segunda-feira, 8 de março de 2010

Histórias de amor duram apenas 90 minutos

O roteirista Paulo Halm já havia mostrado seu talento em diversos longas como Guerra de Canudos (1997) ou Amores Possíveis (2001). Desta vez, além de escrever o roteiro, Halm assumiu com competência a direção deste filme que traz a história de um complicado triângulo amoroso, permeado por cenas cômicas e fazendo referências à obras literárias.

Zeca (Caio Blat) é o protagonista. Sonhando em ser escritor, o personagem tem um promissor romance na cabeça, mas não consegue escrevê-lo. É sustentado pela mesada do pai e seus hábitos lembram o byronismo, pessimista, angustiado, mas ao mesmo tempo egocêntrico e na eterna busca de um relacionamento amoroso perfeito, que tenta sanar com Júlia (Maria Ribeiro). Não haveria nada de errado se Zeca fosse um adolescente que, como tantos outros, vivesse os ideais do romantismo. O problema é que ele já tem trinta anos e poucos resultados concretos na vida.

Sua esposa aparenta ter muito pouco em comum com ele. Júlia é professora e dedica-se ao sonho de fazer seu mestrado em Sorbonne, sendo que este projeto toma a maior parte de seu tempo e muitas vezes ela recusa a atenção de Zeca para não prejudicar os estudos. Uma de suas alunas é Carol (a argentina Luz Cipriota), que talvez seja a personagem mais carioca do filme, aproveitando os prazeres da Lapa e das praias do Rio.

Quando a amizade entre professora e aluna estende-se para fora da sala de aula Zeca, apesar de seu estilo de vida digno de escritores do romantismo, tem uma atitude de Dom Casmurro, personagem mais conhecido do realismo, suspeitando de que sua mulher esteja lhe traindo com Carol. As semelhanças machadianas param por aqui, pois o desenvolvimento da história acarreta em uma sequência de atitudes imaturas de Zeca – lembrando algumas vezes o personagem Cristiano que Caio Blat interpretou em Cama de Gato, apesar de este ter sido muito mais trágico – e como todo adolescente perdido, é ao pai que o jovem recorre.

A presença de Daniel Dantas é curta, porém muito marcante tanto para o lado cômico (assim como a de Hugo Carvana), quanto para compreendermos o protagonista. O pai acredita muito no potencial do filho e joga para ele a própria esperança, frustrada, de ser escritor. Os constantes mimos ao longo da vida fizeram com que Zeca ficasse acomodado até os trinta anos, sem maturidade para solucionar os problemas ou traçar metas concretas que rompam a barreira dos sonhos.

Carol em determinado momento é o elemento que inspira a vida de Zeca, como a realização de seus desejos que servem para inspirar seu romance inacabado e dão sentido para sua existência, porém o triangulo amoroso é insustentável, e a ideia fixa de que Carol e Júlia têm um caso persiste. A resolução deste impasse cabe ao personagem que finalmente tem uma responsabilidade da qual não pode fugir.

É interessante a presença de Zeca como narrador, pois seria um elemento dispensável, mas sua existência indicando claramente se tratar da narração de um filme sugere que a obra a ser composta pelo personagem, a princípio um romance, acabou sendo um filme; não de ficção sobre a vida de outras pessoas como ele sonhava, mas sobre sua própria vida.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos)

Paulo Sacramento nos apresenta um documentário gravado no presídio do Carandiru, meses antes da desativação do mesmo. É uma visão mais realista que o longa mais conhecido sobre o tema (Carandiru, 2003, de Hector Babenco), não só pelo estilo de documentário despido de fabulações, mas também por muitas filmagens terem sido feitas pelos próprios detentos.

Evidentemente as tomadas feitas pelos presos podem ser taxadas de parciais e podem mostrar apenas o pior lado do sistema prisional – assim como qualquer edição ou qualquer obra que vise o circuito comercial –, de qualquer forma é interessante acompanharmos os dias e noites que mostram a diversidade que existe entre a massa de detentos, tratados da mesma maneira, independente do delito que tenham cometido.

Os dias longos de cárcere demandam atividades que variam entre trabalhos simples, como confecção de pipas e bolas de futebol; atividades artísticas como desenhos e esculturas, algumas rudimentares, mas outras que impressionam pela qualidade; religiões diversas contam com adeptos do catolicismo, candomblé, evangélicos, etc. E atividades ilícitas como produção da chamada “maria louca”, a cachaça de restos de comida; separação de pedras de crack e papelotes com maconha. Há uma série de equívocos por trás da presença de drogas na cadeia, afinal alguém permite que estas substâncias cheguem até os presos, os carcereiros sem auxílio policiais – quase sempre mal preparados – não têm condições de arriscar a própria vida para coibir o tráfico interno e devemos considerar o fato de que drogas como o crack geram alta dependência do usuário. É extremamente difícil abandonar o vício quando em liberdade e com apoio de pessoas próximas, mais ainda quando o usuário está encarcerado, sem tratamento para desintoxicação e estimulado pelos presos a continuar.

Algumas críticas que um filme desse tipo recebe são previsíveis. Antes mesmo de assistir, apenas pela descrição da obra, logo diversos indignados se reúnem dispostos a acenderem suas tochas e partirem para a caça às bruxas, argumentando que os detentos não estão em hoteis cinco estrelas, que devem pagar pelos seus erros e contam com mais regalias do que deveriam. De fato alguns daqueles homens proporcionaram terrores inenarráveis às suas vítimas, e devem pagar pelos seus erros, porém tratá-los como animais selvagens não atestaria seus comportamentos desumanos? Além disso, nem todos os detentos cometeram crimes hediondos, sendo que muitos por delitos leves vivem em meio aos ratos, com atendimento médico que permite que uma úlcera ressalte na barriga de um detento tal qual um alien prestes a nascer, uma perna fique necrosada ou que uma tuberculose ganglionar deforme completamente o pescoço de um ser humano.

Há um consenso nas sociedades em geral de que as condições de vida em um presídio devem ser piores que as piores moradias dos que não estão presos. Isso explica um pouco dos motivos que levam a cidade mais rica do país manter jaulas de seres humanos tão precárias, pois não há outra forma de manter um presídio pior que palafitas e favelas, diante das quais o governo insiste em não tomar providências. Agrada a classe média que defende o sofrimento dos detentos – mesmo que esses maus tratos venham sendo aplicados sem resultados há décadas – e, como indica um detento, mantém os presos sem instrução e sem senso crítico que possa gerar protestos conscientes contra um estado corrupto, que desvia rios de dinheiros sem nenhum tipo de punição para classes que economicamente formam o topo da sociedade, mas em atitudes formam uma escória de ladrões impunes.

Diante das imagens que mostram detentos sendo tratados de forma semelhante aos escravos, ou até pior, fica a dúvida: se a sociedade os trata tão mal, como eles tratarão a sociedade quando forem libertados?

(O filme pode ser conferido integralmente no YouTube)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Só dez por cento é mentira

Este é um documentário do diretor Pedro Cezar em homenagem ao poeta Manoel de Barros. O cineasta tem o mérito de ter conseguido filmar a entrevista com o poeta, que tem aversão a qualquer registro que não seja escrito, pois diferencia o próprio ser em biológico e poeta, sendo que o que importa no poeta é o que escreve. E o mérito do cineasta não para por aqui.

