta anos e durante todo o tempo temos a incômoda impressão de que é um relato atual. A gente surrada pelo tempo, cujas marcas de expressão impedem de estimar a idade, condiz com o cenário rústico, que dá ao filme de época a cara de contemporâneo, uma espécie de desdobramento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que ganhou tons desbotados no lugar do original em branco e preto.

O sertanejo aqui segue os estereótipos quase inquebráveis com Ranulpho (João Miguel), que por acaso aproxima-se de Johann e ambos desenvolvem uma grande amizade, mesmo com tanta diferença cultural entre os dois. O trabalho do alemão é vagar pelo sertão, improvisando um pequeno cinema para exibir um filme sobre os benefícios da aspirina para os moradores da cidade grande. Se hoje, diante do bombardeio de informações e vídeos, as propagandas têm o poder de convencer as pessoas de que elas devem comprar uma coisa da qual nunca sentiram falta – por vezes sem sequer saber qual a utilidade – o que dizer de pequenos vilarejos isolados na década de 40.

Nosso primeiro impacto pode ser o de crítica às pessoas que compram aspirinas sem motivo e acabam gastando o dinheiro que fará falta para comprar bens essenciais. Mas a lógica de exibir uma mercadoria consumida em um local mais desenvolvido, para convencer consumidores de outros locais a comprá-la é reproduzida em várias esferas. Com o mundo globalizado e a facilidade de disseminação da informação, que não precisa mais viajar pelo sertão em um caminhão, improvisando um cinema, uma das principais técnicas de marketing continua sendo a exibição de estereótipos consumindo um produto que posteriormente será oferecido para quem, muitas vezes, nunca chegará perto de atingir o estereótipo da propaganda. Parece que mesmo muitas décadas depois da história narrada no filme, os urubus permanecem por toda parte.

A expropriação do dinheiro dos cidadãos é mostrada mais diretamente através da vendas das aspirinas, entretanto uma outra forma de enriquecimento do privado a despeito do público é citada no filme através do ciclo da borracha, já decadente na época, mas que movimentou muito dinheiro e muita gente ao longo da guerra, quando os nordestinos viram na necessidade de mão-de-obra para a extração do látex na Amazônia o vislumbre de uma vida melhor. O resultado é bem conhecido do povo brasileiro, quer dizer, alguns poucos enriqueceram o suficiente para manter infindáveis gerações de sua prole como poderosos donos de terra, não necessariamente brasileiros, basta lembrar que uma cidade da região amazônica se chama Fordilândia, uma ‘homenagem’ a Henry Ford, que investiu na extração de matéria-prima na região.

O que o filme deixa implícito, e a história nos revela, é que o ciclo da borracha foi um gérmen das parcerias público-privadas atuais, onde o estado entra com o investimento – neste caso custeando o transporte dos trabalhadores do nordeste para a região norte, além de toda assistência necessária para a população amazônica, que cresceu subitamente – e as empresas ficam com o lucro de tudo que é extraído, pagando taxas irrisórias perto do valor arrecadado com matéria-prima.

Entre tantos pontos do filme que poderiam ser ressaltados aqui, vale lembrar que em meio a tantas insanidades que rondaram a Segunda Guerra, cujos preceitos nazistas continuam a nos assombrar através de ignorantes que insistem, algumas décadas depois, em pregar intolerância e a tão ridícula quanto inexistente superioridade racial, destaca-se a bonita amizade entre um alemão, contrário à guerra, e um nordestino, que pouco sabe sobre o teor do conflito. Provavelmente essa relação não foi intencional, mas usar uma nacionalidade que em tempos de guerra remete ao nazismo, e um estereótipo tão atacado pelo nazismo velado em nosso país obteve um ótimo resultado ao mostrar que a convivência pacífica no plano individual pode acontecer livremente. Sem intolerância, sem preconceito, sem ignorância.

É mais uma ótima produção nacional, que obteve pouco destaque. Faz pensar na tela itinerante que Johann levava sertão adentro pode ser uma alternativa interessante, ao menos em curto prazo, para a escassez de cinemas pelo interior do país. Se serviu para a divulgação das aspirinas, sem dúvida serviria para a divulgação da cultura, essa sim presente massivamente em centros urbanos e pólos desenvolvidos e tão necessária para áreas distantes e carentes.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Nina

O diretor Heitor Dhalia foi ousado ao dirigir em seu primeiro longa uma adaptação da obra Crime e Castigo, de Dostoievski. Trocando o protagonista por Nina (Guta Stresser) e a Rússia do século XIX pelo Brasil do século XXI, vemos o tema central da obra desenvolvido pelo diretor e os dramas particulares, as crises psicológicas e os sentimentos que há mais de cem anos remoem tanto o personagem da literatura, quanto os que o acompanharam, muito bem representados em cena.

