terça-feira, 19 de agosto de 2014

Leva

O título do longa das diretoras Juliana Vicente e Luiza Marques não vem do verbo levar, mas do substantivo, “ajuntamento de pessoas; recrutamento; grupo, coletivo”, conforme indicado no início da obra. Uma leva de sem-teto que luta pelo direito constitucional à moradia.

Pessoalmente eu cresci ouvindo e acreditando que um grupo de pessoas que ocupa um prédio, ainda que abandonado, comete um crime. Deveriam ser punidos por invadir um imóvel que não lhes pertence e se querem de fato um lar, que trabalhem para compra-lo. Tento reduzir minha vergonha de ter acreditado nessas bobagens com o fato de nunca ter sido apresentado aos argumentos em prol dos movimentos sociais.

Esse é o ponto principal do filme, pois dá voz aos excluídos, àqueles que normalmente são retratados pela mídia que representa a especulação imobiliária, criando uma imagem diametralmente oposta à real atuação dos movimentos sociais que se organizam pela busca de moradia.

Ao contrário da desordem e bagunça comumente associada ao MTST e suas subdivisões, com apenas algumas entrevistas de lideranças vemos uma aula de política suficiente para envergonhar a maioria esmagadora daqueles que criticam as ações, mas restringem a própria atividade política ao voto bienal. 

Política, gostando ou não, se faz de forma cotidiana e diária. Os movimentos de ocupação que se organizam no centro de São Paulo – que é o foco do documentário – não fazem outra coisa senão lutar por direitos constitucionais dos quais todos deveríamos ser beneficiados. A diferença é que grande parte da população brasileira restringe sua indignação diante da falta de serviços estatais a comentários preconceituosos, com raízes históricas que ratificam a criminalização da pobreza e são de grande utilidade aos que estão no poder.

Em um país em que a desigualdade social é uma das maiores do mundo, a ilusão de ascendência social faz com que mesmo os que estão economicamente mais próximos dos integrantes de movimentos sociais mostrem repúdio em relação aos seus membros, tentando assim uma proximidade com as classes mais altas, compostas em parte por proprietários de imóveis desocupados, geralmente herdados há várias gerações, que permanecem aguardando uma valorização imobiliária.

“Mas eu trabalhei duro para comprar minha casa e não é justo que algumas pessoas ganhem um apartamento de graça”. O filme desconstrói essa falácia com muita competência, mostrando tanto o equívoco quanto as nuances econômicas que tornam a questão bem mais complexa do que a suposta meritocracia de pagar por um imóvel. A questão que fica implícita no filme e não caberia no documentário é como a sociedade brasileira acaba prejudicada pelo preconceito que estabelece contra os movimentos sociais.

É justo que um trabalhador consiga, depois de tanto esforço, comprar sua sonhada residência. Ainda mais justo é que todos tenham pelo menos a oportunidade de ganhar um salário descente, para sanar suas necessidades imediatas como alimentação, educação, etc., e poupar o suficiente para um dia – ainda nesta encarnação – comprar sua casa própria.

Injustos não são aquelas pessoas que ocupam um prédio abandonado há décadas, fugindo assim das ruas ou de moradias que não oferecem o menor conforto ou mesmo dignidade. Injustos são os poucos proprietários que concentram diversos imóveis, mantendo vários deles fechados por pura especulação. Sequer a famigerada meritocracia pode ser aplicada na maioria dos casos, já que uma sondagem histórica indica que a origem de tantas propriedades é fruto de várias ações, nenhuma relacionada ao trabalho, esforço ou mérito pessoal.

Enquanto a especulação imobiliária atinge negativamente a cidade, com consequências que extrapolam as fronteiras da moradia, os proprietários de imóveis vazios encontram respaldo em uma disputa social desnecessária e maléfica, que insiste em criminalizar as vítimas por um problema.

Um dos desdobramentos de uma sociedade tão heterogênea e desigual é que o discurso oficial da mídia é controlado por pouquíssimas pessoas ricas. Ainda que numericamente os movimentos sociais sejam dominantes, seu discurso não tem espaço. É mais cômodo acreditar na versão simplista de que os errados são os que ocupam uma propriedade ao invés de investigar as origens desta propriedade e os impactos sociais de mantê-la fechada.

Uma alternativa a esta tradição elitista é a produção independente de obras como Leva, para mostrar um lado cuidadosamente ocultado ao longo de todo o desenvolvimento de grandes cidades com São Paulo. Felizmente há tempos mudei meus paradigmas e assisti ao filme ciente da condição dos militantes dos movimentos sem-teto, ainda assim gostaria que de ter tido contato com alguma obra deste tipo durante a adolescência.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Uma longa viagem (The Railway Man)

A Segunda Guerra Mundial é um dos eventos históricos mais documentados em obras de arte – talvez o mais documentado. Isso não é exagero, pois tamanha barbárie deve ser constantemente lembrada, na esperança de que não volte a acontecer. A particularidade deste filme do diretor Jonathan Teplitzky é mostrar um lado pouco retratado do combate.

Longe da Europa muitos soldados viviam o inferno da guerra no front asiático. O filme em questão é baseado em uma história real, essa informação nem sempre é benéfica, já que se por um lado dá veracidade aos fatos retratados, por outro nos induz a olhar para o filme como um retrato fiel do que aconteceu – o que nem sempre é verdade.

O exército britânico, historicamente imperialista e dominador, teve parte dos seus soldados capturados pelos japoneses e utilizados na construção de uma ferrovia na região da Tailândia. No próprio filme um dos personagens ressalta a inversão de papéis que o episódio proporciona. Entre os soldados está Eric Lomax (Jeremy Irvine e posteriormente Colin Firth, protagonista).

Difícil falar em lado certo ou errado de uma guerra. Olhando de forma pontual, como no caso do filme, temos a tendência de ver Lomax e seu exército como vítimas, já que são os escravizados e torturados em questão, mas para isso temos que abstrair as barbáries cometidas pelo mesmo exército em outros fronts.

O fato é que Lomax e seus companheiros de batalha, já idosos, nunca superaram os traumas da guerra. O vislumbre de alívio na vida do protagonista aparece quando ele conhece Patricia (Nicole Kidman), que ao menos no início do relacionamento consegue desfazer um pouco da tensão do personagem.

O curioso é que Patricia define Lomax como um homem maravilhoso, mas perturbado. Ela tenta com muito empenho livrar o marido dessas perturbações, como se quisesse despi-lo dos traumas deixando apenas sua essência. O problema é que essas duas características de Lomax são indivisíveis, cada uma contribuindo um pouco para a formação do indivíduo.

Depois de tanto tempo sozinho o protagonista acaba desaprendendo a conviver e a aceitar diferenças. Isto somado ao estilo metódico dos ingleses, às vezes incompreensível e cômico aos latinos, faz com que o convívio seja difícil até mesmo com a pessoa amada.

Enquanto Patricia busca o homem por trás dos traumas, como se isso fosse dissociável, Lomax não esconde o passado da esposa, esconde de si mesmo. Sabe que sua vida no front não é nada atrativa e tem a ilusão de viver a partir de quando conhece a esposa, passando uma borracha no passado, como se isso fosse possível.

Essa atitude não é exclusiva de Lomax, tão pouco daqueles que passaram por um grande trauma como a guerra. Por vezes queremos mesmo esconder o passado até da pessoa que mais amamos, não por mal, mas por uma necessidade inconsciente de escondê-lo de nós mesmos. Não é uma postura fácil de aceitar, como no caso de Patricia, mas um pouco de compreensão é sempre bem-vinda. Os traumas pelos quais passamos, ainda que bem menores que o cotidiano de uma guerra, formam nossa personalidade. Somos o que somos graças ao que vivemos de bom e de péssimo.

Como era de se esperar, Lomax encontra Nagase (Hiroyuki Sanada), soldado que não o torturou, mas foi complacente, servindo de tradutor nos interrogatórios guiados por violência. O que fazer diante de um torturador nestas condições? Por um lado é demagogia dizer que Nagase foi apenas tradutor. Isso o tornaria ao menos complacente, que já não é pouco, mas no topo da hierarquia militar estão os que, entre tantas barbáries, conseguem motivar seus soldados aos atos mais vis, fazendo-os acreditar que a crueldade é necessária.