O filme não se restringe a expor a obra do poeta e as entrevistas, mas transpõe a essência de seu trabalho para a linguagem cinematográfica. Com uma fotografia impecável – fortemente influenciada pelas ideias de Barros – Pedro Cezar traduz em imagens, de forma muito competente, os versos que expressam a realidade inventada pelo poeta.

A obra foi chamada de “desbiografia”, um termo do chamado “manuelez”, a linguagem bastante peculiar do poeta, que por vezes cria termos que ampliam o mundo. Os versos simples, sem métrica ou rima – que deixariam a obra muito racional, ao contrário da intenção de seu autor –, condensam imenso conteúdo que não tem base na realidade, mas na imaginação. É citado o exemplo do Pantanal que Manoel de Barros conhece tão bem, mas que em seus poemas ganham uma perspectiva diferente do real, já que a intenção não é descrever, mas ampliar a realidade.

Vivendo no ócio conspícuo vemos um poeta em tempo integral, que diz não saber fazer mais nada além de compor em seu “cantinho de ser inútil”. A atividade rompe com a correria do mundo moderno, para escrever o material utilizado continua sendo os caderninhos feitos a mão e os lápis. Em sua obra não há razão, tão pouco ciência. A ideia é retratar o mundo com suas lembranças da infância através da poesia, que ironiza dizendo ser inútil e obra de vagabundo, mas sem o sentido pejorativo do termo. O poeta faz uma analogia com o personagem Carlitos, o vagabundo tão simpático que também em meio ao ócio traz diversão e sonhos para quem o assiste, mantendo-se atual como os livros de Barros, ainda entre os poetas mais lidos do país.

Outro ponto alto do longa é mostrar como a poesia do autor influenciou outras formas de arte. Além da influência no cinema, notada no próprio documentário, vemos o artista plástico criando esculturas que dão nova função e imagem aos objetos que iriam para o lixo; o inventor que constroi brinquedos para dar forma às ideias do poeta – como a máquina para esticar o horizonte –; a filha de Manuel de Barros que faz ilustrações sem o intuito de relacioná-las com os poemas, mas com os quais o próprio poeta faz a associação; e outras formas de expressar a essência do trabalho do homem que amplia a realidade. Sua influência faz com que esta ampliação seja feita não apenas em versos e leva suas características de imaginação, que transformam um rio em uma cobra de vidro, de sinestesia, que dão sabor às cores ou cheiro aos sons e de invenção, que é diferente da mentira, para outras áreas que podem contribuir para deixar o mundo ainda maior.

O documentário mostra o mundo de sonhos contido na obra de Manoel de Barros, cuja base talvez seja compreendida por poucos nos dias atuais, com o mundo preso à práxis do capitalismo, para o qual toda produção precisa ter um fim prático e lucrativo.


Noventa por cento do que escrevo é invenção.
Só dez por cento é mentira.
(Manoel de Barros)


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Eles não usam black-tie

Este é um dos maiores clássicos do cinema nacional. Baseada na peça do final da década de cinquenta, o filme homônimo dirigido por Leon Hirszman estreou em 1981 mostrando um pouco das grandes greves que tanto influenciaram o país no fim da ditadura militar. Entretanto o foco principal é o movimento grevista visto por dentro, mais que suas implicações.

Depois de quase trinta anos, podemos notar que muitos problemas infelizmente continuam idênticos para os trabalhadores brasileiros. A desigualdade de renda persiste e muitos empregados precisam trabalhar muito, em lugares distantes, para ganhar um salário nem sempre suficiente para sustentar a família; o que os leva a cortar gastos com lazer e conforto, mantendo o mínimo necessário para sobreviver.

O interessante é notar as mudanças estruturais ocorridas durante os anos. Atualmente a modernização das indústrias reduziu drasticamente a quantidade de trabalhadores necessária na produção, a onda de terceirização diminuiu ainda mais o vínculo entre os que vendem sua força de trabalho e os que as compram e, por fim, o terceiro setor cresceu muito, aumentando vertiginosamente os empregos informais no país e desfazendo a força de uma classe unida, como a dos operários do início da década de 80.

Somado às mudanças citadas há nas entrelinhas a marginalização do movimento grevista como um todo. Setores da imprensa, desde que ficou evidente a força que o movimento grevista pode ter, trabalham para criar uma imagem de baderneiros e vagabundos que aos poucos foi comprada por boa parte da população. Além disso, empresários procuram driblar o direito constitucional de greve e punir as lideranças, coibindo assim futuras ações, como é claramente mostrado no filme.

Com os esforços para marginalização das greves e as mudanças estruturais no mercado de trabalho, um dos poucos setores que continua combativo, porém cada vez mais desgastado, é formado pelos estudantes universitários, que lutam continuamente contra a degradação que as universidades brasileiras vêm sofrendo. Neste ponto é possível notar a atualidade do tema do filme e como suas cenas retratam com fidelidade os elementos envolvidos em um movimento de greve.

Podemos separar muito claramente no longa as opiniões divergentes sobre o mesmo assunto, encontrando os que estão dispostos a dialogar ao máximo; os mais radicais, aos quais a única linguagem compreendida pelos patrões são as máquinas paradas; os chamados “pelegos”, que no caso é um termo que generaliza todos que querem furar a greve; e ganha destaque o personagem de Tião (Carlos Alberto Riccelli) que não é exatamente contra a greve, mas por medo da intimidação dos patrões prefere colocar os interesses individuais em primeiro plano, para a decepção de Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), seu pai, que ficou preso três anos por liderar uma greve.

Esta obra prima ainda nos mostra Romana (Fernanda Montenegro, que mesmo com quase trinta anos de experiência a menos, já era genial) no papel da mulher que cuidava da casa com pulso firme, quando o movimento feminista já estava em ascensão, porém a quantidade de mulheres no mercado de trabalho ainda não era tão grande. Em contrapartida Maria (Bete Mendes) já dava sinais de mudança trabalhando na fábrica, lutando pelos seus direitos através da greve e recusando a submissão ao homem.

Um filme claro e objetivo, que apesar de ter marcado a história do cinema nacional, atualmente não tem a evidência que merece. Naturalmente ninguém espera que um dia este filme possa ser exibido na Rede Globo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Céu de Suely

Esta obra do diretor Karim Aïnouz se mantém longe do romantismo tão frequente na história do cinema. Logo nos primeiros minutos o filme se aproxima do realismo, por vezes bastante ácido, que surpreende e deixa a expectativa em quem assiste. Até a última cena ficamos em dúvida se o final voltará ao romantismo habitual, ou se o realismo será mantido.

A protagonista é Hermila (Hermila Guedes) que após as juras de amor eterno da juventude viaja com Mateus para São Paulo e tem um filho, Mateus Jr. A narrativa tem início com mãe e filho chegando de volta na pequena Iguatu, sertão do Ceará, onde passam algumas semanas esperando por Mateus que chegaria mais tarde. Ao descobrir que foi abandonada pelo marido Hermila deve seguir sua vida, mas já não se reconhece na pequena cidade e almeja viajar de novo, desta vez para a região sul.