A narração de Nina antes mesmo do início do filme já dá a entender que, na divisão proposta por Dostoievsky entre pessoas ordinárias e extraordinárias, ela opta pela segunda categoria. Ao longo da trama isso se traduz como alguém que se recusa a aceitar um status quo absurdo e inadmissível, que sem nenhuma justificativa, ainda que cínica, tenta tirar da protagonista, recém chegada a uma grande cidade, as oportunidades de viver a vida de forma prazerosa, ao invés de manter-se constantemente sob a pressão das obrigações diárias de trabalho e contas para pagar.

É curioso – e preocupante – notar que alguns elementos descritos inicialmente há tanto tempo na Rússia podem ser transpostos com bastante fidelidade para a vida contemporânea no Brasil, sem que isso cause estranheza ou anacronismo. A vida da personagem retratada pode ser bastante dura, mas a alternativa de ceder às obrigações e se encaixar no padrão de acordar cedo, passar o dia trabalhando e ganhar dinheiro suficiente apenas para pagar o quarto alugado não é nada sedutora para Nina.

Em oposição à jovem sonhadora, que veio para uma grande cidade para viver, ao invés de se manter viva, e prega no quarto os desenhos que faz para extravasar seus sentimentos, o diretor apresenta Dona Eulália (Myriam Muniz), a velha mesquinha que ao alugar um dos quartos para Nina tenta cobrar por cada mísero detalhe que pode ser rentável de alguma forma. Não há nada de extraordinário nela, a construção da personagem que mantém seu apartamento escuro, mal ventilado, com mobília antiga e sua voz aguda e tremula é condizente com suas atitudes tão duradouras, já que se encaixam em um antigo romance russo e em um filme brasileiro contemporâneo.

A velha mesquinha e irritante, presa às formalidades e individualista ao extremo é uma forma de criticar, exacerbando, o posicionamento legalista e mantenedor de uma antiga ordem vigente. Entre as diversas formas de encarar o individualismo em uma grande cidade, é possível pensar na satisfação de Dona Eulália com sua vida de cárcere voluntário, fechando qualquer brecha para tudo o que há para fora de seu apartamento. O problema é que Nina é a simbologia contrária, com sua juventude que anseia pela vida, se esforça por quebrar padrões e tenta sempre propor algo novo. É neste ponto que o individualismo da velha senhora passa a ser questionável, pois extrapola os limites da própria pessoa e passa a tentar ser imposto aos que estiverem por perto.

Com as bandeiras de liberdade e igualdade levantadas há dois séculos, na Revolução Francesa, a ideia de liberdade seduz e inspira a jovem Nina a romper as inúmeras amarras que tentam arrastá-la para a vida monótona e sem brilho, mas também tem inspirado, por séculos, a velha Eulália, que parece trazer seus conceitos da Idade Média e acredita que a liberdade está no direito de ignorar o outro, vivendo em sociedade com a atitude paradoxal de ser legalista até o ponto em que as leis são vantajosas para si.

Já a igualdade – que a princípio visa os mesmos direitos e oportunidades – nas mãos de tantos que, mesmo sem admitir, se encaixam muito bem no perfil de Dona Eulália, vem ganhando contornos de planificação dos indivíduos, ou seja, o padrão de comportamento é imposto para que os indivíduos sejam iguais ao invés de seus direitos e oportunidades. Esse embate é o ponto central que rege a vida de Nina. Até que ponto ela pode lutar pelo seu direito de ser livre e manter suas obrigações, mas acabar com as explorações (termos que vêm sendo constantemente confundidos)?

Aqui o filme surpreende se distanciando do livro, pois se Dostoievski já indica no título de sua obra que houve um crime, a tendência de muitas interpretações é de barrar a simbologia da velha ordem e dos novos questionamentos e se ater ao crime em si, que excluindo as metáforas é evidentemente reprovável. Sem entrar em detalhes sobre o final do filme, após vivermos toda a angústia de Nina, com o medo servindo de barreira para sua vida, nos deparamos com algo que deixa o filme bastante emblemático e curioso. Talvez uma alternativa à forma da morte de uma velha (ideologia) de controle dos indivíduos e imposição de comportamento através da supremacia econômica.


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Os Infiltrados (The Departed)

O filme tem como base da trama agentes da máfia e da polícia infiltrados no campo de ação dos adversários. Atuar em um campo com o qual não se tem familiaridade e mesmo assim não ser descoberto é praticamente impossível, pois são tantos detalhes que podem denunciar a falta de familiaridade com o ambiente que apenas quem conhece as nuances de um determinado campo poderia ser capaz de fingir, ainda que com certa dificuldade, naturalidade naquele meio.