Não por acaso o filme nos leva a tomar o partido de Lomax. Mesmo suavizando as cenas de tortura, o protagonista é construído com base na gentileza, lealdade e várias virtudes que nossa sociedade valoriza, enquanto o exército japonês, incluindo Nagase, é apresentado como vilão da história.

Voltando ao início, olhando para esse episódio isoladamente essa distinção entre bem e mal pode ser tolerada, mas não devem faltar exemplos de papéis invertidos, com soldados britânicos aterrorizando prisioneiros de exércitos inimigos. Crimes de guerra que não chegam a ser culpa dos soldados, mas de patentes e cargos bem mais elevados.

Diante do terror multifacetado da guerra, o fim do filme (sem detalhes por aqui) pode nos emocionar e, sobretudo ensinar várias lições, basta abstrairmos os limites da guerra e ampliarmos a ideia para temas cotidianos.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Confia em mim

A confiança é um sentimento extremamente difícil de ser dosado. Inconscientemente atribuímos um nível de segurança para cada um que nos cerca e também para nós mesmos, sendo que uma série de fatores, como o tempo e as experiências vividas, acabam influenciando nesse nível imaginário.

Conforme o título indica, é esse o eixo central do diretor Michel Tikhomiroff. O roteiro traz uma trama bem amarrada e ainda que fique restrito a um cotidiano de poucos personagens de classe média alta, o que facilita o trabalho, aborda com competência os históricos golpes que formam um jogo de xadrez entre policiais e golpistas.

A protagonista Mari (Fernanda Machado) trabalha como chefe de cozinha e a primeira ideia de “confia em mim” é desenvolvida em relação à própria personagem, mais especificamente sua autoconfiança. Mari demonstra extrema insegurança, que pelo pouco contato que temos com seu histórico de vida, poderia ser justificada pela relação familiar. Não é necessário muito tempo para percebermos que sua mãe e sua irmã não têm confiança na moça.

Nossa primeira tendência costuma ser pensar a confiança a partir do outro, ou seja, quais as atitudes que nos inspiram confiança em um primeiro contato, porém não percebemos o quanto a nossa autoconfiança – ou falta dela – interfere na relação, seja ela qual for. Se pessoas inseguras sofrem as consequências disso em contatos banais e cotidianos, que dirá em situações mais densas como uma vaga de emprego que demanda tomada de decisões.

A insegurança de Mari tem influência direta para a aproximação de Caio (Mateus Solano). Em um encontro aparentemente fortuito o personagem sempre demonstrou ser um porto seguro, uma referência, passando a confiança que toda jovem insegura sonha em ter. O filme chega a ficar entediante com o romance de conto de fadas, até que a protagonista descobre que o mundo cor-de-rosa da classe média também pode sofrer com atitudes condenáveis.

Diante de uma atitude à margem da lei somos reducionistas e simplistas. Entretanto alguns golpes são aplicados há séculos e existe toda uma literatura desenvolvida em torno da aura de romantismo que cerca os golpes baseados na perspicácia e astúcia. Ressalto, não há violência física, muitas vezes não chega a haver um crime direto, mas um jogo psicológico tenso que induz as vítimas a serem enganadas e cometerem erros quase infantis para quem olha o caso a distância.

Todos podem ser ludibriados em alguma situação, fato que está diretamente ligado à confiança citada no início. O que fica claro no filme é que Mari nunca foi nem um pouco preparada para lidar com certas situações, o que acabou fazendo dela uma presa fácil. Isso envolve, como sempre, a autoconfiança.

Esse traço de nossa personalidade é desenvolvido com o tempo, baseado em nossas experiências de vida. Por suas atitudes no emprego e pela relação que mantém com os demais personagens, vemos que Mari não demonstra segurança nem quando todas as evidências justificam essa atitude. Dá a entender que nunca foi estimulada a confiar em si mesma e a tomar decisões, ainda que tenha que arcar com as consequências de eventuais equívocos.

É um ciclo que se inicia com a falta de confiança que os pais têm nos filhos, isso gera insegurança para aqueles que alvos dessa desconfiança e crescem com a necessidade do crivo dos pais para toda e qualquer decisão que precisam tomar. Ao não serem estimulados a tentar e a correr riscos, a autoconfiança vai sendo minada ao longo da vida, fechando o ciclo como adultos inseguros, despreparados, que sofrerão as consequências dessa falta de atitude em diversas fases da vida – quando não chegam ao extremo de serem alvos fáceis, como no caso do filme.

Sendo o primeiro longa metragem do diretor, o trabalho satisfaz ao apresentar um roteiro bem trabalhado, com elementos aparentemente soltos, que cedo ou tarde demonstram algum sentido. Apesar de causar certo desconforto a homogeneidade social do filme, sem classes antagônicas e com personagens restritos à elite, a história se encaixa na proposta de trabalhar tanto o universo marginal dos golpistas que selecionam suas vítimas entre a classe média alta, quando a relação de confiança, que pode ser destrutiva ou essencial, sendo o grande desafio ter maturidade para distinguir cada situação com antecedência.


terça-feira, 29 de julho de 2014

Nenhum a menos (Yi Ge Dou Bu Neng Shao)

O cinema de um país diz muito sobre sua cultura e seu momento histórico. Dependendo do estilo do filme é uma ferramenta importante para termos ao menos uma noção de costumes e hábitos. Com isso os filmes chineses podem ser interessantes para desvendar certos mistérios, desde que rompa com o controle estatal do país.

Neste sentido o diretor Zhang Yimou nos apresenta o retrato de uma China distante das megalópoles que sustentam um crescimento econômico de 10% ao ano. O enredo se desenvolve em uma escola da pequena província de Shuiquan. Região rural, com a escola caindo aos pedaços, é possível lembrar o Brasil em vários pontos do filme.

A protagonista é a professora Wei (Wei Minzhi), uma menina de apenas 13 anos, pouco mais velha que os alunos da escola primária, mas que é a única opção para substituir o professor titular durante o mês em que ele ficará fora para cuidar da mãe.

Não dá para encontrar pontos positivos ou atrativos na escola. O chão de terra batida, carteiras quebradas, quadro negro precário, etc. Não é difícil achar problemas naquele local em particular, mas aquela escola escondida no interior da China abre espaço para uma crítica ao sistema educacional como um todo.

Pelo pouco conteúdo das aulas, notamos que há influência do estilo de governo. A bandeira hasteada, as crianças marchando com formação semelhante à militar, a canção com metáfora para o regime. Porém essa é mais uma crítica que serve às escolas de qualquer país. A educação serve ao capital, de uma forma ou de outra.

A escola é uma das mais homogêneas instituições. Do interior chinês à mais desenvolvida cidade, é possível notar semelhanças. Formar mão de obra vem à frente de formar cidadãos, seja em uma escola de fachada, onde os alunos mal aprenderão a ler e sairão para um mercado de trabalho simples e desqualificado, até uma escola de ponta, que visa formar empreendedores voltados ao mercado, não à sociedade.

A diferença é que em uma escola com todos os recursos necessários é mais fácil motivar os alunos esquematizando um futuro – e mesmo assim aparecem dificuldades dado ao caráter disperso natural da infância –, mas em uma escola em que o único recurso é um giz branco, racionado, manter a atenção de crianças concorrendo com as brincadeiras infantis é totalmente impossível.

Somado a essa dificuldade existe a problema econômico. A realidade social de uma criança cujos pais são formados e com bons salários não se compara com a situação rural, onde é mais comum a necessidade das crianças trabalharem para ajudar financeiramente em casa. Essa é a história de Zhang Huike (Zhang Huike), que abandona a escola para tentar ganhar dinheiro na cidade grande. Entre os problemas que essa decisão implica, aqui há a particularidade de que a professora receberia mais dinheiro caso não faltasse nenhum aluno depois do mês de ausência do professor titular. Com isso existe o esforço desmedido da professora para resgatar o aluno.

Depois de muito esforço para viajar até a cidade, de imediato há o choque cultural, com estereótipo de morador do campo chegando à cidade grande. É notável o despreparo em relação a tudo o que a jovem encontra. Seria ótimo se de acordo com a realidade do estudante, o conteúdo lecionado fosse útil ao seu cotidiano e ao mesmo tempo o preparasse para a vida fora de seu círculo social.

