terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Leviatã (Leviafan)

Um Estado, em tese, deveria zelar pelo bem-estar do cidadão. Atuar como mediador de conflitos e alocar os recursos de forma eficiente são prerrogativas teóricas de qualquer governo representativo. Da religião deveríamos esperar uma atuação semelhante, pois mesmo após a laicização dos governos as igrejas mantêm a pretensão de atuar pelo bem de seus fiéis.

O diretor Andrey Zvyagintsev mostra que essas funções podem ficar bem distantes da realidade quando, na prática, o Estado e a igreja são geridos por pessoas totalmente descomprometidas com o que deveria ser sua real função. É com essas pessoas que a sociedade deve lidar.

Mesmo com o enredo se desenvolvendo em uma pequena cidade no norte da Rússia, os temas expostos são universais. Ao menos no Brasil o momento atual nos aproxima dos russos, não apenas devido ao bloco econômico BRICS, mas uma trajetória pós-ditadura e um irritante histórico de corrupção endêmica faz com que nossas terras tropicais se aproximem bastante das terras áridas e geladas.

O protagonista Kolia (Aleksey Serebryakov) poderia seguir uma vida pacata, lidando com percalços naturais e monótonos de uma pequena cidade, mas desde o começo vemos que ele tenta proteger sua casa e oficina, onde a prefeitura da cidade pretende construir um prédio.

Se por um lado um dos deveres do Estado é garantir aos cidadãos seu direito à propriedade, por outro os interesses coletivos se sobrepõem aos individuais. Caso haja uma necessidade justificável a propriedade privada pode ser desapropriada. O que vemos no filme – e no dia-a-dia – são governantes cedendo à pressão política e econômica de classes mais altas e prejudicando diretamente pessoas como Kolia.

Grandes propriedades têm a chamada função social. Países que conseguiram atingir um nível mais elevado de democracia representativa impedem por meios legais a acumulação ilimitada de terras, grandes edifícios abandonados em áreas com muita infraestrutura, etc., já que tudo isso acaba pesando indiretamente na conta das classes mais baixas.

Já em países com grande desigualdade social e consequentemente pouca representatividade política, as classes economicamente superiores adotam o falso discurso de liberdade para subverter as funções do estado. Assim como o Brasil, a Rússia viveu um longo período ditatorial. Políticos não precisavam dar satisfação dos seus atos, dissidências eram resolvidas de forma violenta e a imagem de grandeza era sustentada com muito mais maquiagem do que fatos concretos.

No filme essa época terrível é indicada de forma paradoxalmente muito bonita. As cenas externas são repletas de grandes navios encalhados, que em contraposição ao passado aparentemente glorioso do qual participaram, agora enferrujam e apodrecem no mar, assim como a ossada de baleia sugerindo, entre outras possibilidades de interpretação, a grandeza natural que também é efêmera, restando à posteridade somente seus descendentes. Este é, politicamente, o ponto crucial.

O atual regime político descende daquela incompetência de gestão baseada nos interesses pessoais acima do coletivo. A burocracia mantem níveis desnecessários e o Estado, simbolizado no filme pelo prefeito bêbado que tenta impor sua vontade de forma ridícula, se apoia nos ricos para que juntos permaneçam longe dos mais pobres.

O conteúdo de Leviatã se encaixa nas ideias descritas por Hobbes em seu livro homônimo. Resumindo ao extremo, um Estado que na teoria é onipotente, necessário para manter a ordem entre os homens, cuja relação é bastante conflituosa, conforme vemos no filme. Mesmo assim, a igreja aparece no filme com uma metáfora interpretada da maneira que mais lhe convém.

Diferenciando a religião da instituição igreja, vemos que esta desde sua origem opta pelo poder, mais do que pelo conforto espiritual de seus fieis. O conluio entre a cúpula da igreja – seja ela a ortodoxa do filme ou a romana que se sobressai em nossa sociedade – com políticos corruptos costuma ser tão eficiente para ambos quanto maléfica para a sociedade.

O poder da igreja que poderia influenciar positivamente na política em prol do cidadão é na verdade trabalhado para ludibriar fiéis e amenizar seus prejuízos. Religiões trazem poucas mensagens claras. A maior parte de seus dogmas é baseada em metáforas tão abstratas que podem ganhar o significado mais conveniente para as situações vividas.

Seguindo este pensamento, o Leviatã referente ao estado onipotente é interpretado pelo religioso como a criatura bíblica que vive nos mares. Joga ao cidadão um peso que na verdade pertence ao estado e tira a atenção do verdadeiro causador do problema.

Leviatã é um filme longo, tem tempo suficiente para alternar períodos dinâmicos com partes mais lentas, apresentando um cinema russo que é desconhecido para a maior parte do público brasileiro. Ainda assim as injustiças vividas por Kolia e sua família farão par a muitas situações daqueles que assistirem ao filme por aqui.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O mercado de notícias

De acordo com o dicionário, “Mercado: sm (lat mercatu) Lugar público onde se compram mercadorias postas à venda.” “Notícia: sf (lat notitia) Conhecimento, informação.” Pela dinâmica de funcionamento de um mercado que coloca mercadorias a venda, negociando preços de acordo com a demanda e qualidade, poderíamos pensar que notícias não deveriam ser vendidas em um mercado. Não se negocia conhecimento como se fosse uma mercadoria qualquer.

Neste documentário o diretor Jorge Furtado mostra que na prática o conhecimento proporcionado pelas notícias é, sim, negociado como em um mercado. Uma prática tão cotidiana da imprensa que muitas vezes sequer nos damos conta.

Este mercado não é recente, tão pouco uma exclusividade brasileira. O filme é baseado em uma peça de comédia homônima, escrita pelo britânico Ben Jonson no século XVII. Fazendo um retrospecto da imprensa desde então, o longa mostra como a mídia vai muito além de informar, trabalhando para formar opinião de acordo com seus interesses, por vezes de forma escancarada.

Ainda que exista um padrão mundial de atuação jornalística, com muitos profissionais trabalhando longe da ética, é muito pertinente desenvolvermos esse tema com base no jornalismo nacional e suas nuances.