Assim o mafioso Frank Costello (Jack Nicholson) colocou em prática um plano que teria resultados em longo prazo, treinando Colin Sullivan (Matt Damon) desde a infância para que ele pudesse se tornar policial e servir de informante sobre os planos policiais em relação à máfia. Pelas cenas do filme é possível notar a formação diversificada por parte de Sullivan, cuja socialização contou com elementos religiosos quando era coroinha, métodos dos mafiosos como cobrança de propina de comerciantes, a instrução persistente de Costello de que os homens fazem seus próprios caminhos e também uma cultura bastante refinada, que fica latente quando o personagem valoriza vestir terno ao invés de uniforme policial, ou quando lamenta o restaurante não servir pato com laranjas. Com isso vemos grande capital cultural nas atitudes do personagem.

Apesar de ter crescido junto à máfia, Sullivan não é um criminoso vulgar e suas ações têm violência velada, pois foi socializado para agir dentro da polícia com atitudes baseadas sempre na inteligência e postas em prática com muita calma e sutileza. É possível perceber que o habitus do personagem gira em torno de tomar as atitudes corretas, devidamente pensadas e muito bem articuladas para que suas metas sejam atingidas, ou seja, trilhar um caminho por onde deve seguir.

O sucesso do plano de Costello, de infiltrar um agente na polícia, é claramente consolidado diante da facilidade e rapidez com que Sullivan inicia seu trabalho na polícia e destaca-se como homem de confiança. O agente não foi socializado para ser um policial qualquer, mas para executar serviços de inteligência, baseados na perspicácia e astúcia, de forma que em nenhum momento alguma suspeita é levantada contra ele. Mesmo quando a antipatia dos outros policiais é despertada ele dribla as adversidades com a prepotência de quem foi treinado para ter poder e saber utilizá-lo a seu favor.

O agente infiltrado na máfia pela polícia é Billy Costigan (Leonardo DiCaprio). Ainda que não tenha sido proposital como no caso de Sullivan, ele também foi criado em um ambiente, pois a família era de mafiosos, e tentou ingressar em outro, já que queria ser policial. Aparentemente seria a mesma trajetória para os dois, porém a socialização de Costigan não tinha como objetivo colocá-lo na polícia, de forma que esta inserção em um campo com o qual não tinha familiaridade, diferente de Sullivan, foi problemática desde o início.

O sargento Dignam (Mark Wahlberg) deixa claro que Costigan tinha origem irlandesa, foi criado no sul e membros de sua família eram ligados à máfia, ou seja, totalmente contrário ao indivíduo traçar seu próprio caminho e excluindo a academia de polícia do campo de possibilidades do personagem. Talvez a hostilidade por parte de Dignam foi encenada apenas para colocar como única opção para ser policial o ingresso na máfia como agente infiltrado, pois ninguém mais indicado para o serviço do que alguém que tem todo o capital social necessário para aproximar-se do chefão da máfia.

Este trabalho não era exatamente a forma com que Costigan pensava em ser policial, mas acabou sendo a única possível. Provavelmente a vontade de combater a máfia motivou o personagem a aceitar o serviço, mas em pouco tempo a meta passou a ser salvar a própria vida, já que se Sullivan fosse descoberto provavelmente seria preso, e se ele fosse descoberto sem dúvida seria morto.

O capital social de Costigan permitiu fácil aproximação da máfia e seu capital cultural fez com que a identificação com o chefão Frank Costello fosse quase imediata. O comportamento agressivo do personagem é notado em várias ocasiões, mesmo que não haja motivações profissionais, ou seja, Costigan foi socializado em um meio bastante hostil e violento, tendo consolidado o habitus de resolver os problemas através da violência física. Mesmo tendo que pensar rápido e agir friamente, com muita inteligência da mesma forma que Sullivan, o comportamento dos personagens fora do ambiente de trabalho demonstra habitus quase opostos, pois a educação e polidez de Sullivan contrastam com a agressividade de Costigan, sendo que o primeiro foi treinado conforme já discutido, e o segundo apenas teve que desenvolver técnicas para sobreviver em um ambiente nada amistoso, onde impera a lei do mais forte.