O que normalmente acontece, sobretudo na zona rural que tem a grade curricular baseada na que é formulada para as cidades, é que os alunos aprendem matérias distantes de seu cotidiano e não têm formação que os prepare para qualquer quebra de rotina de um cotidiano quase pré-estabelecido.

É evidente que a questão educacional é complexa em todo o mundo, de forma que não é um filme, tão pouco um texto de blog, que irá solucioná-lo, mas é bom notar que a precariedade do espaço físico é apenas um ponto e talvez até o mais fácil de solucionar.

Supomos que haja investimento na parte física, seja na escola do filme, seja em qualquer outra escola semelhante mundo a fora, melhorando as instalações e oferecendo mais que um toco de giz e um quadro negro. Como será a formação dos professores, já que tanto Wei quanto o professor titular não são bem preparados? E pior, como resolver o problema do jovem Zhang, sem pai, com a mãe doente e sem dinheiro?


terça-feira, 15 de julho de 2014

Hoje eu quero voltar sozinho

Em 2010 o curta-metragem ‘Eu não quero voltar sozinho’, do diretor Daniel Ribeiro, chamou a atenção pela qualidade e pelos temas abordados. Deixou também espaço para que a história fosse desenvolvida e a trama fosse aprofundada. Felizmente o material foi complementado por este longa-metragem, que não apenas chama a atenção para o cotidiano de um adolescente cego como ainda mistura a descoberta da sexualidade nesta conturbada fase da vida.

O protagonista Leonardo (Guilherme Lobo) é cego desde que nasceu. Sem memória visual, o adolescente frequenta uma escola comum e precisa apenas de algumas adaptações para que sua vida seja bastante próxima à de seus colegas. Claro, ele sempre precisará da máquina para escrever em braile, além de uma ou outra ajuda cotidiana, mas no filme o maior obstáculo para Leonardo acaba sendo sua própria mãe.

É compreensível que a proteção materna, que frequentemente ultrapassa os limites do necessário, ganhe corpo quando o único filho chega à adolescência – fase naturalmente contestadora e conflituosa – demandando liberdade e autonomia, independente de sua deficiência. O problema é quando o pretenso cuidado materno se transforma em empecilho.

Em seu dia-a-dia Leonardo conta com a ajuda de Giovana (Tess Amorim) para as atividades na escola. A amizade faz com que essa relação de ajuda seja reduzia a atos cotidianos, que parecem não estigmatizar a deficiência visual. Essa naturalidade é quebrada pela presença do bullying, praga escolar que apesar de antiga, frequente e grave, ainda conta com a condescendência de professores e diretores.

A chegada de Gabriel (Fabio Audi), novo aluno na sala, é a inclusão de um elemento diferente na amizade entre Leonardo e Giovana. O primeiro ponto que chama a atenção no personagem são as gafes bastante comuns por parte daqueles que não costumam ter contato com determinada deficiência. Muitos desses deslizes parecem absurdos quando vistos de fora, mas são inevitáveis em um primeiro contato.

Construindo aos poucos uma relação de empatia entre personagens e telespectador, nos envolvemos com a história a ponto de compreender um pouco melhor o descontentamento que algumas vezes os deficientes visuais demonstram diante de uma tentativa de ajuda. Costuma ser muito evidente que a intenção de ajudar é uma atitude bastante nobre, o que nem sempre percebemos são os sentimentos do indivíduo que não rejeita a ajuda por arrogância ou algo do tipo, mas simplesmente por buscar sua autonomia. Quantas vezes não temos que nos esforçar para manter a diplomacia diante de uma situação social que nos desagrada?

Finalmente, o que faz com que o filme salte do cotidiano de um adolescente cego – que já não seria pouca coisa – para uma obra bem desenvolvida e trabalhada com muita sensibilidade, é o desenvolvimento dos sentimentos ao longo da adolescência. A ausência da visão acaba obrigando a apuração dos outros sentidos para suprir uma deficiência, assim Leonardo está exposto a todas as dúvidas, angústias e problemas de todos os seus amigos; a deficiência visual acaba nos mostrando caminhos diferentes dos que estamos habituados a seguir, mas que talvez levem aos mesmos locais.

Relacionamentos nunca chegam a ser fáceis. Por mais evidente que seja o sentimento entre duas pessoas, dúvidas e hesitações sempre vêm à tona, sobretudo quando a imaturidade ainda dá as cartas. Com a falta da visão somos estimulados a pensar: o que faz com que nos sintamos atraídos por outra pessoa?

Indo além, o fato de Leonardo ser cego elimina o aspecto visual da atração. A partir disso, o que faz com que uma atração seja reprimida? Como costuma ser feito no cinema e em outras formas de expressão artística, aqui a visão é suprimida para que o amor ganhe uma forma mais intensa e sublime. É como se a forma fosse uma barreira para o conteúdo, de maneira que sua ausência reduzisse o sentimento a sua expressão mais pura.

Saindo um pouco da parte sentimental e abordando o filme com um viés mais sociológico, fica notável como a pressão social influencia sobre as relações, tanto de amizade quanto amorosas. Com tanta gente preocupada em definir o que pode e o que não pode acontecer em relacionamentos – como se tal absurdo fosse possível –, Leonardo nos mostra de uma forma carregada de simbolismos que a vida já nos rende problemas suficientes, a parte disso nos resta encontrar algum alento, independente de opiniões execráveis.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

Uma Noite (Una Noche)

O filme da diretora Lucy Mulloy é resultado de uma parceria inusitada entre Cuba e Estados Unidos. Na guerra ideológica que os dois países travam há décadas, o cinema sempre foi uma ferramenta importante para a defesa do ponto de vista de cada um. Rodado em Cuba, por uma diretora norte-americana, Uma Noite tem um viés crítico pouco explorado, voltado mais para a corroboração de estereótipos.

Por se tratar de uma ilha, a ligação de Cuba com outros países é facilmente controlada. Isso somado aos mais de cinquenta anos de embargo ajuda a distorcer tanto a visão que o mundo tem de Cuba, quanto a que os cubanos têm de outras culturas, sobretudo o vizinho inimigo.

Após um longo período de prosperidade econômica, graças aos laços políticos e econômicos com a União Soviética, Cuba teve que pagar o preço de não ter se industrializado. Atualmente, com a economia baseada no turismo, o país vive o dilema de manter os ideais da revolução – com o país voltado ao seu povo – valorizando os turistas que injetam dinheiro na economia.

Este cenário abre espaço para a história do protagonista Elio (Javier Nuñez Florian), que trabalha no restaurante do Hotel Nacional, ganha pouco e sonha com a hipótese de ir para Miami. O que poderia ser um devaneio adolescente ganha urgência quando seu amigo Raul (Dariel Arrechaga) agride um turista e coloca a fuga para os Estados Unidos como única saída para não ser preso.

O sonho de ambos é baseado na idealização do desconhecido. Economicamente Cuba enfrenta muitas dificuldades, assim como seus vizinhos caribenhos, com a peculiaridade de um estado forte, tentado alocar poucos recursos em áreas que tragam benefícios à população. O que seduz Elio e Raul é a riqueza material que Miami pode oferecer.

A única personagem que tenta, timidamente, trazer as esperanças para a realidade é Lila (Anailín de la Rúa de la Torre), irmã de Elio. Em uma fala pouco explorada, já que poderia ser mais bem desenvolvida mesmo sendo feita por uma adolescente, ela indica que a exploração do trabalho também ocorrerá em Miami, com o agravante de não ter certos benefícios existentes na ilha, como saúde gratuita.

Fica a cargo de quem assiste perceber que, da mesma forma que os adolescentes idealizam uma realidade ignorando o que não é conveniente aos sonhos, nós também somos guiados ao longo da maior parte do filme para um viés exagerado.

Sem cometer a inocência de achar que Cuba vive hoje da mesma forma que no ápice econômico da década de 80, não podemos esquecer que a comparação direta entre Cuba e Estados Unidos é completamente descabida. Muito mais plausível, apesar de incomum, seria uma comparação entre realidades e histórias semelhantes. Há cubanos dispostos a tentar cruzar noventa milhas em uma balsa precária e isso é um sério problema a ser evitado, entretanto é uma realidade que chama a atenção – além do fator político – devido a Cuba ser uma ilha.