Não faltam filmes nacionais com a saga dos retirantes que tentam a vida em grandes cidades, porém aqui Aïnouz nos mostra a cidade de origem, a vida de seus habitantes – dos que querem ficar e dos que querem sair – e as influências culturais presentes no cotidiano das pessoas. A trilha sonora contribui muito para essa percepção, pois a música principal é “Tudo que eu tenho”, uma versão nacional de “Everything I Own” que ao longo do filme é seguida por várias outras versões para clássicos internacionais. As pessoas não abandonam suas raízes, o tradicional forró é a trilha sonora das festas, porém o estrangeirismo foi incorporado à cultura local.

Além das músicas podemos notar nas vestimentas, comportamentos e detalhes sutis as influências culturais externas que colocam o tradicionalismo e o provincialismo de uma pequena cidade do interior cearense contra o modernismo que chega até os habitantes através dos meios de comunicação, ou dos retirantes que voltam à terra natal, como Hermila que regressa com uma mecha loira nos cabelos, caracterizado por uma moradora local como um cabelo “meio loiro, meio ruim”, ou seja, a tendência é ver elementos exógenos como superiores. A protagonista, juntamente com uma amiga, experimenta drogas e cheira acetona buscando uma fuga da dura realidade na cena em que as duas jovens parecem duas crianças de rua inalando entorpecentes. A maturidade que a idade poderia oferecer é limitada pela falta de cultura que deveria ser adquirida ao longo da adolescência.

Decidida a deixar novamente a cidade, Hermila precisa de dinheiro para a passagem. A solução encontrada foi fazer uma rifa, na qual o prêmio seria seu próprio corpo por uma noite. Aqui entra o heterônimo da personagem, Suely, que promete uma noite no paraíso para o vencedor. A personagem deixa claro para sua tia que não estava se prostituindo, e é interessante frisar este ponto, pois aos que estão distante desta realidade várias atividades poderiam ser descrita simplesmente como prostituição, mas aos que nela estão envolvidos há diferenciações claras, como já exploradas no filme Baixio das Bestas de Cláudio Assis.

Evidentemente a decisão de rifar o próprio corpo altera o cotidiano da pacata cidade, onde as notícias correm rápido. A oposição do tradicionalismo é forte e Hermila sofre ameaças, preconceitos, além da dificuldade de lidar com o problema dentro de sua própria casa. Entretanto qual a alternativa para ganhar todo o dinheiro necessário para comprar a passagem e deixar a cidade, se esta, apesar de valorizar o consumo, não oferece infra-estrutura para que seus habitantes acumulem capital?

As contradições sociais, o choque cultural e as técnicas de filmagem que exploram o improviso e talento dos atores (valorizando ainda mais o gênero realista) chamam a atenção para este filme que, entre vários outros sobre retirantes, destaca-se com muita competência.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A Balada de Narayama (Narayama Bushi-Ko)

A Balada de Narayama é um filme baseado na história de Shichiro Fukazawa. Vencedor do Festival de Cannes de 1983, o longa do diretor Shohei Imamura nos mostra o cotidiano de uma pequena vila no norte do Japão, no final do século XIX. Isolados entre as montanhas seus habitantes têm um cotidiano restrito basicamente à produção de alimentos, que mesmo com todo o esforço dos habitantes, é bem limitada.

Deparamos-nos com um modelo de sociedade cujo modo de produção difere drasticamente do que estamos acostumados e isso implica em muitas curiosidades. Nossa sociedade capitalista é baseada no consumo e acumulação, assim cada trabalhador produz muito mais do que pode consumir para que o excedente possa ser comercializado. Na pequena vila japonesa cada um produz sua própria unidade de consumo, não há trabalho alienado ou exploração do mesmo por terceiros gerando mais-valia, mas as técnicas de plantio e caça são rudimentares e o inverno rigoroso, sendo que quando a produção é baixa não há excedentes para a parcela improdutiva da população, ou seja, crianças muito pequenas para o trabalho e idosos já incapazes de produzir. A solução para este problema não é exclusiva da sociedade em questão, mas para nossos padrões é verdadeiramente inimaginável.

Não existe a possibilidade de aumento da população, portanto novas crianças só são aceitas quando há alguma morte – uma espécie de reposição, deixando densidade populacional estável. Para resolver o problema de um nascimento quando não houve nenhum óbito as meninas são vendidas, sendo levadas para longe da vila, e os meninos são mortos, enterrados ou jogados no riacho.

Não menos chocante é o destino dos idosos. Quando começam a perder os dentes (por volta dos setenta anos) devem deixar a vila, ainda que estejam lúcidos e possam contribuir com trabalho. Os dentes perdidos são uma espécie de sinal de que já não podem contribuir para o próprio sustento, logo se tornarão um peso para seus descendentes. Os idosos são levados por um membro da família até Narayama, uma montanha que abriga os restos mortais de diversas gerações de idosos, para perecer e assim deixar espaço sociedade para um novo membro. Podemos notar no filme que certas vezes este ritual (bastante mórbido para nossos padrões) é encarado com relutância pelos idosos, porém a grande tradição faz com que outros aguardem ansiosamente pela data, por vezes contribuindo para adiantar o afastamento, acreditando que esta é uma oportunidade de rever os antepassados. Todo o conhecimento e experiência de vida de um sexagenário, ainda mais valioso em uma sociedade sem tradição escrita, deve ser refutado em prol dos mais novos.

Há uma forte influência naturalista em diversas tomadas cuja sequência mostra animais e insetos alimentando-se de outros ou procriando, indicando uma semelhança entre estes e os seres humanos, cuja vida limita-se basicamente a trabalhar, colhendo alimentos para o estoque que deve durar todo o rigoroso inverno, e procurar por sexo – fato enfatizado aos homens – ainda que a procriação só seja permitida após a morte de algum integrante da sociedade. Outra aproximação mais sutil com o mundo animal é notada diante de situações conflituosas, resolvidas geralmente com brigas e agressões.

Em relação à sociedade moderna, notamos entre os japoneses uma grande preocupação com a alimentação além da versatilidade e variedade dos pratos asiáticos. Geralmente essa característica é atribuída aos períodos de guerra, que muitas vezes castigaram a população local espalhando a fome pelo oriente. Neste filme notamos mais um fator, ou seja, os períodos cujas técnicas de produção eram rudimentares ao ponto de não haver alimentação suficiente para todos. No Brasil vivemos a outra face da moeda, e o lado ruim de nossa falta de experiência com a grande escassez de alimentos é notado no paradoxo de um país que exporta comida para o mundo todo, vendo sua própria população passar fome em muitas regiões, com cerca de 30% da produção de alimentos perdida durante o transporte ineficiente da mesma.


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mutum

Transpor uma obra literária para a linguagem cinematográfica não é tarefa das mais fáceis, que dirá quando se trata de um trabalho de Guimarães Rosa. Pois o filme dirigido por Sandra Kogut é uma boa versão para a vida de Miguilim, narrada por Guimarães em Campo Geral.

Se por um lado os romances deste singular autor são permeados de reflexões interiores, com personagens imersos em pensamentos profundos mesmo quando fazem parte do universo infantil, por outro a diretora soube explorar a ideia de que uma imagem diz mais que mil palavras para dar sua versão visual à muitas partes do filme. É evidente que o livro sempre resulta em uma obra mais profunda e completa, porém este filme é um exemplo que conseguiu transpor de forma satisfatória a essência do romance.