É premissa que a imprensa deve ser livre e isenta de qualquer tipo de censura. Lutamos ao longo de duas décadas por isso e muitos morreram na tentativa de exercer o simples direito de expressão. Demos um passo gigante ao conseguirmos o fim da censura institucional dos meios de comunicação, porém isso não implica no fim de todos os problemas.

Se antes o impasse era um governo ditatorial que vetava publicações, hoje a grande mídia, oligárquica ao extremo, utiliza a égide da censura para tentar moldar a opinião pública em benefício próprio. Ou seja, é evidente que a censura é muito sedutora em um país onde os governantes têm tanto a esconder, o que não dá aos veículos de comunicação o direito de manipular os fatos para criar verdades.

Poderíamos pensar nessa prática como desnecessária. Vivemos em um país que os escândalos de corrupção brotam de qualquer obra pública ou prática política, qual a necessidade de guiar a opinião pública? As variáveis são muitas, mas algumas peças se encaixam muito facilmente.

Conforme já citado, a mídia brasileira é comandada por poucas famílias, que há várias gerações detém o controle do que é veiculado. As organizações Globo, maior de todas, possuem canal de TV, rádio, jornal, portal de internet, editora e concentra uma fatia gigante deste mercado de notícias, tendo obtido sua concessão, assim como quase todos os outros canais midiáticos, através de amizades bastante controversas com presidentes.

A concessão ilegal é a semente de uma série de relações comprometedoras, que influenciam diretamente na divulgação de notícias. Se na teoria o governo tem autoridade para rever as concessões, na prática qualquer tentativa de legaliza-las pode ser facilmente noticiada como uma tentativa de censura. Com razão tememos a censura, pois sofremos muito com ela, porém a regulamentação da mídia – e não de seu conteúdo – é prática comum e necessária.

Como um mercado, que de acordo com a demanda dos consumidores abastece suas prateleiras com produtos que terão mais vendas, os jornais têm como pauta assuntos que rendem repercussão. Não existe na prática a chamada imprensa imparcial. Em um mundo globalizado, no qual as informações circulam por todos os países em tempo real, condensar conteúdo em uma única edição, independente de qual seja o formato, significa escolher o que vai ou não ser publicado, e por melhor que sejam as intenções isso já implica em parcialidade.

Pode parecer simples, afinal basta um bom jornalista investigar uma denúncia, apurar os fatos e redigir uma matéria. O problema é que por trás desse roteiro há interesses influentes de pessoas poderosas. Em meio aos escândalos de corrupção o jornalista pode acabar seguindo ramificações que esbarram no próprio veículo para o qual trabalha ou em nomes que por diversos motivos não devem ser citados.

Além dos comprometimentos suspeitos há ainda a dificuldade técnica de elaborar o trabalho jornalístico, fato que o filme aborda com muito bom humor. Em meio à falta de tempo e pressão para entregar o trabalho finalizado antes do fechamento da edição, não é raro que jornalistas abandonem o rigor da investigação em seu nível mais básico e acabem publicando verdadeiros absurdos.

Sem dúvida é absurdo, conforme vemos no filme, um jornal destacar um quadro de Picasso, que na verdade é um pôster do original. Porém muito mais grave é uma publicação tendenciosamente falsa, com objetivos bastante claros, e que não pode sofrer nenhum tipo de sanção, sob a égide do combate à censura. 


terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Whiplash - em busca da perfeição

Que a qualidade de um músico está relacionada à sua dedicação poucos duvidam. Alguns têm mais facilidade e outros precisam de mais treino, porém os maiores gênios da música acumulam horas e horas de estudo musical.

O que o diretor Damien Chazelle nos mostra são os bastidores de um músico com técnica extremamente apurada e uma das formas, bem controversas, desse músico ser ensinado e treinado por um mestre.

A junção de um professor exigente e técnico ao extremo como Terence Fletcher (JK Simmons) com um aluno dedicado e esforçado como Andrew Neyman (Miles Teller) pode render apresentações que deixam o público boquiaberto. Por outro lado a música, qualquer que seja o estilo, não se restringe à técnica, pois esta é uma ferramenta para que sentimentos e emoções sejam expressados pelo músico que a executa.

Terence Fletcher alega ser exigente em sua busca pela perfeição. Por um lado isso é o mínimo que se espera de um professor da melhor escola de música dos EUA, por outro existem muitas formas de guiar essa busca que não incluem humilhações, agressões e desmotivação de alunos.

O trabalho de Fletcher dá resultados, afinal uma escola renomada não manteria um professor que não forma bons profissionais. Podemos pensar até mesmo em casos reais que vivenciamos, já que todas as áreas têm profissionais como Fletcher, e apesar de incomodadas com o estilo de ensino, as pessoas acabam, bem ou mal, concluindo o curso.

O que fica implícito no filme é que para cada músico excepcional lapidado por Fletcher, há uma infinidade de bons músicos em potencial que acabam desistindo da carreira. Sem nenhum spoiler é possível dizer que o filme deixa bem explícito um exemplo de fracasso deste método de ensino, que poderia ter sido evitado.

É bem compreensível que Andrew não meça consequências para se firmar como principal baterista da banda ensaiada pelo tão temido professor. Além do gosto pela música e da determinação que o leva a correr atrás de seu sonho muito bem planejado, sua personalidade responde muito bem ao estilo de desafio imposto.

Um profissional extremamente renomado chegar para um iniciante e destruir suas expectativas afirmando categoricamente que ele não tem talento e nunca chegará em um nível satisfatório pode render reações opostas. Muitos simplesmente baixam a cabeça e desistem; entre estes é possível que haja alguns que realmente nunca conseguiriam ter sucesso, mas outros acabam desperdiçando um potencial. No outro oposto há pessoas como Andrew, que farão qualquer coisa para provar que são capazes.

Entre os pouquíssimos personagens que fazem parte da vida de Andrew fora da escola de música, presentes sobretudo para servir de contraponto à sua vida profissional e para mostrar o quanto ele está disposto a se dedicar a música, estão sua namorada, a quem ele abandona diante da primeira ameaça do professor de tirá-lo do posto de baterista principal, e seu pai, que talvez seja também o único amigo de Andrew.