Pensando que latinos de todos os países, inclusive do Brasil, juntam todas as suas economias para viajar ao México e de lá tentar cruzar a fronteira terrestre para os Estados Unidos, muitos morrendo devido ao calor extremo dentro da cabine de um caminhão, ou fuzilados pelos guardas da fronteira, notamos que o problema da imigração extrapola a guerra de aparências entre Cuba e Estados Unidos.

Pinçando exemplos de sucesso econômico em meio ao mar de latinos explorados nos Estados Unidos, ratifica-se a imagem de uma terra de prosperidade e modelo a ser seguido pelos demais países, desconsiderando que do ponto de vista do indivíduo, para cada exemplo de sucesso há uma massa de compatriotas em situação oposta; e do ponto de vista do estado, a economia americana é sustentada – entre outras coisas – por juros de dívidas de países pobres.

Uma Noite é um filme interessante, porém como primeiro trabalho da diretora, deixa claro a inexperiência e o potencial subaproveitado, que deve ser suprido por quem assiste ao filme para que este não se transforme em um panfleto de doutrinação, como tantos exemplos hollywoodianos.

Cabe ressaltar um detalhe do filme. Os personagens caminhando pela orla de Havana, onde o mar quebra no chamado malecón, um muro onde se pode sentar e ouvir o barulho do mar, por vezes sentindo o respingo da água salgada que espirra na calçada. Lugar único, extremamente atrativo e emblemático.


terça-feira, 24 de junho de 2014

Cine Holliúdy

Ao longo do séc. XX Hollywood se tornou a maior referência do cinema em todo o mundo. É na década de 70, no interior do Ceará, que se desenvolve a história do diretor Halder Gomes, fazendo referência ao polo norte-americano e mantendo as raízes locais, resultando no primeiro filme falado em ‘cearencês’.

Uma forma de entretenimento atrativa e potencialmente barata, o cinema já foi bem mais popular até sofrer concorrência com a popularização da TV. Ainda que a programação seja bem diferente a televisão, junto com vários outros fatores, foi determinante para o declínio das salas de cinema.

Felizmente o cinema conta com apaixonados como o protagonista Francisgleydisson (Edmilson Filho), que dedica sua vida para manter uma sala de exibição. Após fracassar, sua nova tentativa é na cidade de Pacatuba.

Antes mesmo de entrar no campo do cinema, a história do filme trabalha com os sonhos. Não é apenas através do objetivo de Francisgleydisson de abrir um cinema, mas toda a vida do personagem é permeada por um universo onírico que extrapola as fronteiras tradicionais e cotidianas do real.

Essa insatisfação com o cotidiano é fundamental para o cinema, que tem como uma das funções o entretenimento, mexendo com o imaginário popular. Inserir novos elementos no dia-a-dia daqueles que vivem na eterna rotina de trabalho desgastante amplia horizontes e dá novos sentidos ao que vivemos.

Se a questão fosse somente o conteúdo a televisão poderia, ao menos em parte, suprir a lacuna da falta de uma sala de cinema, porém, como fica claro no filme, uma sessão em uma sala específica proporciona grande mobilização direta e indireta. Exibir um filme implica em reunir pessoas, aproximar vizinhos e apresentar desconhecidos.

Diferente da programação televisiva, que tende a ter um fim em si mesma, uma exibição coletiva proporciona a interação e a troca de impressões entre os presentes, sendo os benefícios indiretos desse contato muito valiosos.

A intervenção dos televisores é paradoxal na época retratada no filme, pois a pequena quantidade de aparelhos, restritos às famílias mais ricas, acabavam reunindo várias pessoas para acompanhar a novidade de assistir a um filme ou a um programa no conforto do lar, porém não demorou muito para que a popularização dos televisores mantivesse cada família entretida na sala de sua própria casa.

Hoje essa individualização chegou ao extremo de cada cômodo ter um aparelho de TV, possibilitando a cada membro da família permanecer em seu próprio quarto, ainda que sintonizando o mesmo canal.

Com uma programação pobre e grade cinematográfica repetitiva, a supremacia da televisão foi construída a passos largos e hoje se sustenta com facilidade. As salas de cinema são raras e concentradas em grandes centros urbanos. Distantes da periferia e com ingresso mais caro do que muitas famílias podem pagar, as grandes empresas do ramo se instalam em shoppings, vendendo a imagem de segurança e comodidade para a pequena parcela de frequentadores.

Assim como é demonstrado através da pequena Pacatuba, a população pode não ter o hábito de ir ao cinema – pudera com tantos fatores contrários à prática –, porém existe grande demanda por entretenimento e muita curiosidade para conferir os filmes na telona.

Sem adiantar os conflitos necessários para o enredo da obra, notamos que não é apenas o filme que atrai a população, mas o universo onírico que encanta crianças e adultos. Em uma sociedade ainda não contaminada pelo espírito utilitarista que impõe uma vida regrada e séria, os moradores seguem muito mais próximos da tranquilidade e vida despojada, aberta às histórias fantásticas e fantasiosas do cinema e de Francisgleydisson.

Quem deveria estar atento e próximo à vontade da população seria o prefeito da cidade, mas como sempre a política tende a colocar os próprios interesses acima do interesse do povo, jogando com o investimento cultural conforme os votos que este possa garantir.

Cine Holliúdy é uma forma lúdica de mostrar um problema sério, que teve início por volta da década de 70, mas com desdobramentos extremamente presentes em nossa sociedade. As salas de cinema são cada vez mais raras, a população carente de cultura e os políticos negligenciando essa expressão artística com enorme potencial, que pode muito bem ser melhor aproveitado.


terça-feira, 10 de junho de 2014

O Passado (Le Passé)

Apesar de o diretor Asghar Farhadi ser iraniano, esta é uma produção francesa. O protagonista Ahmad (Ali Mosaffa) retorna de Teerã a Paris para legalizar o divórcio com Marie (Bérénice Bejo). A consequência dos quatro anos de separação é que Marie queria oficializar o fim do matrimônio para casar-se novamente.

A francesa mantem um relacionamento com outro iraniano, Samir (Tahar Rahim), e o que chama a atenção é que a presença de elementos da cultura iraniana não chega influenciar diretamente na trama. A tensão e o desconforto dos encontros e desencontros do filme são típicos da cultura ocidental, que por si já é machista, porém livre dos extremismos islâmicos que exacerba as diferenças de gênero no Irã.

O que o filme proporciona com muita competência é a reflexão sobre o conflito entre hábitos que vêm se concretizando na sociedade recentemente e valores morais ainda não superados. Até pouco tempo atrás a quantidade de divórcios era muito menor e, ao menos no Brasil, o divórcio só passou a deixar de ser proibido por lei em 1977 – claro, não quer dizer que as separações não acontecessem informalmente.

Nem estado nem igreja devem ter o poder de intervir na vida dos indivíduos a ponto de obrigarem um casal a permanecer juntos. Assim, o direito ao divórcio é uma conquista que hoje nos parece bastante óbvia – no Brasil ou na França, mas não no Irã. Porém a liberdade individual de poder dissolver um casamento não foi acompanhada de uma conciliação equilibrada entre indivíduo e sociedade.

Por mais que por ventura nos identifiquemos com o individualismo contemporâneo, não podemos, e no fundo nem queremos, nos afastar totalmente da vida em sociedade. Assim o divórcio ocorre, mas as relações sociais ainda existem e deve ser rearranjadas.

É com base nessas relações tensas que o filme de Farhadi se desenvolve, afinal, Ahmad não se opõe ao divórcio nem tem pretensão de retomar o relacionamento, porém isso não desfaz a tensão e o desconforto de seu encontro com Samir. Em nenhum momento é colocada a questão da divisão de bens ou algum problema mais direto, mas o estranhamento entre os dois conterrâneos é visível.

Conflitos são inevitáveis e é diante deles que nossa racionalidade deve se sobrepor, dando uma solução viável para o problema. Apesar disso as relações sociais são complexas, assim como os conflitos que surgem diante da necessidade de rearranjar cenários. Ainda que os três adultos em questão tenham atitudes relativamente maduras, eles não são os únicos envolvidos na história.

Marie tem uma filha pequena, mas é o filho de Samir, mais ou menos da mesma idade que a menina, quem mais sofre com a separação e novo relacionamento do pai. Sobretudo depois dos anos 70 as gerações vêm enfrentando grandes mudanças em relação à predecessora. O choque de gerações pode ser bastante comum, porém há certa continuidade dos valores.