Dois personagens centrais tiveram os nomes alterados, e o resultado não foi muito agradável. Miguilin virou Thiago (interpretado por Thiago da Silva Mariz) e seu irmão Ditinho virou Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso) com a interpretação de ambos chamando a atenção pela qualidade, que frequentemente é sofrível entre atores infantis.

Kogut soube retratar o universo infantil mostrando que para as crianças o mundo é mágico. O sentimento de encanto diante de novidades, o temor de involuntariamente cometer algum pecado e o senso do que é certo e errado – evidente quando Thiago é requisitado pelo tio Terez (Rômulo Braga) para entregar um bilhete para sua mãe – ganha um aspecto visual e mesmo a característica pensativa do garoto, que observa atentamente o mundo para aprender com o que a vida tem a lhe oferecer, é notada no longa. Apesar de muitas reflexões presentes no livro não se adequarem ao filme, as características gerais do garoto foram bem encenadas.

Felipe é o irmão mais velho que no livro serve mais de espelho ao mais novo que vê o primogênito como um exemplo a ser seguido. Na versão filmada os dois garotos mantêm a forte amizade e descobrem juntos a vida, debatem sobre o que é pecado ou permitido, dividindo as responsabilidades e brincadeiras. Tal qual no livro é extremamente angustiante acompanhar a tensão da família depois que Felipe corta o pé e sofre com uma infecção. Este pode ser o elo principal do filme com uma das possíveis críticas sociais contida na obra. A cineasta faz questão de mostrar em dois planos sequência cédulas de dinheiro, e a moeda é o Real, ou seja, apesar de ser uma história escrita no início da década de 60, ainda hoje a região pode ser retratada da mesma forma. Sem escolas para as crianças, sem assistência médica e a dificuldade de locomoção que torna Mutum uma terra distante e isolada.

No filme, como não poderia deixar de ser, aparece o médico que chega a cavalo – nada mais que o próprio Guimarães que se transformou em personagem literário para relatar suas viagens como médico pelo sertão – e descobre que Thiago é míope. Essa é uma das muitas metáforas contidas na obra do escritor, dialogando com a dúvida se Mutum é ou não um lugar bonito. Thiago só sana essa dúvida quando coloca os óculos do médico, indicando que uma das interpretações possíveis é a que Mutum sempre foi bonito, para ser melhor aos olhos de seus próprios moradores faltam alguns detalhes de fora como os óculos, ou remédios para Felipe, ou uma escola para as crianças.

Sandra Kogut fez um belo filme que merece ser visto, depois do livro que é leitura obrigatória.



segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon)

Baseado no livro homônimo, a obra retrata um pouco da vida de Jean-Dominique Bauby (representado por Mathieu Amalric). Jean-Do para os amigos, editor da revista Elle, tem um AVC que o coloca no que talvez seja a pior das prisões, a rara “síndrome locked in”. Com todo o corpo paralisado, o único movimento que lhe restou era o do olho esquerdo para o limitado campo de visão de um quarto de hospital e para toda comunicação através das piscadas.

O diretor Julian Schnabel tem o mérito de trabalhar bem com o tema, transpondo a história de forma satisfatória para a linguagem cinematográfica, sem tornar o enredo um tipo de auto-ajuda ou cair na banalidade do drama excessivo. Algumas vezes o preciosismo faz com que o trabalho beire um documentário e o ritmo fica mais lento, afinal Jean-Do não se recuperou das sequelas, mas o livro que originou o filme foi escrito por ele.

A princípio isso seria inimaginável, mas o olho esquerdo do protagonista serviu primeiramente para respostas simples, algo como piscar uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer não. Com o tempo sua ortofonista reorganizou o alfabeto colocando as letras na ordem que elas mais aparecem na língua francesa, com isso ela repetia as letras até que uma piscadela indicava quando parar. Desta forma criaram palavras, frases e por fim um livro.

O que mais me chama a atenção nesta história tão particular é a necessidade que o protagonista teve de superar diversos sentimentos, dentre eles a ansiedade. Essa característica tão marcante do mundo ocidental, que para o editor de uma grande revista deve ser mais que constante, teve que ser drasticamente dominada. Para a maioria das pessoas cinco minutos na fila do banco irrita, dez minutos de atraso parecem eternos e podemos encontrar infinitos exemplos de como o imediatismo do mundo moderno nos influencia. De repente Jean-Do passou a viver “como um legume” de acordo com suas próprias palavras. Ir ao banheiro precisava de ajuda, a alimentação só era possível quando alguém se dispunha a checar suas vontades, mudar o canal da TV, olhar os filhos e simplesmente falar. Uma conversa cotidiana tinha que passar pelo trabalhoso, porém indispensável, método de piscar o olho na letra correta.

Isso me fez pensar em como somos cada vez mais acostumados com a ideia de desejar algo “para ontem”, de forma que esta ansiedade exacerbada passa despercebida, assim como seus efeitos. Fica a dúvida se não deveríamos buscar algumas referências no ritmo de vida das pequenas cidades, ou mesmo nas milenares sociedades orientais, onde a paciência não é menos importante, mas existe a consciência de que algumas vezes o que nos resta é esperar. Nossa impotência diante de determinados fatos pode ser desesperadora e é inquietante o fato de não haver nada a fazer. Pois então, esperemos.

Jean-Do morreu em 1997, dez dias após o lançamento do livro, em decorrência de uma pneumonia. Não pode ver o filme lançado em 2007. Ambas as obras são indispensáveis, das quais podemos extrair grandes lições sem a banalidade do senso comum.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Do começo ao fim


Dia 27 de novembro estreia o polêmico “Do começo ao fim”, escrito e dirigido por Aluizio Abranches. Qualquer filme que aborde o tabu do incesto chama a atenção e desperta curiosidade de alguns para saber qual o desfecho da história, e a indignação de outros por colocar a hipótese da viabilidade a um assunto “proibido”. Da mesma forma a homossexualidade (pasmem) ainda desperta a mesma curiosidade de uns e indignação de outros, como se ainda estivéssemos no tempo da caça às bruxas. Abranches é ousado ao unir as duas polêmicas através de dois meio irmãos, de mesma mãe, que quando adultos acabam sexualizando a intensa relação que sempre cultivaram.

O enredo do filme é bastante linear. Um tema tão controverso é aceito pacificamente pela família de classe alta e acaba perdendo a oportunidade de desconstruir preconceitos ainda presentes na sociedade. Apesar disso inova tanto na temática que faz com que possamos sair do cinema sem a sensação de ter visto mais um filme de amor.

Coincidentemente a estreia acontece pouco tempo após a morte de Claude Lévi-Strauss. O antropólogo que aparentemente não tem nenhuma relação com o longa explorou em muitos estudos o tabu do incesto, assim como tantos outros que abordaram a temática pelo viés cultural. Resumindo ao extremo o tabu do incesto permeia todas as sociedades, sendo que para Lévi-Strauss é a base do que separa os humanos dos outros animais. As regras do incesto são variáveis, uma vez que certas sociedades permitem relações que em outras seriam passiveis até de punições severas. Entretanto sempre há restrições que fazem com que certas mulheres sejam inacessíveis aos homens de sua família, o que obriga os homens a procurarem mulheres fora de seu círculo social, ampliando as relações da tribo.