A família tem sempre um papel delicado no desenvolvimento de um músico. São evidentemente contrários à forma como o filho é tratado por Fletcher, o que é muito compreensível, só não podemos esquecer que a ascensão profissional é sempre difícil e trabalhosa. Muitas vezes no ímpeto de proteger a cria, os pais afastam os filhos do que consideram prejudicial e com a melhor das intenções acabam dificultando a superação de desafios. Fique feliz se seus pais te elogiarem, mas fique preocupado se só seus pais te elogiarem.

Permeando a conturbada relação entre Andrew e Flechter, Whiplash explora muito bem a linguagem cinematográfica para retratar a música. O ator Miles Teller tem ótima atuação e o som da bateria sincronizado com imagens que ressaltam os detalhes geralmente perdidos por nossos olhos são realmente inspiradores.

Para quem não faz questão de aplicar uma técnica perfeita e impecável a música pode ser uma válvula de escape para a tensão, cansaço e stress do dia-a-dia, com qualidade satisfatória para a maioria esmagadora de pessoas que não têm ouvido apurado o suficiente para identificar falhas tão sutis.

Aos que não abrem mão do nível máximo de excelência, é possível que um professor como Fletcher caia como uma luva, mas ainda acho que o verdadeiro mestre não é aquele que trata a todos com o mesmo rigor, mas aquele que sabe identificar o método mais eficaz para extrair o máximo de cada aluno, respeitando as características de aprendizagem de cada um e, principalmente, sem desmotivar ninguém. Fácil, não é.


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Esse amor que nos consome

Os diretores Allan Ribeiro e Douglas Soares trouxeram para as telas a Companhia Rubens Barbot Teatro de Dança, juntamente com seus integrantes, para um filme que mistura documentário e ficção, mostrando mais que a realidade de um grupo artístico. Dentro do contexto do filme podemos notar uma crítica sensível a questões pertinentes, sobretudo em grandes cidades, como a especulação imobiliária, discriminação social e a dificuldade de exercer uma atividade artística de forma profissional em uma sociedade tão utilitarista.

Com um ritmo mais lento, diálogos bem naturais e planos longos, o filme tenta mostrar o cotidiano de forma fiel, nos aproximando do dia-a-dia dos personagens que encenam suas próprias vidas. Curiosamente destoa de filmes comerciais e consequentemente luta por notoriedade e espaço, assim como a própria companhia que guia a história.

O primeiro impasse a ser superado é a falta de local para ensaiar. Se por um lado os ensaios não demandam muito – apenas uma sala vazia, com espaço suficiente para os integrantes – por outro o grupo não consegue patrocínio e é com dificuldades que consegue se manter ativo. Como em qualquer grande cidade, a despeito da demanda de imóveis para os mais diversos fins, há várias casas e prédios vazios, que permanecem nesse estado por vários anos, se deteriorando, acumulando lixo e sem exercer a função social, que teoricamente é garantida pela constituição.

Foi uma consulta aos búzios, uma entre tantas influências que o candomblé exerce sobre os personagens, que confirmou a viabilidade de aceitar a oferta de um empresário que autorizava o uso de um casarão, ainda que o mesmo estivesse à venda. Enquanto o grupo ensaia alguns interessados visitam a casa, acompanhados pelo corretor, que interage com os responsáveis pelos ensaios com muita naturalidade.

Com um problema ao menos temporariamente resolvido, o grupo segue seus planos. Em paralelo com as ideias que afloram de um coletivo voltado para a arte, o diretor busca patrocínios para ampliar as possibilidades artísticas. Cada vez mais visto como um investimento, os empresários querem patrocinar qualquer coisa que traga lucro para a empresa. Com isso as chances de uma companhia de dança, ou seja, uma expressão artística que insistimos em ver como um passa tempo, receber um bom patrocínio são muito baixas.

Qualquer um que tenha contato com alguma atividade artística, seja a dança, pintura, música, artes cênicas, etc., sabe o quanto a dedicação é diretamente proporcional à qualidade do resultado. O amor à arte consome tempo, consome recursos, consome dedicação, sendo que neste caso não estamos falando em artistas consagrados e bem remunerados, com todas as condições de exercer sua atividade de forma profissional. A grande maioria dos artistas deve exercer outra atividade remunerada para ter seu próprio sustento, que nem sempre dá condições financeiras para que a dança seja exercida ao mesmo tempo.

Assim sentimos o pesar do personagem que comunica ao diretor a necessidade de um afastamento para conseguir um emprego. O lamento expresso quase como um pedido de desculpa é bem compreendido pelo diretor, que conhece aquela situação, mas pouco tem a fazer para resolvê-la.

Ser artista nunca chega a ser fácil, a menos que se tenha nascido em berço de ouro e às vezes mesmo assim o caminho é tortuoso, porém em países com mais tradição artística, principalmente na Europa, as atividades talvez sejam um pouco mais valorizadas. Aqui não temos essa tradição. Somos, desde nossa origem, um país voltado para a produção material, que abastecerá o mercado externo. Ainda que hoje a população tenha acesso à arte e ao consumo imaterial, o caminho do artista ainda é subjugado e visto com preconceito quando comparado a uma profissão economicamente mais lucrativa.

Esse amor que nos consome, entre outras interpretações possíveis, é o amor à arte, à dança, à expressão artística que exige tanto e socialmente retribui tão pouco. Uma vantagem das grandes cidades, que no filme é o Rio de Janeiro, mas a característica se repete nos outros centros urbanos, é que em meio ao caos, ao stress e a pressão por resultados econômicos, há um espaço apertado e de difícil acesso ao que foge da rotina.

Com toda a dificuldade que envolve a dança, além da dificuldade intrínseca de aprimoramento de sua técnica, há a recompensa de viver um sonho quando se consegue superar as dificuldades, alcançando uma vida distinta dos que infelizmente não conseguem superar todos os obstáculos e acabam sucumbindo a uma vida dentro dos padrões, com a segurança de um salário fixo e a ausência deste amor, que nos consome.


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Infância Roubada (Tsotsi)

Um assaltante rouba um carro, levando no banco de trás o bebê da vítima. Já vimos isso acontecer algumas vezes por aqui, porém é esse o fato que conduz o longa do diretor Gavin Hood; uma história desenvolvida na África do Sul, mas que poderia tranquilamente retratar a sociedade brasileira.