Uma grande mudança, como o súbito aumento de divórcios e novos casamentos que ‘herdam’ os filhos de uma relação anterior, implica em uma nova geração sem muitas referências sobre como agir. Por um lado há a liberdade de agir, por outro a dificuldade de não saber balancear as vontades individuais com as obrigações diante das poucas pessoas envolvidas.

Não bastassem as crianças pequenas, Marie ainda tem uma filha adolescente com Ahmad, que não aceita o novo relacionamento da mãe e tem um sério problema com a ex-mulher de Samir, que está em coma. Paira sobre os motivos desse estado de coma uma trama bem interessante, com várias hipóteses plausíveis. É fato que ela está nesse estado por tentar suicídio bebendo detergente, mas o que a levou a tomar essa decisão pode ou não envolver a adolescente.

Por um lado podemos pensar em como as partes envolvidas em um caso complexo devem se relacionar com cuidado, mantendo seus direitos ao mesmo tempo em que levam em consideração o impacto que algumas atitudes terão sobre as pessoas próximas. Por outro lado, para Samir, haveria alguma maneira de permanecer ao lado de alguém capaz de cometer suicídio por ele?

Asghar Farhadi traz influências do cinema iraniano para o filme, mas retrata uma estrutura social muito identificada com a cultura ocidental. Mostra um tipo de relação social cada vez mais comum, mas que ainda é tratada de forma bastante imatura por muita gente. Em muitos pontos ‘O Passado’ pode ser encarado como didático, mas deixa claro que separações e novos relacionamentos são permeados por relações bem complexas.


terça-feira, 3 de junho de 2014

7 Caixas (7 Cajas)

O protagonista do filme de maior destaque do cinema paraguaio é Vitor (Celso Franco), um jovem de 17 anos que trabalha como carregador no Mercado 4. Em meio às vielas cobertas precariamente com lonas e divisórias improvisadas com caixotes de madeira, o garoto é um dos que passam o dia a procura de compras para carregar e conseguir algum trocado.

Os diretores Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori dão à história daquele que poderia ser apenas mais um carregador uma intrincada rede de problemas, expondo vários absurdos naturalizados por uma sociedade habituada a viver da maneira retratada.

Para os que passam o dia no mercado, independente de qual seja a função, o cotidiano é hostil, competitivo e violento. Não obstante, Vitor se encanta com um celular com câmera, que passa a ser seu sonho de consumo. Racionalmente o objeto não faria nenhuma diferença em sua vida. Não haveria muito que filmar, tão pouco muitas ligações a fazer ou receber.

Ao olharmos para alguém que julgamos precisar de outros bens, mas dá preferência para algo aparentemente inútil, costumamos cometer o erro de não olhar para nossas próprias compras ou desejos. Imersos em um sistema capitalista, somos induzidos o tempo todo a comprar algo que não precisamos, mas que aparentemente nos dará status, respeito, aparência, etc.

Com a ideia fixa de ter um aparelho celular, Vitor aceita um bico de transportar sete caixas pelo mercado, sem saber qual o conteúdo e sem um destino certo. Ele apenas receberia uma ligação em um celular emprestado e teria as instruções. Para o serviço aparentemente simples receberia cem dólares.

Misturando ainda mais nossa noção de certo e errado há o personagem Nelson (Víctor Sosa), que também é carregador e não tem dinheiro para comprar remédio para o filho. Costuma ser tolerável que um pai não meça esforços para cuidar da saúde do filho e isso faria com que déssemos preferência a Nelson no lugar de Vitor. Porém os personagens são construídos de forma invertida.

O conteúdo das caixas demora a ser revelado (e não será revelado aqui), mas desde o começo fica evidente que se trata de algo proibido. A partir daí a imagem de Vitor é construída como a de um menino explorado, que tenta a todo custo driblar os perigos que o cercam e realizar seu objetivo. Enquanto isso Nelson lidera um grupo que não medirá esforços para conseguir as sete caixas e, de alguma forma, transformá-las em dinheiro.

Talvez pela cena em que Nelson não consegue comprar remédio na farmácia ser muito curta, isso acaba tendo pouco peso ao longo do filme, contribuindo para a montagem de uma falsa dicotomia entre bem e mal, onde o agora herói Vitor luta ao lado de poucas personagens contra todo o resto que, cada um a sua maneira, promove trapaças e ilegalidades para ter alguma vantagem.

O desenrolar da história mostra uma trama bem amarrada e desenvolvida, com crimes, elementos policiais, amores e desavenças, mas diferente das grandes produções hollywoodianas, aqui a história acontece no submundo, onde o cotidiano dos personagens, mesmo sem o cerne do enredo, já seria o de luta pela sobrevivência em um mundo hostil.

Alguns momentos cômicos do filme vêm exatamente das paródias criadas com base de conteúdo consagrado em clássicos policiais, devidamente adaptadas ao cenário do mercado. O fato de o enredo ser verossímil pode indicar certas semelhanças sociais entre países distintos, porém os grandes filmes policiais costumam mostrar os protagonistas em um episódio de exceção em seus cotidianos. Em Sete Caixas a impressão é que aquele é o cotidiano.

Excluindo as tais caixas e toda a confusão que elas proporcionaram, o que o mercado de Assunção tem a mostrar? Os mesmos carregadores que trabalham desde cedo levando mercadorias pelas vielas, os policiais facilmente subornados, um ambiente hostil em que as pessoas vivem tensas, comida de baixa qualidade, trabalho mal remunerado, etc.

Uma estrutura social tão precária e condições de vida tão duras não justificam atitudes ilegais, mas ao menos nos colocam em uma posição muito mais desconfortável ao tentar julgar o comportamento de alguns personagens. Podemos saber o preço de um remédio, mas seu valor só pode ser dado pelo pai que precisa compra-lo ao filho.

Menos relevante, um celular de cem dólares pode não despertar grandes sentimentos para quem vive cercado de tecnologia, porém o impacto sobre um adolescente que vive para trabalhar e comprar comida é distinto e um simples aparelho com câmera pode se tornar um desejo de consumo dos mais irresistíveis. 


terça-feira, 20 de maio de 2014

Abril Despedaçado

O livro ‘Abril Despedaçado’ foi escrito pelo antropólogo Ismail Kadaré, com a história de vinganças entre duas famílias desenvolvidas na Albânia. O cenário peculiar e a descrição detalhada do ambiente tornam o romance bastante regional, de forma que não faria sentido uma comparação direta com o filme.

Apesar disso, a estrutura da história não é exclusiva, tendo sido transposta com maestria pelo diretor Walter Salles, com o sertão nordestino servindo de plano de fundo. A ideia de comparar livro e filme nunca é exatamente viável, e nesse caso é ainda menos plausível, já que a intenção nunca foi realizar uma filmagem fiel à obra original.

A aridez do sertão, que reduz a vida ao trabalho duro com recompensa mínima, se encaixou muito bem à história de assassinatos em sequência, que se repetem há várias gerações entre duas famílias que disputam com sangue uma parte da propriedade.

Essa insensatez da disputa mortal com base no ódio pode parecer bárbara à primeira vista, entretanto conflitos familiares são historicamente retratados na literatura, as vinganças se encaixam em locais bem distintos – como a Albânia e o sertão – e para analisarmos a disputa, é indispensável considerarmos o contexto social em que ela acontece.

Nossa aversão ou tolerância à violência estão ligadas à forma como fomos socializados, e isso não se restringe à violência física. Desde nossa apatia diante de escândalos de corrupção que chocariam pessoas vindas de países bem menos corruptos, até os índices de homicídios que toleramos dependendo da classe social atingida, definimos nossos padrões com exemplos absorvidos desde a infância.

No filme a infância é representada pelo menino sem nome, batizado informalmente de Pacu (Ravi Ramos Lacerda, em atuação exemplar), que viu o irmão mais velho ser assassinado e Tonho (Rodrigo Santoro), o irmão do meio, vingar a morte, sendo, portanto o próximo da lista.

O contato cotidiano com a morte deve ser somado, como já mencionado, ao trabalho duro do sertanejo, que tem início logo na infância. A moenda da cana, auxiliada pelos gados sofridos, e o cozimento do caldo para a produção de rapadura exige o esforço de todos, que mal garante o sustento da família.