Outro viés do estudo se dá no plano econômico. Mantêm muitos conceitos expostos anteriormente, mas é possível notar que em determinadas sociedades as leis sociais do incesto agem em benefício da propriedade familiar, impedindo que esta seja dividida ou estimulando que terras sejam agregadas em prol de determinadas famílias – estimulando o casamento entre primos, por exemplo.

O filme de Abranches traz um ponto pouquíssimo explorado, pois apesar dos estudos sobre o incesto estimularem críticas feministas por colocarem o homem como indivíduo que escolhe a mulher, com posicionamento dominante, a mulher tem sempre papel fundamental no tabu do incesto. Trabalhando o tema com dois homens (João Gabriel Vasconcellos como Francisco e Rafael Cardoso como Thomás) o enredo descontroi vários pontos das teorias sobre o incesto e inclui novas problematizações.

Antes mesmo de estrear a obra sofre críticas de estímulo à homossexualidade, como se estas fossem cabíveis, e diversas outras acusações retrógradas e naturais aos temas mais polêmicos. O interessante é olhar para o espírito inovador, com tema e cenas ousadas. Há ausência de conflitos, mas sobram pontos a serem desenvolvidos em obras posteriores, como em todo trabalho pioneiro. Cabe agora aos espectadores romperem a barreira das críticas moralistas e pensarem o cinema como uma forma de questionamento e inovação.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Entre os muros da escola (Entre les murs)

Entre os Muros da Escola, do diretor Laurent Cantet, baseia-se no livro homônimo de François Bégaudeau, que atua no filme como professor Marin para mostrar algumas de suas experiências como educador. Longe de ser um documentário sobre o sistema de ensino francês (como Pro dia nascer feliz, de João Jardim, que trabalha com escolas brasileiras como pode ser conferido no texto deste mesmo site) o longa nos permite identificar algumas características relevantes sobre problemas e virtudes do sistema educacional, através de algumas representações de personagens.

Estruturalmente a escola não tem grandes problemas, diferente do que podemos notar em alguns registros de João Jardim. As instalações são suficientes para uma aula que conta com um número não muito grande de alunos e um professor que demonstra competência. Com o diálogo de desabafo de um professor entre seus colegas Cantet indica que a bagunça dos estudantes impede que a aula seja ministrada, levando o professor ao extremo de dizer que seus alunos não merecem um futuro melhor; apesar disso este problema recorrente em escolas é pouco explorado, pois não há construções de imagens que ilustrem a ideia. As cenas que demonstram bagunça sugerem apenas conversas presentes em qualquer grupo de pessoas – principalmente adolescentes que aguardam o início da aula.

O que provavelmente chama mais a atenção dos brasileiros que dos franceses é a forma que o professor de francês conduz sua aula. Em uma classe da periferia de Paris, que reúne alunos imigrantes de diversos países formando um caldeirão cultural com valores e pontos de vista muito diferentes entre si, o professor dá voz a todos, que podem expressar suas ideias em um espaço coletivo. Esta quebra de um sistema bastante recorrente do professor que fala para os alunos que absorvem o conteúdo sem questionar reflete valores iluministas construídos há séculos na França.

Porém o modelo de aula de Marin também deve lidar com muitas dificuldades. A desmotivação de estudantes, os problemas familiares que influenciam do aprendizado, a tendência natural dos adolescentes de testar as autoridades presentes, as divergências originadas pelas múltiplas descendências, etc. Para lidar com todos esses conflitos há o professor que tenta mediar debates e apaziguar discussões, mantendo a ordem e cumprindo o currículo escolar.

O desenrolar da obra indica o desgaste provocado pela perenidade dos problemas. Apesar de profissional, o educador é um ser humano que está sujeito a eventualmente tomar uma atitude impensada diante de situações que o levam ao seu limite. Quando este limite é ultrapassado e as emoções extravasadas os estudantes assumem a postura de vítimas e a construção de um espaço coletivo dá espaço ao embate entre alunos reivindicando respeito aos seus pontos de vista e professor tentando manter a autoridade necessária ao cargo.

Entra em cena então o delicado equilíbrio que um professor deve encontrar. Um limite tênue entre impor sem abusos sua autoridade e respeito perante os alunos, ganhando a confiança dos mesmos para conseguir construir uma aula educativa e estimulante, e lidar com casos extremos em que nem tudo flui pacificamente, tendo que por vezes assumir erros e recuar em palavras e atitudes – deixando transparecer insegurança diante dos estudantes.

A obra aborda um professor atuando em uma única sala de aula, mas trata de problemas recorrentes em escolas, pois é um grande desafio formar cidadãos conciliando contradições sociais, rebeldia da adolescência e tantos outros fatores. Construir o trabalho coletivamente, como podemos ver no filme, é um bom começo, mas deve ser muito bem conduzido para que não fuja do controle do professor, cuja autoridade não deve ser exacerbada, porém deve estar sempre presente, já que do outro lado da moeda temos adolescentes com regras sociais ainda em formação.


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Quanto dura o amor?

O título do novo trabalho de Roberto Moreira pode até lembrar algum filme hollywoodiano fadado a ser taxado de filme de Sessão da Tarde, e essa suspeita fica até mais forte ao vermos Paulo Vilhena no elenco. Entretanto a suspeita não se confirma diante de alguns temas polêmicos e cenas picantes, muito bem dirigidas.

Apesar de ter como eixo central uma história de amor, que se cruza com mais dois relacionamentos, todos conturbados e insólitos, não vi o amor como tema do trabalho, pois o que me chamou a atenção foi o conflito entre modernidade e tradicionalismo que uma grande metrópole pode proporcionar.

O cruzamento que mexe com o coração de todos é deslocado da Ipiranga com a São João para a Avenida Paulista com a Rua da Consolação, mais precisamente no edifício Anchieta onde a jovem atriz Marina (Silvia Lourenço) chega do interior para alugar um quarto no apartamento da advogada Suzana (Maria Clara Spinelli). Demora um pouco para entendermos como as duas personagens que estereotipam a jovem descompromissada e a mulher madura e centrada não entram em conflito, nem após Marina dormir com Justine (Danni Carlos) logo após chegar na cidade.

Logo em seu primeiro dia em São Paulo, Marina conhece Jay, que apresenta a cidade para a moça. Ele é um tímido escritor que ao contrário de um relacionamento com Marina como poderíamos imaginar, investe em seu amor por Michelle (Leilah Moreno), uma prostituta que vê no romântico incorrigível apenas mais um cliente.

No bar em que Jay a levou, Marina vê Justine cantando. Após conhecer pessoalmente a cantora conhece também Nuno (Paulo Vilhena) e os três proporcionam os temas mais liberais do filme, como a proposta de um ménage à trois, relacionamento aberto, etc.

Por fim Suzana, que aluga um quarto de seu apartamento para Marina, começa um relacionamento com Gil (Gustavo Machado) no machista ambiente do Fórum. Nada de incomum, não fosse o grande segredo guardado por Suzana, como indica o trailer.

Conforme citado, não são poucas as cenas em que a tradição barra as atitudes liberais. Se por um lado Nuno aceita ver Justine com outra, demonstra ciúmes quando o relacionamento das duas demonstra seriedade; machismo ao agredir Justine em virtude do mesmo ciúme; e tradicionalismo ao tentar impor regras na vida da cantora.

