terça-feira, 4 de abril de 2017

Huacho

Com o fim da Segunda Guerra e o desenvolvimento da tecnologia que os novos tempos de paz proporcionaram às grandes potências, a população mundial passou a migrar do campo para as cidades. Em pouco tempo as cidades passaram, pela primeira vez na história, a concentrar a maior parte da população, relegando ao campo poucas famílias que resistem à tecnologia e aos grandes latifúndios.

Este longa do diretor chileno Alejandro Fernández Almendras mostra através de estereótipos reunidos na mesma família as dificuldades da vida no campo em uma sociedade majoritariamente urbana, que está cada vez mais imersa no modo de produção industrial e que não percebe as diferenças entre o ritmo das cidades e a vida no campo.

Distante do mercado financeiro e suas ‘commodities’, Clemira (Clemira Aguayo) segue produzindo queijos artesanais, a despeito da idade avançada, e deve negociar sua mercadoria na beira da estrada, com motoristas que não costumam levar em conta a variação do preço do leite ou a diferença de um produto artesanal. Estamos tão habituados com uma indústria que produz toneladas de queijos, que sequer paramos para pensar em como a manufatura ganha em qualidade, sendo justo um preço mais alto.

Clemira já não tem grandes aspirações econômicas. A velha senhora quer vender seus queijos para ajudar na renda da família. Na geração seguinte à dela está sua filha Alejandra (Alejandra Yañez), cujo contato com as pessoas da cidade é maior por trabalhar diretamente com o turismo.

Tradicionalmente a mão de obra no campo não é tão especializada quanto na sociedade industrial. As atividades são realizadas conforme a necessidade, por quem estiver apto naquele momento. Desta forma Alejandra é faxineira em uma espécie de trabalho híbrido entre campo e cidade. O local onde trabalha recebe turistas dispostos a conhecer um pouco da vida do campo, levando inconscientemente a ideia de exploração do trabalho.

O consumo urbano pode ficar distante da geração de Clemira, mas Alejandra não quer abrir mão de suas vaidades, independente de qual seja sua função ou como será recebida por conta do cuidado com que se arruma para o trabalho. Uma possível tendência de censura ao seu consumo deveria esbarrar no fato de que seu salário pode ser gasto da maneira como ela achar melhor, pois independente de onde more, qualquer pessoa deveria ser remunerada com um valor que possibilite mais do que o consumo de necessidades básicas.

O passo seguinte da transição entre campo e cidade é feito através de Manuel (Manuel Hernández), o filho de Alejandra, que ainda não trabalha, mora com a família na zona rural, mas frequenta a escola na cidade simbolizando o preconceito que ainda existe em relação àqueles que moram no campo.

Longe do romantismo idealizado, a escola costuma ser um ambiente bastante hostil, sobretudo aos que sofrem diversos tipos de violência não coibida pelos profissionais de educação. Como podemos ver no filme, Manuel só quer fazer parte do grupo de crianças de sua idade, mas seu acesso é vetado pela origem distinta. 

Corroborando a ideia de uma pessoa simples e inocente por vir do campo, na verdade a distinção se dá pela violência da exclusão, que pode parecer algo menor e passageiro, porém com potencial devastador para o indivíduo, dependendo de como o tratamento discriminatório será trabalhado ao longo da juventude.

Fechando o ciclo da família o diretor volta à primeira geração através do patriarca Cornelio (Cornelio Villagrán). Seu papel ganha destaque diante da notoriedade da reforma da previdência, debatida de maneira superficial. Apesar de estar em um filme chileno, o personagem pode representar inúmeros trabalhadores rurais brasileiros.

Não bastasse a idade avançada que já deveria garantir a qualquer um a tranquilidade do dever cumprido com a sociedade, Cornelio dedicou a vida ao trabalho pesado do campo e segue oferecendo o corpo cada vez mais fragilizado às tarefas difíceis como a construção de cercas.

A família retratada nas telas proporciona reflexões a respeito das políticas públicas, que buscam um padrão social completamente excludente da realidade rural. Não bastasse a concorrência desigual de latifúndios mecanizados, que produzem muito mais e não empregam quase ninguém, ainda devem enfrentar a legislação voltada ao estilo de vida urbano.

Isso não significa que a vida na cidade seja fácil ou que a injustiça seja responsabilidade direta daqueles que nunca tiveram nenhum contato com a população rural, mas as diferenças expostas no filme deveriam ser consideradas com mais atenção e menos preconceito, sobretudo por quem as conhece somente pelo recorte de um filme.


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