Por acaso passam pelo menino um casal de artistas de circo, de quem ele ganha um livro ilustrado. Sem saber ler o garoto fica maravilhado com as figuras e repassa mentalmente a história para não esquecer. Esse universo lúdico, tão elementar nas crianças, frequentemente é coibido até mesmo nas escolas, que dirá em um ambiente familiar tão bruto quanto o retratado no filme.

Com várias gerações seguindo a mesma rotina, sem estudos, sem cultura, com trabalho pesado e mal remunerado ao longo de toda a vida, é impossível olharmos para a sequência de vinganças com os mesmos valores que adquirimos em condições totalmente distintas.

É evidente que nada justifica a violência, porém sem nunca ter saído do trajeto entre a casa e a venda em que a produção de rapadura é negociada, é perfeitamente aceitável que os personagens não tenham outra referência, senão honrar o nome da família com o sangue do inimigo.

Muito mais absurda seria uma situação em que pessoas instruídas defendessem de alguma forma a violência e a vingança pessoal como forma de justiça. A violência injustificada das vinganças familiares ainda seguem regras e códigos bem específicos, já a barbárie urbana que temos acompanhado através de linchamentos também tem a base alicerçada na socialização, mas é muito menos compreensível.

Entre muitas cenas enigmáticas do filme, vemos um grupo de crianças em um vilarejo espancando um boneco, que provavelmente representa a tradicional malhação de Judas. Atualmente a igreja Católica tem uma postura oficialmente contra tal prática, mas durante séculos essa aparente brincadeira doutrinou gerações a serem tolerantes ao espancamento público.

Essa associação raramente é feita, pois isoladamente a brincadeira católica não chega a ter uma influência tão grande a ponto de incitar um espancamento, mas vemos ao longo do filme – e em nosso cotidiano – que os fatores que estimulam a violência são diversificados. Na soma geral, cada um tem sua contribuição.

A mesma associação subjetiva pode ser feita em relação ao estado, que poderia e deveria intervir tanto na disputa de terras que originou o conflito, afinal as terras deveriam ser demarcadas e registradas, quanto na matança originada pela reivindicação de terra. Mais cômodo aos governantes é deixar que os sertanejos permaneçam isolados, se matando, enquanto a indústria da seca enriquece alguns bolsos.


terça-feira, 13 de maio de 2014

Coisas belas e sujas (Dirty pretty things)

Todos nós temos um padrão interno para o que chamamos de justiça. Punir o que é errado costuma ser o reducionismo mais aceito, entretanto somos parciais e incoerentes, seja fazendo vista grossa a um ato censurável cometido por alguém próximo, seja tratando de forma distinta pessoas desconhecidas que cometem o mesmo delito.

Misturando noções de certo e errado, o diretor Stephen Frears conduz seu filme com imigrantes ilegais vivendo em Londres. Viver em uma cidade estrangeira sem o devido visto de permanência já é uma ilegalidade, mas o que se segue são pessoas tentando fazer o possível para sobreviver, sendo exploradas por cidadãos nativos igualmente criminosos, como vemos no filme.

Em um mundo tão globalizado, é um argumento muito raso dizer que os imigrantes ilegais simplesmente deveriam ter ficado em seus países de origem. Pensando na história da humanidade, todo desenvolvimento de nossa sociedade é baseado em migrações, voluntárias ou forçadas. Migrando, o homem chegou a América; primeiro com os indígenas que povoaram o continente, depois com os europeus, que exploraram todos os recursos – naturais e humanos.

Atualmente as rotas migratórias são muito diferentes. Sem a escravidão institucionalizada e com a facilidade de deslocamento, a rota contrária pode ser realizada. Ou seja, ao invés de europeus espalharem-se pelo mundo, africanos, sul-americanos e asiáticos podem tentar uma vida melhor em países com grande responsabilidade sobre a miséria em suas terras natais.

Ainda que os motivos que levem alguém a assumir os riscos de ser imigrante ilegal em um país mais desenvolvido sejam variados, as consequências são sempre parecidas. É o que vemos no filme com o nigeriano Okwe (Chiwetel Ejiofor) e com a turca Senay (Audrey Tautou).

Sem o visto, eles devem permanecer invisíveis na sociedade. Não podem reclamar seus direitos perante as autoridades, o que os torna alvos fáceis para aproveitadores. O fato de serem imigrantes ilegais não dá o direito de serem tratados de forma ilegal.

Um dos primeiros erros do senso comum ao abordar a questão dos imigrantes é alegar que eles roubam empregos da população local. Como vemos no filme e como tentamos fechar os olhos para não ver em nosso cotidiano, os imigrantes são empregados para funções rejeitadas pelos moradores locais, como os bolivianos escravizados em São Paulo, os haitianos recrutados para serviços braçais ou, em países europeus, brasileiros que trabalham fazendo faxina ou trabalhos similares.

No filme o caso é ainda mais grave. Com ambos trabalhando em um hotel, Okwe descobre por acaso que um dos funcionários – um inglês – lidera um esquema de tráfico de órgãos, sendo que muitas vezes os imigrantes tentam trocar um rim por um passaporte legalizado.

Realizada sem as menores condições cirúrgicas, a extração do órgão rende, na melhor das hipóteses, uma infecção gravíssima aos que sequer poderiam procurar um hospital. Isso leva ao extremo a ideia de que uma ilegalidade não justifica a outra. Tanto podemos interpretar a situação do filme como literal, pois em alguns países os imigrantes ilegais são submetidos a qualquer coisa, inclusive mutilação, quanto metafórica, pois em locais onde os imigrantes são mantidos como escravos, vale expressão popular de que para pagar a dívida seria necessário vender um rim.

Durante toda a trama vemos o quando a sociedade é bem mais complexa do que o maniqueísmo entre bem e mal pode indicar. O ápice desta complexidade evidentemente vem no final da história, sem detalhes aqui para não comprometer nenhuma surpresa, mas muito além do filme, vale a pena estendermos suas reflexões para nossa própria sociedade.

É cômodo adotarmos a postura conservadora de apoiar a expulsão dos imigrantes. Enquanto compramos roupas barateadas pela mão-de-obra escrava ou toleramos salários indignos para imigrantes absorvidos pela construção civil, fechamos os olhos para o fato de sermos, todos os brasileiros, frutos de um conjunto de imigrações ao longo da história do país.

Como em qualquer lugar do mundo, nossa xenofobia também é seletiva. Qualquer imigrante oriundo de um país rico que venha abrir uma loja ou restaurante por aqui será bem recebido, sem que ninguém questione sua idoneidade ou os motivos que o fizeram imigrar. Já quando a origem é um país pobre, como a recém onda de imigrantes vindos do Haiti, o pressuposto é de que se tratam de pessoas sem instrução, que nada teriam a acrescentar ao país. Uma visão preconceituosa, que diferente dos imigrantes, de fato não acrescenta nada a ninguém.


terça-feira, 6 de maio de 2014

O Físico (The Physician)

Historicamente as religiões costumam prestar grande desserviço à ciência, sendo a medicina um bom exemplo de como o avanço do conhecimento pode ser barrado por crenças religiosas. Enquanto antigos egípcios e gregos nos surpreendem com procedimentos complexos para suas épocas, o período da Idade Média, dominado pela igreja Católica, mostrou pouco avanço, e por vezes até certo retrocesso para o desenvolvimento de tratamentos médicos.

É esse desenvolvimento lento e trabalhoso que vemos no filme do diretor Philipp Stölzl. Adaptado do romance homônimo, que deveria ter sido traduzido como “O médico”, o protagonista Rob Cole (Tom Payne) não mede esforços para desvendar os mistérios da cura, desde que, ainda criança, viu sua mãe morrer com dor de barriga – uma simples apendicite, que na época era fatal.

A falta de conhecimento é a porta de entrada mais comum aos charlatões. Desde a época do filme, que começa no ano 1021, curandeiros já empurravam qualquer coisa às pessoas fragilizadas por alguma enfermidade. Algumas vezes esses remédios eram baseados em conhecimento empírico, com ervas medicinais passadas de geração para geração, outras vezes, como indica o filme, até urina de cavalo poderia ser vendida camuflada como remédio.

Com os estudos proibidos pela igreja Católica, o oriente muçulmano oferecia mais espaço para o desenvolvimento da medicina, lecionada por Ibn Sina (Ben Kingsley). Isso não quer dizer que a ciência poderia se desenvolver livremente. Católicos não eram aceitos, por isso Rob teve que se passar por judeu, e a inviolabilidade dos corpos proibia a dissecação de cadáveres.