Em uma cena que deixa implícita a diferença de formação, Costello reconhece a importância da escola, logo é possível deduzir que a instituição teve grande peso na formação de Sullivan, porém Costigan indica não ter interesse, assim com base nas teorias de Bourdieu é possível notar que a escola não teve tanta influência na socialização do personagem. O que é claramente perceptível é que por mais chocante que seja o comportamento dos mafiosos Costigan consegue agir com a naturalidade necessária para que não levante suspeita. Ainda que reconheça o horror da barbárie ele consegue manter o controle e expressa isso para a psicóloga, quando diz que o coração pode disparar, mas as mãos não tremem.

Ao longo do filme notamos que os objetivos dos dois infiltrados são bastante semelhantes, porém Sullivan mostra-se muito mais tranquilo em seu trabalho, enquanto Costigan vive em uma tensão constante, prestes a explodir. Isso é compreensível ao pensarmos que Sullivan exerce o papel para o qual foi preparado durante toda a vida, logo sente a consagração de um trabalho em suas atitudes. Costigan vive a situação contrária, pois não é exatamente um policial como gostaria de ser, não é um mafioso mesmo inserido dentro da gangue de Costello, e quando conquista Madeleine (Vera Farmiga) ele não é mais que um amante, portanto foi uma ótima opção do diretor Martin Scorsese mostrar a cena do casal com um cover da música “Confortably Numb”, pois em todas as situações da vida de Costigan ele não é muito mais que uma versão do original.

Apesar de serem campos relativamente semelhantes, máfia e polícia possuem no filme diferenças relevantes, assim como a formação dos dois agentes. Uma delas é a insubordinação da máfia ao estado, pois ainda que os mafiosos tenham suas próprias leis, punido os transgressores de maneira muito mais severa que o estado, o chefe da máfia não precisa prestar contas de suas atitudes e pode agir arbitrariamente. Já a polícia deve agir dentro de seus limites, de forma que mesmo sabendo dos crimes da máfia, não possui meios de incriminar Costello sem provas claras.

Em consequência disso, como já foi mencionado, Costigan sofre muito mais pressão para ser perfeito em suas atitudes, pois para a máfia não há outra punição além de assassinato, muitas vezes precedido de tortura. No caso de Sullivan qualquer tipo de punição envolveria uma série de direitos por parte do acusado, cujos quais a polícia não tem meios legais de violar.

Outra diferença é que a máfia age exclusivamente em prol da própria máfia, visando o lucro independente dos meios que precisam ser seguidos para atingi-los, já a polícia do filme não visa interesses pessoais e não há cenas que mostrem negociação com mafiosos, subornos ou algo do tipo, apenas a meta de combate a máfia. Ainda que muitas técnicas sejam parecidas, há a diferença dos objetivos.

Um ponto curioso do filme é a forma como a origem irlandesa dos personagens é tratada. Muitas vezes essa origem é depreciada pelos próprios personagens irlandeses, ou seja, eles podem ter os valores consolidados por suas famílias, mas caem em contradição por pretenderem ascensão negando as próprias origens. Apesar de não existirem elementos sobre a formação do mafioso, supomos que sua socialização o levou à máfia, porém suas atitudes influenciam no meio em que vive, forçando mudanças estruturais no campo da máfia.

Com um enredo baseado em tantos detalhes, em que qualquer passo em falso poderia desencadear uma série de reações adversas, é natural que as tensões acumuladas venham a explodir. O enredo extremamente bem amarrado é mais uma grande obra de Scorsese, um dos gênios do cinema, que é capaz de fornecer em uma única obra inúmeros elementos de análise. Sem revelar detalhes do final do filme, uma possível dúvida – independente de como ele termine – é se Sullivan e Costigan poderiam viver como policial e mafioso de forma definitiva.

Sullivan teria condições para isso, afinal ficou muito tempo trabalhando na polícia sem despertar suspeitas. Porém ele teria que reestruturar sua vida, que foi toda destinada para ser infiltrado na instituição e identificar informações relevantes à máfia. Provavelmente essa efetivação seria mais fácil para Costigan, que almejava a inserção em um campo desconhecido, para o qual não estava plenamente preparado e que logo no início sofreu grande rejeição.




terça-feira, 8 de novembro de 2011

Machuca

Dois anos antes do filme “O ano em que meus pais saíram de férias” ser lançado no Brasil, o chileno Andrés Wood lançava, em 2004, o filme Machuca, que também aborda um período da ditadura militar sob o ponto de vista de uma criança. Ambos são filmes bem simples e, voltados para o grande público, visam mostrar alguns impactos do período ditatorial sobre as crianças.

Apesar de a intervenção militar ter sido bastante dura nos países latino-americanos, algumas nuances fazem com que a história de cada país ressalte pontos específicos. Assim, em Machuca, o diretor reserva a primeira parte do filme para mostrar um pouco da sociedade chilena nas vésperas do dia 11 de setembro de 1973 – quando o presidente Salvador Allende, eleito por voto popular, foi covardemente derrubado do poder – para em seguida apresentar alguns resultados da ação militar sobre as pessoas.