Jay aceita propor um relacionamento estável com uma prostituta (ao menos enquanto o amor é platônico), mas por trás disso há o romantismo exacerbado e a ideia de transformá-la no grande amor de sua vida, querendo agradá-la com presentes inesquecíveis e construir sentimentos nos quais a sociedade se baseia há séculos, mas que a modernidade refuta com veemência.

Não darei detalhes sobre a história de Suzana e Gil, pois me atenho aos segredos indicados pelo trailer, mas o conflito entre o tradicional e o moderno aparece. Para saber se o tradicionalismo predominará ou se dará lugar a uma visão mais liberal, é necessário ver o filme.

Roberto Moreira é ousado ao trazer para as telas temas que apesar de cotidianos ainda sofrem grande preconceito. Cenas de amor entre duas atrizes são pouco exploradas em qualquer cinema do mundo, mas o diretor as expõe de forma competente, deixando o trabalho bastante natural. Encontramos também a situação bastante comum no cotidiano das pessoas, que se sentem (parafraseando Simmel) solitários e perdidos na multidão metropolitana.

Um bom filme que terá que enfrentar a falta de dinheiro e o preconceito da sociedade para mostrar seu valor!


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Salve Geral

Com o longa Salve Geral, que estreia dia 02 de Outubro com possibilidade de representar o país no Oscar, Sérgio Rezende nos remete a maio de 2006, quando o PCC – Primeiro Comando da Capital – surpreendentemente conseguiu parar a maior cidade do país.

Através da vida de Lucia (Andréa Beltrão) e seu filho Rafa (Lee Thalor), que em pouco tempo passam de uma família de classe média para envolvidos com o Partido que comanda informalmente o sistema carcerário do estado, o diretor trabalha com diversos pontos sob a perspectiva das partes envolvidas, ou seja, personagens envolvidos diretamente com as atividades carcerárias; a classe média, distante do sistema prisional; políticos atuando em decisões; e delegados incumbidos de resolver diversos problemas. Como já era de se esperar devido à temática o filme já causa grande polêmica antes mesmo da estreia, principalmente pelo diretor não trabalhar com uma visão extremamente moralista.

A guinada na vida de Lucia começa com o declínio econômico após a morte do marido. A advogada que nunca exerceu a profissão tenta agora manter a vida dando aulas de piano e o instrumento no filme é um elo entre o passado de classe média alta e o presente cada vez mais caótico. Rafa recusa-se a aceitar a nova realidade de sua vida e em uma situação circunstancial de irresponsabilidade da juventude (semelhante às comentadas no artigo sobre o filme “Cama de Gato”) assassina uma jovem e é condenado. Este é o eixo do filme, que nos permite notar a mudança de atitudes de Lucia. A princípio o que restava era orientar o filho a ficar longe de qualquer confusão para que o réu primário cumprisse um sexto da pena e pudesse gozar dos benefícios concedidos aos detentos com bom comportamento, entretanto nem tudo é tão simples dentro da cela, e fora da cadeia a protagonista percebe aos poucos que pode se reaproximar de sua antiga vida de classe média alta e cuidar de seu filho, dando-lhe um pouco de conforto e segurança, de forma rápida, ainda que ilícita e, para seus antigos padrões burgueses, imoral.

A recente amizade com Ruiva (Denise Weinberg), advogada ligada ao Partido, aproxima Lucia da facção que provou, através dos ataques de 2006, dominar o sistema carcerário paulista. É interessante a abordagem do diretor, que dialoga muito com a obra 1984 de George Orwell. Em um universo bem menor que o abordado no livro, temos aqui a presença do Partido, que a princípio sabe de tudo, coordena ações, dá ordens e nunca falha – como quando um de seus integrantes justifica um erro gramatical do manifesto, alegando que quando tomarem o poder a gramática será adequada ao que o Partido impor. Um dos líderes, o Professor (Bruno Perillo), explica a origem do movimento como uma intenção de ordenar um sistema prisional que beira a falência, evitando estupros, roubos, etc. Sem querer defender a existência de um poder paralelo para tomar atitudes que cabem ao estado, ressalto que a solução destes problemas é evidentemente necessária, e não há indícios de quando algum governo tomará tais atitudes. É impossível negar que os detentos não esperarão por medidas institucionais e tentarão resolver problemas latentes por suas próprias vias.

O outro extremo abordado é a classe média, alienada do sistema carcerário, que em prol da própria segurança adota a cômoda postura individualista. No filme a representante desta classe é Ângela (Chris Couto), irmã de Lucia. Ambas promovem um marcante diálogo maniqueísta no qual uma defende ações mais severas da polícia de forma a anular a expressividade dos detentos e a outra argumenta que a irmã, ao falar sobre o que não conhece, generaliza e simplifica demais o problema em questão. Aqui entra a principal crítica que o filme tem recebido, pois é cada vez maior o senso comum de que detentos devem ser tratados da pior forma possível. Diante de um filme com esta temática não demora a aparecerem defensores da pena de morte e nas entrelinhas Rezende provoca, mostrando que o Partido adota a pena de morte, ou seja, neste sentido os adeptos à extrema punição igualam-se aos que são alvos de suas indignações.

Coordenando formalmente os presídios, incumbido de prevenir e posteriormente resolver o caos, temos o delegado que além de lidar com facções criminais sofre pressões de políticos para resolver os problemas de qualquer forma, desde que discreta para não alarmar a população influenciando nas eleições. O papel dos políticos envolvidos é bem sintetizado pela frase do filme: “polícia eficiente mais bandido morto é igual a voto.” Assim o esquema velado de propinas e tráfico de influências do presídio não é coibido, desde que não vire um escândalo que choque eleitores. O desenvolvimento do esquema de corrupção resulta no poder do Partido, que consegue parar São Paulo em represália as medidas do delegado. Mais uma vez uma instituição chega ao ponto de ter que remediar, ao invés de prevenir.

Longe de ser uma apologia ao crime o trabalho de Rezende mostra que a população carcerária é formada por pessoas – ainda que tenham cometido crimes, portanto passíveis de punição. Aos que ainda acreditam que detentos devem ser tratados pior que animais, vale lembrar que apesar de muitos não terem tido acesso à escola, são pessoas que diferente de animais maltratados, reagirão racionalmente com o intuito de melhorar suas condições. É constrangedor notar que um pensamento medieval, de que a punição através dos maus tratos é a solução para crimes, ainda vigora. Obras como Salve Geral dão um alento no sentido de modernizar essa ideia cruel.



segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pro dia nascer feliz


Após uma deliciosa viagem pelo Brasil que toca sanfona com o documentário “O Milagre de Santa Luzia”, de Sergio Roizenblit, refaço a viagem, mas desta vez de forma menos prazerosa com o longa de João Jardim.

Distante do sentimento descrito por Cazuza na música homônima, em que notamos o relato da vida prazerosa e descompromissada que a juventude pode oferecer, Jardim parte de Manari, em Pernambuco, cidade com o menor IDH do país, para o Rio de Janeiro e termina sua viagem em São Paulo. No caminho o diretor faz escalas por diversas escolas, através das quais podemos notar algumas semelhanças e diferenças que nos permitem tirar algumas conclusões sobre o sistema de ensino do Brasil.