O terror de uma pessoa que vê o filho com poucos meses de vida levado por um assaltante é indiscutível, o tipo de sentimento que só sabe realmente o que é aqueles que infelizmente tenham passado pela mesma situação. Mas esse não é o foco do filme. O que vemos é o desenrolar deste fato na vida do protagonista Tsotsi (Presley Chweneyagae), que roubou o carro.

Por vezes diante de um crime de muito impacto vemos opiniões que parecem olhar para os criminosos como isentos de qualquer tipo de sentimentos e qualquer tentativa de análise que fuja de uma condenação simples e draconiana é logo rechaçada. Esse julgamento impiedoso poderia começar a ser construído em relação a Tsotsi, já que no início do filme não sabemos nada sobre sua vida e seu comportamento parece bastante agressivo, entretanto mesmo a partir do ponto de vista mais frio e isento de afetividade, não faria sentido levar um bebê sem se importar com as consequências.

Além de juridicamente a pena por sequestrar uma criança ser muito maior que um roubo de carro, a comoção e mobilização da sociedade em torno de algo que envolva um bebê também é enorme, sobretudo se for de uma família rica como a do filme, o que faz com que as chances da pessoa que cometeu o crime ser descoberta aumentem muito.

É com o desenrolar da história que conhecemos um pouco mais sobre Tsotsi. Vemos que ele está longe de ser um criminoso tão impiedoso e mais que isso, conhecemos sua trajetória até chegar ao mundo do crime. É um modelo de vida bastante frequente. Cotidiano tanto na África do Sul quanto aqui, ilustra o histórico de vida de diversos jovens que tentam ganhar a vida cometendo crimes.

Por mais estranho que possa parecer, nossa noção de crime é uma construção social. Temos valores assimilados desde a infância que abominam certas atitudes e se não nos fazem impassíveis diante de outras, nos deixam ao menos um pouco mais tolerantes. É isso que faz, por exemplo, um sujeito criticar um morador de rua por pedir esmolas ao invés de procurar emprego e, quando chega em casa, assistir à TV a cabo com ligação irregular.

Indo além de um exemplo banal, a tolerância aos crimes maiores também são construídas socialmente. Assim como uma criança que cresça em meio a advogados que constantemente movem processos para resolver desavenças irá assimilar essa prática, uma criança que cresça rodeada por armas, assassinatos e agressões também ira naturalizar esse tipo de violência.

Essa análise visa exatamente à quebra da dicotomia entre bem e mal, portanto não se trata de defender bandido, dar liberdade a criminosos e prender os ditos ‘cidadãos de bem’ em casa ou qualquer outro equívoco do tipo. O fato é que uma cidade com desigualdade social tão grande a ponto de proporcionar a convivência de realidades tão distintas gera conflitos inevitáveis.

No engodo de defender a repressão como forma de inibir a violência, costuma-se deixar de lado a vida extremamente restrita que uma pessoa sem estudo e sem oportunidades terá. Quando muito pegam como exemplo um caso de sucesso, no qual o indivíduo superou problemas homéricos até obter sucesso econômico de maneira honesta e tentam coloca-lo como viável para todos.

Um caso entre milhares é o que Pierre Bourdieu chamava de exceção que serve para confirmar a regra. É falsa a premissa de que a meritocracia resolveria os problemas individuais, dado que a grande maioria trabalha pesado a vida toda para ganhar pouco e não conseguir ascensão social.

Alguns, como Tsotsi, optam por um caminho radical, criticável, mas condizente com a realidade social com a qual estão habituados. Quando desde criança um jovem é cercado por diversos tipos de violência, sem referência familiar e com pouquíssimas perspectivas, é no mínimo inocente acreditar que naturalmente ele irá discernir entre certo e errado, sobretudo quando o ‘certo’ envolve aceitar uma desigualdade que o desfavorecerá durante a vida toda.

Igualmente inocente é a crença de que os que optam pela criminalidade tem uma vida boa ou de alguma forma melhor do que aqueles que trabalham. Basta olhar o índice de mortalidade entre jovens da periferia para ver que a realidade é mais dura do que os preconceitos podem tentar convencer.


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A memória que me contam

Um grupo de amigos se reúne na sala de espera de um hospital, a espera de notícias de uma paciente, membro do grupo. A particularidade é que a união desses amigos aconteceu algumas décadas atrás, quando todos combatiam a ditadura militar. 

Quem está internada é Ana, personagem inspirada na guerrilheira Vera Sílvia Magalhães, que aparece no filme somente na memória dos personagens representada por Simone Spoladore, ou seja, ainda jovem.

A diretora Lucia Murat foi muito precisa na escolha do título do filme. Quando um grupo de pessoas se reúne e começa a lembrar algum fato vivido o resultado é uma versão formada dialeticamente por fragmentos fornecidos por cada um. Por mais que tenhamos certeza de fatos passados, nossa lembrança é inevitavelmente impregnada por sentimentos que moldam nuances dos acontecimentos.

Essas divergências criam vários conflitos entre os amigos, que ao discutirem acabam abordando questões da ditadura que não devem ser esquecidas, e a reação de boa parte da população ao recente relatório elaborado pela Comissão da Verdade – criada para investigar crimes cometidos durante a ditadura – mostra o quando é importante contar essas memórias a partir do ponto de vista de que foi oprimido.

Os personagens demonstram, cada um a sua maneira, que as consequências do período militar ainda estão presentes em suas vidas, o que é bastante plausível, pois mesmo que já tenha passado quase trinta anos do fim da ditadura, as cicatrizes psicológicas deixadas nos combatentes são profundas e reavivadas por uma visão preconceituosa contra aqueles que lutaram pela liberdade.

Difícil de acreditar, mas ainda hoje há quem aceite que vivemos o risco de um golpe que instale uma ditadura chamada de comunista e ainda hoje há quem defenda um golpe militar que instale uma ditadura contra essa ameaça. É esse argumento pífio que é utilizado até hoje para justificar os crimes cometidos pelos militares ao longo de 21 anos de nossa história.