A picuinha entre religiões nunca trouxe nada de bom para a sociedade e é curioso que alguns pontos em comum, como a inviolabilidade dos corpos, contribuem negativamente. Com o pretexto de que o corpo é sagrado os cientistas não poderiam estudar a partir de cadáveres, ainda que as igrejas tenham sido inúmeras vezes condescendentes com a produção de cadáveres em massa.

É inegável que a liberdade científica avançou muito no milênio que seguiu à época relatada. Casos de religiosos que se recusam a receber tratamento médico por este ser incoerente com a fé são raros, porém muitas pesquisas, sobretudo com células tronco, ainda são tolhidas por pessoas sem a menor qualificação técnica para opinar, retardando o avanço de uma técnica que promete ser menos invasiva e com resultados surpreendentes.

Se por um lado as três grandes religiões do mundo não detêm mais o conhecimento, laboratórios rivais guardam suas descobertas a sete chaves, protegendo a patente e bloqueando o progresso em prol do lucro que os futuros remédios trarão. Mudam as justificativas, mas o egoísmo milenar continua sobreposto ao conhecimento em prol da maioria.

Semelhante aos dias atuais, vemos grande mobilização diante de epidemias mais graves, como no caso da peste negra, que assombrou a humanidade por séculos. Com os empecilhos citados e o pouco conhecimento, é notável como se sobressai uma forma construtivista de aprendizagem – não só em relação à medicina, mas também na matemática, construindo um gráfico do número de mortos de forma clara e didática.

No filme é necessário que tudo aconteça de forma mais rápida e abreviada, portanto vemos o mestre Ibn Sina trabalhando em conjunto com seus discípulos para desvendar algum segredo sobre o mal que assola a cidade. Noções de infectologia que hoje são extremamente básicas e banais só são conhecidas por qualquer criança por um dia terem sido desenvolvidas na prática.

As primeiras medidas profiláticas devem ser tomadas com base no agente transmissor da doença em questão. Quanto à peste negra, descobrir que o contato com pessoas infectadas transmite a doença e que ratos carregam as pulgas transmissoras foi fundamental para barrar o avanço da doença, já que os antibióticos que hoje tratam os doentes com facilidade só seriam desenvolvidos séculos mais tarde.

Curioso que a medicina preventiva esteja na gênese desta ciência por, a princípio, não haver a alternativa da cura. Hoje é bastante óbvio o velho dito popular que é melhor prevenir do que remediar, pois ainda que muitas doenças tenham cura todos preferem não adoecer. Não obstante, ainda padecemos com muitas doenças cuja profilaxia seria simples; tão básica quanto o saneamento básico que não chega a uma porcentagem expressiva dos lares brasileiros.

O Físico, ou médico, não apenas mostra de forma didática alguns passos importantes da medicina que conhecemos hoje, como também dá algumas lições que com nova roupagem devem ser ensinadas, tanto para os que precisam prevenir doenças quanto para os que seguem barrando o avanço a ciência de uma forma ou de outra.


terça-feira, 29 de abril de 2014

A teta assustada (La teta asustada)

Muitos consideram este filme, da diretora Claudia Llosa, como a melhor obra do cinema peruano. De fato o filme faz uma boa síntese entre elementos culturais indígenas e a influência europeia, cuja exploração ao longo de todo o período colonial ainda deixa marcas profundas, sobretudo com a absorção de péssimos comportamentos.

Ao longo da história vimos que a cultura de um povo não morre. Por mais que tente ser reprimida, alguns elementos sempre sobrevivem ao tempo, passando com esforço de geração para geração. Da mesma forma, a influência cultural externa é inevitável.

Um elo dessa soma de culturas no filme é a protagonista Fausta (Magaly Solier). Com fortes traços indígenas, a moça é fruto de um estupro – fato revelado através de uma canção em dialeto indígena, por sua mãe, um pouco antes de morrer. Segundo a crença indígena, por ser resultado de uma violência Fausta pegou a doença da ‘teta assustada’, absorvendo o medo através do leite materno.

Entre as várias pragas sociais trazidas pelos europeus para a América Latina, o estupro somou a dominação europeia e a masculina, e segue fazendo inúmeras vítimas até hoje. Muitas vezes o trauma desta violência, como vemos através de Fausta, é insuperável.

Símbolo do oprimido, a moça se porta como um bicho assustado e resignado ao longo de todo o filme, não por timidez, mas por subserviência. Seja diante dos patrões ou diante dos membros da própria família, é com muita dificuldade que ela luta por um enterro digno para sua mãe; levar o corpo até a cidade, que se torna difícil porque o dinheiro da família é consumido pelo casamento da prima de Fausta.

Tanto o casamento quanto o funeral são ritos presentes em praticamente todas as culturas, mas cada uma a seu modo. Fica claro que no filme ambos seguem o padrão católico, não indígena. A noiva tem que descascar uma batata, para mostrar uma habilidade culinária que supostamente atestaria seu preparo para o matrimônio. Além desse machismo latente, ela deseja um longo véu no vestido e penteado igual ao da personagem da novela, que acaba consumindo todo o recurso financeiro da família, obrigando Fausta a conseguir algum emprego para custear o enterro de sua mãe.

Mais uma vez o imperialismo secular é bem construído através das imagens. A personagem deixa o vilarejo onde mora, semelhante a uma favela, com construções concluídas antes de terminadas, para chegar até uma mansão colonial. Toda a imponência da construção já seria suficiente para intimidar alguém tão humilde quanto Fausta, não bastasse isso, a moça ainda é inspecionada como eram os escravos, que por sua vez eram escolhidos feito animais, examinando a qualidade dos dentes e características físicas.

O contato entre empregada doméstica e patrões também parece ter sido padronizado pela América Latina, absorvido de um histórico de escravidão, no qual empregados deviam ter dedicação exclusiva aos patrões. Hoje a escravidão não é mais institucionalizada, portanto deve receber uma camada de verniz para que se esconda sob a aparência de uma relação justa.

Fausta nos mostra uma sociedade em que o medo é onipresente. Em sua família o único laço mais forte era com a mãe, que acaba de falecer; entre os demais parentes a moça é preterida pela prima prestes a se casar; no emprego o medo da patroa a impede de reivindicar até seus direitos básicos; e no trajeto entre casa e emprego – únicos locais que ela frequenta – existe o risco latente de estupros.

Há uma metáfora curiosa em relação à dominação do machismo na sociedade, indicando que Fausta tem uma batata na vagina, para que não seja estuprada como a mãe. Não sei se isso está relacionado com a noiva descascando uma batata para provar suas habilidades, mas me remete ao medo constante e à simbologia dos absurdos que as mulheres têm que fazer, seja no distante vilarejo, seja nos grandes centros urbanos, para evitar um absurdo tão insano quanto o estupro, já que seguimos ensinando as mulheres a como não serem estupradas, ao invés de ensinar os homens a não estuprar.

Mesmo com as particularidades culturais, ‘A teta assustada’ é um retrato geral da América Latina. Explorada por séculos, a população naturalizou a violência a ponto dos oprimidos não desejarem a liberdade, mas ansiarem pela possibilidade de passarem para o lado opressor. Se não é possível atingir o topo da pirâmide social, outras formas de dominação cumprem a falsa ideia de poder. A mais comum é o estupro.


terça-feira, 15 de abril de 2014

Quase dois irmãos

A história de uma nação constrói seu momento presente. Apesar disso a história costuma ser citada de forma enviesada, sendo a multiplicidade dos fatos e suas versões uma grande contribuinte para o uso estratégico de acontecimentos passados.

No Brasil, quando falamos de corrupção buscamos raízes históricas, tentando minimizar o problema alegando que os desvios de conduta dos governantes sempre existiram por aqui. Já quando a ideia é a implementação de cotas para negros, os opositores alegam que a escravidão já ficou no passado, portanto supostos privilégios não fariam sentido.

Juntando raízes do período colonial com um fato bem mais recente, curto, mas não menos marcante de nossa história, a diretora Lucia Murat aborda a ditadura militar e seus desdobramentos de forma extremamente didática, através de três períodos da vida dos dois protagonistas.