Alguns problemas relatados, como a falta de estrutura, a violência, o consumo de drogas, etc. não podem passar desapercebidos, entretanto muitos destes problemas são bem conhecidos, de forma que o filme apenas os deixa mais concretos. Jardim nos dá maior precisão ao indicar que 13700 escolas brasileiras não têm banheiro; 1900 sequer têm água; a metade dos alunos que concluem o ensino médio não sabe ler ou escrever; e a conhecida violência ganha uma nova dimensão com o impressionante relato de uma estudante que assassinou, dentro da escola, a garota que barrou sua entrada em uma festa, alegando que matar sendo “de menor” (sic) não tem problema, pois três anos passam rápido.

Apesar destes dados desconfortantes e do abismo entre escolas públicas e o Colégio Santa Cruz (da elite paulistana), é interessante notarmos certas nuances do filme. Não é um trabalho com rigor científico e a montagem muitas vezes influencia em nossas percepções, não obstante é perceptível uma grande distância entre os estudantes e a instituição de ensino. Na escola particular essa distância é reduzida, porém notável, já na escola pública os estudantes não reconhecem a instituição como um apoio que pode auxiliá-los. Em geral notamos uma grande luta contra o que parece ser um entrave na vida dos jovens.

Os casos isolados explorados no documentário, de estudantes que superam as adversidades de um sistema de ensino deficitário e conseguem resultados acima do que seriam esperados, desaparecem quando as câmeras do diretor estão ausentes e voltam para a massa de alunos cujas individualidades não são potencializadas. A maneira pragmática que as aulas são ministradas é repetida em todas as seis escolas do documentário, ou seja, ainda que a escola particular e mesmo algumas escolas públicas tenham algumas atividades que quebrem com a rotina de diversos alunos voltados para um professor que transmite a matéria, essa é a forma predominante de ensino, havendo poucas formas de interação entre os estudantes e ainda menos entre estes e seus professores.

De uma forma geral os adolescentes não encaram a escola como um local para trabalhar em conjunto, buscando o apoio de professores para investir no próprio futuro. No setor público este sentimento é evidentemente mais forte por uma série de fatores envolvendo estudantes desmotivados, professores com baixíssimas condições de trabalho, falta de um plano de educação em longo prazo, etc. Todos esses fatores resultam na falta de perspectiva geral, pois em um plano mais abrangente não podemos negar que a educação voltada para os interesses do capital expande as diferenças de classe. Logo seria ilusório convencer um estudante de classe social mais baixa que seu esforço pessoal resultará em ascensão social. Sem querer afirmar que a falta de estudos terá o mesmo efeito que o empenho nos mesmos, é difícil argumentar com estudantes que relatam seus assaltos quando eles afirmam que “até os políticos ricos roubam também, com eles não acontece nada e roubam mais”.

Um ponto positivo mostrado no documentário são algumas atividades, além das salas de aula, oferecidas pela escola. Aceitando que o sistema de ensino do país beira a falência e a solução em curto prazo é impossível, o pouco que pode ser feito de forma imediata é trabalhar com alguns problemas específicos. Juntando dois trechos distintos do filme – que poderiam ter sido explorados pelo diretor – vemos uma aluna do Colégio Santa Cruz falando que faz yoga, natação e outras atividades fora da escola; e em uma escola do Rio de Janeiro os estudantes participam de um projeto de música dentro da própria escola. Ou seja, todo adolescente precisa de atividades que lhe ofereçam bem estar, sendo que estudantes de classes mais altas podem pagar pelo que preferirem. A escola pública das periferias tem espaço e potencial para oferecerem aos seus alunos atividades lúdicas que os aproximarão da escola fazendo com que a imagem desta seja diferente de um obstáculo em suas vidas.

Um dos alunos que participa de um grupo musical da escola do Rio afirma que já empunhou armas e que isso impressionava as garotas, mas agora essa notoriedade se dá através da música. Este fato é um tanto evidente, ou seja, a escola de ensino médio trabalha com adolescentes que inevitavelmente buscarão notoriedade diante dos amigos. Ao invés da escola massificar os estudantes, poderia, através de projetos paralelos aos estudos, oferecer aos jovens uma possibilidade de trabalharem pontos que cada um acredita ser importante. Voltando na música de Cazuza encontramos o verso “essa é a vida que eu quis”. Um grande desafio para a escola moderna – independente da classe social de seus alunos – é auxiliar a descoberta de qual é a vida pretendida, e de como atingir tais metas.

Ao abordarmos a educação no Brasil encaramos um problema extremamente complexo. Nem o trabalho de João Jardim, nem este pequeno texto têm a pretensão de esgotar as possibilidades do tema. Mas trazem algumas ideias inquietantes sobre um ponto decisivo para qualquer país que tenha a pretensão de crescimento.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Milagre de Sta Luzia


O dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos, é 13 de dezembro e o milagre ao qual o título do filme faz referência ocorreu no ano de 1912, ou seja, o nascimento de Luiz Gonzaga em Exu, Pernambuco. O brilhante artista que ganhou o nome em homenagem à Santa é um grande responsável pela difusão do instrumento que marca tantas culturas no interior do Brasil: a sanfona. Entretanto o documentário de Sérgio Roizemblit aborda muito mais do que o instrumento, pois guiado pelo carismático Dominguinhos o filme viaja por várias regiões do Brasil mostrando diversas particularidades culturais embalado por boas músicas, lindas paisagens e músicos que muitas vezes são injustamente desconhecidos.

As filmagens duraram ao todo mais de dez anos, o que proporcionou ao trabalho final imagens de verdadeiras lendas da nossa cultura que já faleceram, como Sivuca, Mário Zan (inexplicavelmente desconhecido após bater recordes de vendas) e Patativa do Assaré. É com este último que começamos a viagem pelo Brasil. No nordeste, poucos meses antes de falecer, o poeta nos presenteia declamando seu poema em homenagem ao amigo Luiz Gonzaga. Tão grande quanto a emoção desta cena é a decepção pelo seu centenário (agora em 2009) ser tão negligenciado e esquecido.

Seguindo pelo nordeste vemos alguns encontros de grandes sanfoneiros fazendo forró de raiz; o encontro improvisado de repentistas na beira da estrada, acompanhados pelo acordeom de Dominguinhos; Arlindo dos 8 baixos, que não largou os oito baixos nem depois de perder a visão; Camarão, que já não pode tocar em pé devido à problemas na coluna, mas comanda os forrós tocando sentado; e os diversos “causos” entre os quais ganha destaque Pinto do Acordeom, que conta como teve que tocar “New York, New York” para salvar a própria vida - nesta cena é necessário ressaltar o bom trabalho de Roizemblit que, diferente do que é mostrado no vídeo abaixo, não limitou-se a mostrar o sanfoneiro improvisando a letra e Dominguinhos se divertindo. Quem ver o filme entenderá do que estou falando!

Rumo ao sul Dominguinhos dirige sua caminhonete até o pantanal matogrossense. Começamos a notar diferenças sutis no ritmo das musicas e grande mudança de cenário entre o cerrado e o pantanal. A criação de gados está presente nos dois ambientes, mas é manejada seguindo costumes locais, pois no nordeste os vaqueiros lidam muitas vezes com a caatinga e cavalgam em meio aos espinhos das árvores, enquanto as planícies do centro-oeste alteram o modo de conduzir o gado. É impossível deixar de destacar o voo de um casal de araras azuis flagrado por Roizemblit, de causar inveja em qualquer documentário da Nacional Geographic.