Trinta anos depois da reabertura política, não podemos dizer que vivemos um período político tranquilo. Um detalhe extremamente relevante é que nunca houve uma tranquildade consistente em nossa política. Se pensarmos na política como um retrato da sociedade que ela representa, a disparidade social gritante que marca a história do Brasil impossibilita uma política minimamente satisfatória, já que a despeito da sociedade pluralizada, os políticos são formados quase exclusivamente pelas classes mais altas.

Com a mídia assumindo papel de principal formadora de opinião da sociedade, ela molda a história de acordo com seus interesses. Apoiou a ditadura quando considerou necessário, retirou o apoio quando já não era preciso e agora auxilia na criminalização de movimentos de esquerda, associando militantes a criminosos.

Essa visão enviesada é um dos alvos dos diálogos do filme. Com uma direita mais coesa e homogênea, unida para a defesa de seus próprios interesses, a esquerda juntava forças esparsas e difusas para lutar por liberdade e justiça social. Multifacetados, os militantes políticos lidavam com as divergências internas com longos debates e deliberações, diferente do autoritarismo do governo vigente.

A partir do momento em que o governo democrático brasileiro foi derrubado e o poder foi tomado de forma ilegítima, ações civis começaram a ser coordenadas como resistência, daí surgem assaltos a bancos para financiar a guerrilha, além do famoso sequestro do embaixador norte-americano, do qual participou Vera Sílvia Magalhães. Hoje é cômodo e conveniente aos militares alegarem que a ditadura apenas combatia esses militantes ditos ‘criminosos’, porém tais delitos só existiam em represália ao governo sem legitimidade política.

Beneficiados pela insana lei da anistia, militares alegam que os revolucionários também não foram punidos por seus atos, omitindo pertinentemente as sessões de tortura física e psicológica pelas quais os opositores do regime foram submetidos. O filme retrata as torturas de forma tímida. Podemos ver alguns personagens que apresentam sintomas, desde os mais leves até a loucura em nível mais crítico, porém uma barbárie tão cruel talvez merecesse mais destaque.

Escondendo-se por trás da censura e toda rigidez que protegia o governo da época, os militares de hoje exaltam o crescimento econômico da ditadura e indicam os escândalos de corrupção atuais para forjar uma defesa ética. A imprensa, que hoje conta com a liberdade impensável no auge da ditadura, poderia ao menos esclarecer para a população como a dívida externa do país disparou para sustentar o aparente crescimento e como a corrupção era incalculável e omitida através de censura rígida.

A memória que o filme conta é bem distinta da estória que os militares contam. Independente de qualquer visão política é uma memória que deve ser revisitada com frequência, contada por pessoas que merecem antes de tudo muito respeito, não apenas pela obstinação com que lutaram, mas também pelos castigos físicos e psicológicos que tiveram que passar para que o país pudesse se livrar de um período tão sombrio.


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Boyhood - Da Infância à Juventude

Não é raro que devido a dificuldades financeiras um projeto cinematográfico se estenda por vários anos até sua versão final, porém não é esse o motivo que levou o diretor Richard Linklater a demorar doze anos para a conclusão de sua obra.

Ao invés de utilizar vários atores para retratar a vida do protagonista Mason (Ellar Coltrane), todo o elenco foi reunido uma vez por ano para filmar uma sequência, finalizadas em um corte de quase três horas, acompanhando não apenas Mason, mas também seus parentes próximos ao longo de mais de uma década.

É possível imaginar algumas dificuldades para a realização de um projeto tão inusitado e peculiar. Sem dúvida o roteiro teve que passar por adaptações e o enredo não conta com nenhum grande tema. Uma narrativa bem linear mostra de forma bastante clara as dificuldades que encontramos da infância à juventude e como o contato com uma série de pessoas ao longo dos anos influencia nos moldes de nossa personalidade.

Mason e sua irmã Samantha (Lorelei Linklater) não foram planejados, o jovem casal formado pelos pais logo se separou e a guarda das crianças tendo ficado com a mãe acaba dando ênfase na vida de Olivia (Patricia Arquette). Criar filhos não é fácil, sobretudo quando essa tarefa cai no colo de uma pessoa que acaba de deixar a adolescência, com a expectativa de viver a vida sem as amarras familiares da juventude.

Olivia se desdobra para ser a melhor mãe possível, cuidar da própria carreira e conciliar tudo com sua vida pessoal. Gravado no extremamente conservador estado do Texas, a imagem que o filme nos passa do pai das crianças não poderia ser outra. Mason Sr. (Ethan Hawke) não chega a ser um pai ruim, porém passa tão pouco tempo com os filhos que dependeria de um grande esforço para utilizar alguns poucos fins de semana para além da ausência ainda tomar atitudes ruins.

É evidente que ser um pai ausente deixando nas mãos da mãe praticamente todo o trabalho pesado já faz com que Mason Sr. não seja um exemplo. Apesar disso, é possível encontrar em meio a esse machismo alguns diálogos bem produtivos entre pai e filho, com conselhos preciosos e, com a falta de jeito natural diante de algumas situações, as devidas instruções que nem sempre são feitas por pais fisicamente presentes em tempo integral.

Como não acompanhamos a vida de Mason Sr. fora do contato com as crianças, não existe a certeza dos percalços em seu caminho, mas sem dúvida a distância das crianças dá a possibilidade de uma margem de erro muito maior. Olivia tem todo o direito de seguir sua vida, a diferença é que novos relacionamentos, conturbados e complexos para qualquer pessoa, ganham um peso maior quando crianças estão envolvidas.

Neste ponto o machismo texano é gritante. É possível que a dificuldade de relacionamento com os filhos seja superada pela dificuldade de relacionamento com os enteados, o que não alivia a tentativa quase infantil de padrastos querendo se impor de forma desnecessária e excessiva. A tentativa mais que compreensível de Olivia de proteger os filhos esbarra inevitavelmente no desgaste de relações entre todos os envolvidos, inclusive dela com as crianças, cuja visão de mundo muito mais objetiva e prática dificilmente compreende certas complexidades desnecessárias dos adultos.