Como a sociedade é muito multifacetada para ser representada em todos os seus aspectos dentro de um único filme, a opção aqui é polarizar os estereótipos entre a classe média alta, indignada com o governo de Allende, e a classe pobre, defensores do governo. A metáfora para essa ilustração é montada na escola particular, frequentada por Gonzalo Infante (Matías Quer), que passa a fornecer bolsa integral para alguns estudantes pobres, entre eles Pedro Machuca (Ariel Mateluna).

É a amizade entre Gonzalo e Machuca que guia o filme para uma série de referências que constroem um recorte da sociedade chilena da época. Muitas coisas passam despercebidas no Brasil, como a distinção de classe através do sotaque ou a diferença de nomes, pois o menino pobre é chamado pelo sobrenome (Machuca) estigmatizado por caracterizar pessoas pobres. Outras distinções são mais que claras, como a casa, roupas e hábitos dos dois amigos. Dentro do universo infantil os discursos dos adultos são ramificados para apontar as diferenças de classes.

Com estereótipos bem simples – por vezes até demais – vemos como os pais dos estudantes da escola particular rechaçam a presença de alunos bolsistas, alegando que os hábitos destes iriam influenciar seus filhos (evidentemente fechando os olhos para a falta de educação que já marcava alguns alunos vindos da classe média), um ponto que chama a atenção é a manifestação da burguesia contra o governo Allende, extremamente confluente com o patético movimento "Cansei", que surgiu meteoricamente no Brasil em 2007, quando um presidente ascendeu da camada popular – mesmo trabalhando muito mais para as classes altas que Allende.

A segunda parte do filme é para abordar o início dos quase vinte anos de regime ditatorial que seguiram o golpe militar chileno. É notável a mudança de ritmo do longa, que acompanha a mudança social ocorrida no país, como em qualquer estado que subitamente passa a ser tutelado pela intolerância. Enquanto a sociedade entrava em conflito para defender seus interesses e pontos de vista, os mais jovens, talvez com senso crítico menos viciado pelas opiniões que nos bombardeiam dia a dia, conseguem encontrar pontos em comum e perceber que o estranhamento causado pelo simples deslocamento de um para o ambiente do outro – seja o menino pobre na mansão do amigo, ou o menino rico no barraco de Machuca – não é aceitável, ou ainda natural.

É evidente que conflitos sociais, sobretudo em sociedades com grandes abismos entre as classes, sempre existirão. A forma de resolução dos conflitos é que deve ser discutida, pois no Chile e países vizinhos a solução foi a intervenção de uma instituição nascida e criada para a guerra, para o conflito armado onde o mais forte sufoca o mais fraco. Militares não servem para solucionar conflitos, para isso existe a política, e a intervenção militar se dá quando a minoria em número se recusa a dialogar com a minoria em poder bélico.

Alguns filmes vêm sendo lançados no cone sul abordando o período militar, mesmo tendo passado quinze ou vinte anos após o fim formal do totalitarismo. Talvez pareça anacronismo revisitar temas de décadas passadas com tantas questões sociais atuais a serem abordadas. O detalhe é que os anos de chumbo deixam raízes profundas. O ensino superior chileno atualmente é particular – semelhante ao colégio onde Gonzalo estudava – e isso vem excluindo boa parte da juventude chilena há muitos anos. Recentemente as antigas reivindicações do movimento estudantil, até então ignoradas, ganharam força e abandonaram os papéis a partir do momento em que estudantes foram para as ruas – semelhante às revoltas retratadas no filme. O resultado foi o mais previsível possível, com os mesmos militares, a mesma disparidade de força e a mesma ausência de diálogo.

No Brasil não é muito diferente. Nossa polícia militar se mantém entre as mais violentas do mundo, superando com folga a polícia norte-americana (mundialmente famosa pela sua truculência). Boa parte da sociedade, acostumada há décadas a acreditar que a “ordem” trará “progresso” chega a se orgulhar da instituição militar encarregada de sua segurança, ainda que a ação continue – assim como retratado por Andrés Wood – apenas perpetuando um status quo insatisfatório.

Machuca é exageradamente didático para mostrar que integrar classes sociais desde cedo, oferecendo educação igualitária para todos, não é isoladamente a solução de problemas, porém é um passo fundamental. Além disso, a intervenção militar na sociedade civil, sobretudo na educação, não soluciona problemas, porém é um passo fundamental para perpetuá-los.


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