Ampliando a diversidade cultural o documentário nos leva ao sul do país. Lá o som da gaita tem influencias diferentes do nordeste, vindas da Itália e mesmo do tango argentino. Ainda que os acordes sejam os mesmos, a música não tem tanto gingado quanto o forró nordestino. É interessante notar também a postura dos músicos que, diferente dos nordestinos, preferem tocar a gaita sozinhos a fazerem encontros para duetos. Um dos ritmos tipicamente gaúcho é o “bugio” e o filme mostra como sua origem é mesmo a espécie de macacos. Com o baixo da gaita o músico imita o som do primata para fazer a base e a dança imita os movimentos do bugio.

Novamente rumo ao norte o filme deixa pela primeira vez o interior e chega à maior cidade do país. São Paulo, por receber imigrantes de todo o Brasil, sintetiza muito bem a diversidade cultural de norte a sul e coloca na sanfona inúmeros elementos. O instrumento é utilizado no jazz, hip hop, música árabe, japonesa, etc. Além disso, anima as festas fundamentais aos imigrantes nordestinos que têm grande peso na história da cidade. Finalmente a história de Dominguinhos, que até então acompanhava as entrevistas, ganha o merecido destaque, pois em certo sentido simboliza muito bem os imigrantes nordestinos.

O músico de simpatia inigualável saiu do nordeste ainda criança, como tantos outros, e enfrentou onze dias em um “pau de arara” para chegar ao sudeste. Tocava pandeiro com os irmãos para conseguir dinheiro e ajudar a mãe a fazer a feira, mas o que mudou sua vida foi conhecer o gênio Luiz Gonzaga, que lhe deu um acordeom e foi seu padrinho na música. Dominguinhos se emociona – e nos emociona – ao lembrar-se de tantos nordestinos que deixam a terra que amam para tentar uma vida melhor e muitas vezes não têm a chance de voltar para casa, assim como os pais do músico.

Para terminar a viagem o longa nos leva de volta ao nordeste com a entrevista do mestre Sivuca. Talvez seja o último registro do músico que morreu em 2006, cujos dedos passeiam pelas teclas da sanfona em um dueto inenarrável com Dominguinhos, que apesar de mais novo, inspira o mestre – segundo palavras do próprio Sivuca. A obra termina com um grupo de irmãos que toca para Santa Luzia, o que prende todos no cinema até o fim dos créditos.

Muitas vezes ao longo do trabalho sentimos vontade de aplaudir o que é exposto, como se estivéssemos vendo as apresentações ao vivo e, apesar da intenção do filme não ser esta, saí da sala com vontade de colocar uma mochila nas costas e refazer a viagem pelo Brasil que toca sanfona! Para quem não gosta de documentários, essa é uma ótima dica para uma revisão de conceitos.





Geralmente eu só coloco o trailer, mas diante do Milagre, não colocar esse vídeo seria um pecado =)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Tempos de Paz

A II Guerra já havia terminado na Europa, mas no Brasil o clima tenso e a grande precaução em relação aos imigrantes continuavam. Funcionários do governo, responsáveis pela emissão dos vistos, aguardavam por “novas diretrizes em tempos de paz”. Este é o tema e o título da peça de Bosco Brasil que deu origem ao longa “Tempos de Paz”. O filme dirigido por Daniel Filho (que também encena o Dr. Penna, personagem apenas citado na peça e mais enfatizado no filme) tem forte presença de elementos do teatro. O roteiro sofreu poucas alterações em relação à peça e a maior parte do trabalho é focado no diálogo de Segismundo (Tony Ramos) e Clausewitz (Dan Stulbach).

Clausewitz é o polonês que, como tantos outros, chegou ao Brasil depois da guerra com a imagem de um país perfeito, alegre, pacífico e livre dos horrores desumanos que ele presenciou na Polônia. Aprender o português foi uma forma de ocupar a mente e esquecer o passado recente, pois agora sua vida seria como agricultor no país que “precisa de braços para a lavoura”.

Segismundo é o chefe da imigração na Alfândega do Rio de Janeiro. Um ex- torturador que cumpre qualquer ordem que os superiores determinarem sem nenhum questionamento ou reflexão quanto à viabilidade das mesmas. A fase de transição pela qual o país passava atingia em cheio o oficial, pois o presidente Getúlio Vargas havia anistiado os presos políticos e Segismundo temia vinganças. Ao mesmo tempo ainda não tinha recebido novas instruções devido ao fim da guerra e ainda aplicava as mesmas regras aos imigrantes recém chegados.

Neste cenário ocorre o encontro dos dois personagens e fica evidente o abismo que existe entre um homem culto, que aprendeu muito através do sofrimento pelo qual passou e outro que cresceu em um orfanato, sem contato com a família, cujo único preparo foi para obedecer ao que lhe era ordenado. Segismundo mostrou a Clausewitz que nosso país não estava sequer próximo do que era idealizado pelo polonês e que infelizmente os horrores de uma guerra não estavam restritos aos países diretamente envolvidos no conflito. A única autonomia que Segismundo demonstra é quando sugere que se Clausewitz conseguir fazê-lo chorar em dez minutos conseguirá o tão sonhado visto. Para saber se o ex-torturador que sempre demonstra extrema frieza chorou é necessário assistir ao filme, mas no cinema não faltaram lágrimas aos que assistiam. O curioso é como cenas tensas e emotivas são quebradas com repentino humor muito bem dosado, que mostra a versatilidade dos atores.

Além de uma parte importante da história do Brasil e do valor dos imigrantes parcialmente retratados no filme, é curioso pensarmos a submissão dos oficiais diante de qualquer ordem emitida. Tempos de guerra mostram o extremo de um comportamento cotidiano em que não importa o horror da ordem emitida, suas consequências ou seu contexto, sempre haverá um ser humano capaz de executá-la. Em certa parte do filme, após um imigrante questionar a forma como estavam sendo tratados a resposta obtida vinha no sentido de que o tratamento poderia ser muito pior, como se este argumento justificasse os maus tratos.

Em um contexto radicalmente diferente, com implicações bem distintas, mas com a mesma postura dos que cumprem as ordens, lembrei de um evento ocorrido há poucos meses, ainda este ano. Em uma manifestação de estudantes dentro da universidade, lutando pela qualidade da mesma, estudantes foram atacados com bombas, gás de pimenta, cassetetes e tudo mais. Quando uma manifestante gritou que aquilo era uma ditadura o comandante da ação respondeu que os estudantes têm sorte, pois na ditadura eles resolveriam na bala.

Dois exemplos que, apesar de magnitudes bem distintas, mostram a mesma submissão de oficiais em um intervalo de mais de sessenta anos nos fazem pensar no treinamento despendido aos que supostamente deveriam garantir a ordem de uma sociedade. A submissão irracional é mesmo o melhor comportamento, ou o senso crítico capaz de julgar se a ordem é viável diante de determinada situação produziria melhores resultados? Clausewitz questiona a utilidade do teatro depois de todos os horrores presenciados na guerra. Esta utilidade é dada por cada um que assiste ao filme, mas fiquei pensando se a cultura de uma forma geral não seria capaz de impedir que um ser humano seja capaz de declarar guerra ou torturar um desconhecido.


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...