Entre idas e vindas os personagens crescem, os adultos amadurecem e o ciclo mais comum da vida em sociedade vai aos poucos sendo completado. Em alguns pontos é possível notar as cenas um pouco desconexas, até pelas características da filmagem, sem que isso influencie na qualidade da obra.

Em um filme tão longo, nem sempre é o protagonista Mason que está em evidência, há espaço para os que o cercam, ainda assim acompanhamos os processos mais importantes do menino que passa pelas dificuldades de cada fase até chegar à universidade. Ao contrário das expectativas que se cria ao redor de um protagonista, ainda que a vida de Mason guie o filme, são as entrelinhas de sua vivência que dão vivacidade às tramas.

A vida de Mason poderia ser mostrada de uma forma mais simples e resumida, utilizando vários atores para que as filmagens não demorassem tanto, porém as relações sociais que permeiam o protagonista perderiam força. O acaso que nos faz encontrar com pessoas desconhecidas, com o poder desconhecido de mudar nossas vidas em poucas palavras é construído ao longo do crescimento de Mason nestes doze anos.

Essa característica de ter uma história sustentada por frágeis detalhes está presente em todos nós, mas poucas vezes paramos para pensar no que nos estrutura. Por mais que tenhamos sonhos e idealizemos nossos passos, fechar os olhos para os imprevistos seguindo a risca cada meta pode ser mais prejudicial que benéfico.

Neste sentido Olivia ganha destaque no filme. Depois de um início fundamental a mãe passa a ter participações discretas, ainda que importantes, mas quando vemos a trajetória dos filhos, da qual ela não só faz parte como também tem participação ativa, é possível notar como ela superou os imprevistos da vida sem muita noção de como agir, mas com a determinação de quem não quer abrir mão de poder olhar para trás e notar que fez seu melhor.

Particularmente me decepcionei com seu último diálogo com Mason – sem detalhar o conteúdo para não dar spoiler – ainda assim, nada que comprometa a produção inusitada de uma filmagem de doze anos, rica em relações complexas, que expõe qualidades e defeitos de pessoas que vivem a vida em um constante improviso.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera (Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul Geurigo Bom)

Com este filme o diretor Kim Ki-duk nos apresenta uma alternativa à cultura ocidental que prevalece nos longas que estamos habituados a assistir. O drama conta com partes de humor que quebram a tensão e não impedem nossa reflexão sobre alguns pontos.

A base do enredo é uma cabana isolada entre as montanhas, no centro de um lago, onde vivem um velho monge (Yeong-su Oh) e seu aprendiz (Ki-duk Kim). O cenário deslumbrante, característica marcante de vários filmes orientais, ganha destaque com a pouca, porém destacada, intervenção do homem na natureza.

Muitos elementos da cultura e religião local permeiam a vida dos dois monges, cujos hábitos os mantêm em grande harmonia com a natureza. Mesmo sem ter grande familiaridade com os costumes, vemos que o culto à divindade não é parte das atividades diárias, mas uma prática constante e indissociável do cotidiano, marcando presença de forma contínua na vida de ambos, desde a infância até a velhice.

Como elo entre as fases da vida, unindo homem e natureza, temos as estações do ano, bem distintas naquela região. Associando as características das estações com as fases da vida – sobretudo do jovem monge – o diretor consegue deixar bem clara a ideia de ciclos que se alternam, dos quais fazemos parte.

Na primavera, como sinônimo de florescência, vemos a infância do jovem monge, brincando e descobrindo detalhes da vida como qualquer criança, mas distante de qualquer contato com a sociedade. Sua única referência é o velho sábio, que passa conhecimento de forma prática e por vezes bastante dura.

Corroborando a ideia do verão como ápice da vida, uma fase posterior às flores desabrochadas, na qual o calor aquece e também estimula, é de se esperar que a vida do monge ganhe elementos que traduzam esse esplendor associado ao verão. Isso é expresso através de uma mãe que, devido à sabedoria do velho monge, traz sua filha (Yeo-jin Há) para ser curada de uma apatia que nossa cultura nos induz a diagnosticar como depressão.

O roteiro se desenvolve de forma previsível. É evidente que haverá algum tipo de atração entre os dois jovens. O monge e a nova hóspede têm mais ou menos a mesma idade e apesar de não sabermos nada sobre a vida dela, em relação ao jovem é provável que tenha sido seu primeiro contato com o sexo oposto.

Essa previsibilidade prática não impede a riqueza das metáforas e de análises possíveis. O velho sábio tem seus hábitos bastante rígidos; é curiosa a presença de portas, cuja passagem é respeitada mesmo com a ausência de paredes, que do ponto de vista prático inutiliza a existência. A presença da moça é o que desestabiliza o dia-a-dia dos monges, fazendo com que pela primeira vez o mais novo passe a questionar e desrespeitar as tradições que ele nunca havia pensado em mudar, desequilibrando assim a relação com o tradicionalismo de seu mestre.

Entre as poucas falas do filme, destaca-se uma afirmação do velho monge: "A luxúria desperta o desejo de possuir. E isso desperta a vontade de matar." Pensando no estilo de vida que temos não nos resta alternativa senão acreditar que há formas distintas de lidar com a posse e com as vontades, embora não faltem exemplos que corroborem a afirmação.

As ações do filme se restringem à cabana isolada, com a interação de poucos personagens, ou seja, é provável que o jovem monge tenha recebido ensinamentos valiosos de sem mestre, mas não foi socializado. Alguns de nossos valores e sentimentos são tão enraizados que não percebemos tê-los devido à proximidade com a vida em sociedade, da qual absorvemos características.

Geralmente nos deparamos com uma interpretação romantizada de um velho sábio que vive à margem da sociedade, mas com muita sutileza o filme nos mostra que esse isolamento exacerbado pode ser trágico quando de alguma forma esse contato social precisa existir. Na melhor das hipóteses o jovem monge ainda não atingiu um estágio suficiente de maturidade para lidar com os fatos inusitados provenientes de contatos insólitos.

O simples fato de viver em sociedade não implica em desenvolver certas habilidades, afinal a relação entre luxúria, posse e morte é muito mais frequente do que deveria em qualquer cidade, mas tentar resolver esse determinismo trágico simplesmente se afastando do contato social não parece ser de fato uma solução, mas uma frágil aparência de paz interior.