Miguel, branco, e Jorge, negro, se conhecem ainda na infância graças ao contato de seus pais, na vida adulta (interpretados por Caco Ciocler e Flavio Bauraqui) voltam a se encontrar na cadeia, porém com uma diferença fundamental: Miguel é preso político e Jorge um preso dito ‘comum’.

Por vezes a opinião popular parece indicar uma fusão desses dois conceitos. Mais que isso, parece reduzir toda e qualquer infração a um crime passível das penas mais cruéis. Entretanto é necessário saber diferenciar o que é uma violência política e o que é uma violência criminal.

Principalmente em países europeus, com tradição democrática e histórico de lutas políticas, por mais que haja conflitos entre policiais e manifestantes, não existe a criminalização de movimentos sociais, o que existe é uma noção mais clara de que, em uma democracia, reivindicar um direito é uma base fundamental da estrutura política.

No Brasil a sociedade teve como exemplo a escravidão, que marca cerca de 75% de nossa história. Nunca houve uma classe trabalhadora organizada e politizada que reivindicasse seus direitos constitucionalmente. Os negros que tentassem algum tipo de organização eram torturados e mortos, para que os outros não seguissem o mesmo exemplo.

Essa cultura de repressão associada à clivagem social entre brancos e negros cria um cenário bem interessante para o filme. De um lado os presos políticos tentando engajar o restante dos presidiários, colocando problemas em votação e criando uma estrutura de poder horizontal – pelo menos em tese. Do outro lado os presos por atitudes criminais começavam a colocar nos presídios as regras que com o passar dos anos tornaram-se quase uma constituição à parte nas instituições prisionais.

Nossa tendência maniqueísta de olhar para os fatos em busca de um certo e outro errado nos atrai para uma visão egoísta das situações, encarando tudo o que for mais próximo a nós como certo e o mais distante como o errado que merece punição mais severa.

Esse conflito desnecessário é bem expresso no filme pelos presos políticos, que acabam tentando impor ordens tal qual o governo que combatiam, e pelos presos comuns, que se negavam a acatar decisões que seriam benéficas para todos. Tudo extremamente vantajoso para aqueles que estão no poder.

Dividida e brigando entre si a população fica muito mais fraca do que unindo forças em torno de um objetivo em comum. Essa conclusão é válida para um cotidiano restrito, como uma cadeia dividida no período de ditadura militar, e também para uma sociedade inteira, da qual o filme não se esquece.

Além da infância e juventude, vemos os dois protagonistas na era pós-reabertura política, em situações muito mais próximas do que vivemos hoje. Corroborando os estereótipos, Miguel – branco e preso político – virou senador e Jorge – negro e ex-presidiário – líder do tráfico em uma favela. O destino quase pré-definido desde a infância tem raízes que vão muito além do período da ditadura.

A escravidão institucionalizada pode ter acabado há mais de um século, a ditadura há cinquenta anos, porém nossa sociedade segue estigmatizada por estes períodos. Negros seguem marginalizados desde a infância, com menos oportunidades, lotando presídios e taxados de culpados por problemas sociais dos quais são vítimas. Militantes políticos, embora tenham mais liberdade que nos anos da ditadura, seguem criminalizados, como se lutar por um direito fosse uma afronta à democracia, ao invés de um de seus pilares.

No topo de uma relação de poder extremamente verticalizada encontram-se, há séculos, aquela minoria que têm responsabilidades diretas pelos problemas sociais. Cometendo crimes econômicos realmente expressivos e lesando com isso toda a sociedade, promovem a criminalização de movimentos sociais e a perpetuação do racismo, que entre outros fatores desviam o foco da desigualdade social insana que tanto prejudica o país desde seu passado mais remoto.


terça-feira, 1 de abril de 2014

Os filhos do padre (Svecenikova djeca)

Esta comédia utiliza caricaturas e estereótipos para expor críticas à postura da igreja católica diante de mudanças sociais. Com tantas tentativas de intervenção nos direitos civis por parte da igreja, o diretor Vinko Bresan nos apresenta a partir de um pequeno fato uma teia shakespeariana de problemas, mostrando que a realidade está distante de qualquer controle.

Mais do que um entretenimento, a obra nos proporciona uma oportunidade de reflexão, que não deveria ser contestada por religiosos, mas que o histórico de intolerância indica ser uma oportunidade desperdiçada pelos mesmos.

O ponto de partida é o jovem padre de uma pequena ilha, Fabian (Kresimir Mikic), que alertado por Petar (Niksa Butijer), um comerciante local, que a baixa natalidade da ilha estaria relacionada à venda de preservativos, toma uma atitude extrema: furar as camisinhas antes da venda, para que a concepção ocorra, na versão do padre, segundo a vontade de Deus.

Seguindo os dogmas da igreja, Fabian não estaria totalmente errado, já que o método anticoncepcional é condenado. O problema, não restrito ao filme, é a imposição de um dogma por parte da igreja, ainda que no filme isso seja exibido de forma metafórica.

Os princípios das grandes religiões que dominam o mundo foram formulados há séculos ou até milênios atrás, quando a sociedade era radicalmente diferente de hoje. Imaginar que seja possível seguir a risca os ensinamentos bíblicos – para ficarmos restritos ao catolicismo do filme – implica em alguns problemas.

Uma questão de escala: a população há mais de dois mil anos era muito menor que a de hoje, índice de mortalidade maior e o planejamento de vida era indiscutivelmente mais simples. Ainda que na Europa muitos países tentem combater a baixa natalidade atual, o mundo hoje demanda planejamento familiar e não ter filhos é uma alternativa com impacto muito menor em relação ao papel do indivíduo na sociedade.

Outro ponto fundamental em imposição de fundamentos religiosos é o fato de a Bíblia conter inúmeras metáforas, portanto sujeitas às mais diversas interpretações, de acordo com a conveniência daqueles que a leem. Não bastasse isso, o livro sagrado foi escrito em uma língua arcaica, traduzido para o latim, grego antigo e algumas outras fases até chegar às versões atuais. Se uma obra contemporânea, escrita no universal inglês, tem problemas de tradução, o que dizer de um livro tão antigo, nas condições citadas?

E, entre tantos outros fatores que poderiam ser considerados, chama a atenção para a tolerância à diversidade. Em dois mil anos de cristianismo, é de se esperar que as pessoas tenham autonomia para decidir o que devem ou não fazer, isso se aplica tanto aos católicos, curiosamente tolerantes a certas proibições bíblicas como o sexo antes do casamento, quanto aos adeptos de outra ou nenhuma crença.

Assim como no filme, ninguém quer impor o uso de preservativo àqueles contrários ao anticoncepcional, e o mesmo se aplica às outras questões polêmicas em que a igreja interfere diretamente na vida de cidadãos que por vezes sequer querem seguir seus dogmas.

Ao ignorar o livre arbítrio e insistir em impor um comportamento a igreja, que é bem diferente da religião, acaba descobrindo o que se recusava a admitir, ou seja, a proibição do preservativo se desdobra em problemas muito maiores do que a gravidez quando aparecem as relações extraconjugais, sexo casual e tantas outras coisas que a igreja proíbe, mas os fiéis não.

De forma bem realista, a hipocrisia de alguns membros da igreja também marca presença no filme. A ideia do ‘faça o que eu digo, não o que eu faço’ é praticada pelo alto clero desde tempos remotos, seja na pregação da humildade em meio a um altar luxuoso, seja no moralismo sexual em meio a escândalos que vão de relações sexuais consentidas à pedofilia.

É evidente que as discussões em relação às religiões e suas posturas são antigas e inesgotáveis, porém é interessante notar, em meio ao ritmo suave e bem humorado do filme, que o papel da igreja na sociedade é outro. O controle sobre a esfera privada deixou de fazer sentido, se é que um dia o fez, e atualmente a igreja pode realizar ações muito mais coerentes com seus dogmas se assumir as mudanças sociais que aconteceram ao longo dos séculos.

Até mesmo ter a humildade de admitir os próprios erros é uma virtude pregada pela igreja, mas distante da realidade dos clérigos. Assim como o padre Fabian, a instituição prefere esconder um erro com outro, juntando remendos que cedo ou tarde se tornam insustentáveis. Se uma das premissas religiosas é proporcionar conforto aos fiéis, cabe lembrar que a vida já é difícil o bastante sem o cabresto moral da igreja.


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