Mais eficiente seria tirar proveito do conhecimento do velho sábio, aplicando seus ensinamentos para suavizar certos sentimentos e tornar a vida em sociedade menos hostil ao invés de exacerbar a hostilidade por conta do estranhamento que a distância proporciona.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

Baraka

Este é um documentário que explora muito bem o recurso da imagem no cinema. O que poderia ser um recurso evidente e até elementar das telas, por vezes acaba sendo negligenciado com uma supervalorização da palavra. Aqui o diretor Ron Fricke trabalha com o extremo oposto ao fazer um filme sem diálogos, transmitindo tudo através de imagens bem articuladas e trilha sonora impecável.

Sem dúvida essa técnica torna a obra muito mais abstrata, com sentido amplo a ser definido por cada pessoa que a assiste. Isso não chega a ser um problema, afinal é um filme que ao longo de toda sua extensão provoca reflexões e lança questionamentos implícitos em suas sequências.

Uma das leituras possíveis do conteúdo é a apresentação de uma ‘breve história do tempo’, bem menos exata que a obra do físico Stephen Hawking. Das imagens iniciais, mesclando locais paradisíacos com a calma proporcionada por locais sagrados, somos apresentados a várias religiões.

Não é por acaso que as principais religiões do mundo são milenares. Uma de suas funções é exatamente o conhecimento, uma tentativa de explicar as dúvidas existenciais que acompanham os homens. De um simples relâmpago à origem da vida, tudo é atribuído a uma divindade, antes do desenvolvimento de conhecimentos mais científicos.

Intercalando planos, Ron Fricke nos mostra grandes cidades, sempre caóticas, poços de petróleo queimando e as religiões de uma forma bem mais contemporânea, com menos tranquilidade e mais caos. O caminho entre esses dois extremos não é curto, envolve séculos, milênios e coloca-lo no espaço de um longa metragem sem diálogos deve ser uma tarefa baseada em escolher o que não colocar.

Além da religião, ou mesmo junto com ela, a arte marca presença ao longo de nossa história. Desde as pinturas rupestres mais rudimentares, da arte de pintar o rosto dos indígenas e aborígenes, até as formas atuais, expressas também como arquitetura, música e tudo mais.

Talvez a síntese dos conteúdos dispersos exibidos sejam as grandes cidades. Natureza, arte, religião, exploração de recursos, exploração de pessoas. Assim como cada um de seus habitantes, as cidades despertam, cumprem suas jornadas – muitas vezes tão duras – e dormem. Têm sido assim há séculos e é pouco provável que grandes mudanças ocorram em pouco tempo.

O passo seguinte das sequências não é exatamente animador. Em contraposição a tantas belezas e imagens tranquilizadoras, as cidades também concentram ruínas, fome, destruição e o acúmulo de uma história rica em arte, mas também em guerras. O povo sofrido, por vezes esquálido, pouco tem em comum com exuberância dos ‘selvagens’ em harmonia com a natureza que os cerca.

Se pensarmos que um documentário como este tem material para manter a linha de belezas e logros, poderíamos concluir que há um pessimismo ao indicar o declínio a partir das grandes cidades, porém infelizmente há um desfecho coerente ao escancarar a desigualdade e a má distribuição de qualquer tipo de recurso, do mais simples e básico ao mais sofisticado e dispensável.

Recentemente uma pesquisa deu corpo a essa desigualdade. Foi divulgado que as 85 maiores fortunas mundiais equivalem à renda da metade da população. Em um mundo em que a desigualdade se esconde sob a égide da meritocracia, vemos que o conteúdo apresentado no filme está restrito nas mãos de pouquíssimas pessoas, cuja fortuna não pode ser sustentada sem que muitos passem fome.

Há quem defenda este absurdo alegando o investimento e geração de emprego por parte de quem tem recursos para investir, entretanto é essa ilusão que mantem um sistema tão frágil. Assim como a renda é desproporcional, o consumo dos indivíduos é igualmente concentrado, fazendo com que a pequena parcela mais rica também demande recursos que não são compatíveis com a oferta do planeta.

Mais do que um desequilíbrio econômico, que já não é pouca coisa, o documentário nos mostra um desequilíbrio ambiental insustentável. As mazelas das cidades não ficam restritas ao seu perímetro urbano, mas espalham-se extraindo riquezas em suas mais diversas formas.

O que fazer com uma sociedade que a partir de pequenas tribos dominou o planeta a ponto de coloca-lo em estado de alerta é uma questão difícil de ser respondida, sobretudo em apenas um filme. Porém a história não nos mostra apenas o passado, ela nos ensina, nos alerta e pode oferecer respostas. Livre de uma proposta conclusiva, Baraka propõe reflexão. Será que o habitual é mesmo o melhor ou único caminho?


terça-feira, 18 de novembro de 2014

O lobo atrás da porta

Ao longo do século XX as relações sociais tiveram algumas mudanças consideráveis, muitas delas devido ao crescimento do movimento feminista, que passou a combater as desigualdades de gênero e a lutar por direitos básicos que as mulheres, até então, não tinham.

Hoje é evidente que as mudanças em fluxo, que dão notoriedade para as vontades femininas, muito maiores que a simples vida para a satisfação de um homem, são extremamente benéficas, porém valores retrógrados ainda são fortes e têm o poder de implicar em verdadeiras tragédias.

Essa transição fica nas entrelinhas do longa do diretor Fernando Coimbra. A relação extraconjugal que forma o triângulo amoroso entre os protagonistas é apenas um verniz sobre o ideal de família perfeita e sobre o machismo que dá ao homem privilégios de gênero.

As traições devem ser tão antigas quando a ideia de monogamia. O escândalo de uma relação entre amantes marcam a história quando, frequentemente, os casos de infidelidade são protagonizados por pessoas famosas, ou cujas consequências extrapolam os limites familiares, tendo efeito sobre um grupo maior de pessoas.

O que marca a diferença do que vivemos hoje é que há um século as traições masculinas eram mais frequentes e mais aceitas pela sociedade, enquanto a mulher que protagonizasse uma traição seria socialmente censurada, com sua pena moral extremamente agravada se o relacionamento culminasse em uma gravidez indesejada.

Estamos longe de uma igualdade plena de direitos. Ainda existe certa complacência com a infidelidade masculina e o peso da gravidez indesejada recai quase que totalmente sobre a mulher, porém é inegável que vários fatores, como a inserção da mulher no mercado de trabalho e maior escolaridade das mesmas, aproximaram os gêneros e uma mãe solteira hoje não carrega um peso moral tão grande quanto no início do século passado.

É nessa realidade que se encaixa a personagem Rosa (Leandra Leal). Ela não se importa em manter uma relação com Bernardo (Milhem Cortaz) mesmo depois de descobrir que ele é casado e tem uma filha pequena. Por outro lado mantem o ideal de um relacionamento romântico, sonhando com o dia em que o amante irá abandonar a família para ficar somente com ela.

Bernardo tem o comportamento padrão dessas relações, ou seja, utiliza os benefícios que os valores machistas ainda vigentes proporcionam para manter os dois relacionamentos, inventando todas as desculpas necessárias enquanto pode.

Ainda que este cenário seja cada vez mais comum, o desenrolar dessas histórias sempre rendem conclusões problemáticas, quando não trágicas. Valores conflitantes fazem com que boa parte da sociedade ainda considere obrigatório o conceito de casamento eterno, fiel e preponderante para a família padrão, composta por um casal fiel e seus filhos.

Mesmo que haja uma tolerância muito maior aos filhos anteriores ao matrimônio, é gritante o despreparo de casais e antigos casais para lidar com uma nova realidade familiar. Poderíamos esperar que com a assimilação de novos valores e até mesmo de desenvolvimentos morais, as pessoas demonstrassem maturidade diante de impasses.

Já não toleramos – felizmente – que os pais negociem o casamento dos filhos visando aglomerações econômicas, tão pouco que casais continuem juntos mesmo sem afinidade afetiva para manter a tradição de um casamento eterno. Mas ainda não é tão chocante o jogo psicológico que utiliza crianças como reféns.

Se tivermos a pretensão de melhorarmos socialmente deveríamos notar que tão inconcebível quanto um casamento escolhido pelos pais é o fato de tentar manipular os filhos ou enteados de alguma forma para atingir os adultos envolvidos.

Assistindo ao filme, na qualidade de expectadores oniscientes, a interação dos protagonistas pode parecer insana, o problema é que com pequenas nuances de comportamento e com desfecho distinto o enredo do filme é muito mais comum do que deveria.

Não se trata de tolerar qualquer comportamento de forma impassível e isenta de sentimentos, mas sim de compreender quando os sonhos antes compartilhados já não seguem por caminhos paralelos, sabendo respeitar o momento de se afastar.

O filme coloca a cartada final – e insana – nas mãos de Rosa, mas cabe ressaltar que é o tipo de história em que a responsabilidade não pode ser carregada por somente uma das partes. Bernardo, a exemplo de tantos personagens semelhantes na vida real, passa todo o tempo agindo de forma egoísta e irresponsável. Isso não justifica nem autoriza o comportamento irresponsável das demais pessoas envolvidas, mas instiga reações desproporcionais.

Ainda que tenhamos melhorado ao longo do último século, ainda temos muito que aprender em termos de relacionamentos que começam e terminam.


terça-feira, 11 de novembro de 2014

Mil vezes boa noite (Tusen Ganger God Natt)

Encontrar bons filmes não chega a ser uma tarefa difícil, sobretudo entre os estrelados por Juliette Binoche. O mérito deste longa do diretor Erik Poppe é unir em uma história simples uma série de problemas que nos proporcionam um turbilhão de sentimentos.

Por um lado a protagonista Rebecca (Juliette Binoche) poderia ser o exemplo máximo de mulher bem sucedida. Com uma boa situação econômica, uma vida confortável na Irlanda e uma família que poderia estrelar um comercial de margarina. Por outro lado Rebecca trabalha como fotógrafa em zonas de conflito e parece que a tensão e instabilidade dessas zonas atingem em cheio os pilares de sua vida.

Ao mesmo tempo em que o diretor nos deixa extasiados com a fotografia impecável do filme, chocados com a preparação de um atentado a bomba logo no início e emocionados com a dedicação de Rebecca, que arrisca a própria vida por ver em seu trabalho uma ferramenta de denúncia, ainda tempos que lidar com conflitos familiares egoístas e até certo ponto imaturos.

É compreensível que seu marido, Marcus (Nikolaj Coster-Waldau), preocupe-se com a segurança e as filhas sintam medo com as viagens da mãe, principalmente a mais velha, entretanto a reação de Marcus é sempre conservadora, provinciana e incompatível com a personalidade corajosa de Rebecca.

Em nosso cotidiano é muito mais comum encontrar pessoas que se assemelham a Marcus, ou seja, sabemos ao menos superficialmente das mazelas e tragédias que assolam certas partes do mundo – não necessariamente na África ou Oriente Médio, pode ser no bairro ao lado, dependendo da cidade –, porém dificilmente estamos dispostos a dar um passo além da indignação tímida e passiva.

Os temores da família em relação à vida da fotógrafa são toleráveis. Diante de uma situação de risco o medo é natural e benéfico, pois impõe limites que podem nos salvar. O problema é que o mesmo medo que nos salva, muitas vezes nos castra, nos coíbe e nos empareda em um cotidiano minúsculo, onde permanecemos trancafiados, habituados com um horizonte limitado e pobre.

Rebecca é o exemplo extremo que ilustra essa ideia. Por que uma pessoa com tantas possibilidades de conforto e tranquilidade enfrenta a objeção das pessoas que ela mais ama para se embrenhar em situações perigosas na tentativa, sem nenhuma garantia de sucesso, de salvar pessoas que ela nem conhece?

Não fosse nosso egoísmo e individualismo exacerbados a questão mais pertinente seria o que faz alguém se acomodar ao olhar pela janela e ver tantos absurdos. Na Irlanda ainda é possível que a sociedade seja mais homogênea e os choques de realidade não sejam tão explícitos, fazendo com que Rebecca buscasse nos conflitos da África e Oriente o material de suas inquietações. Já nas grandes cidades brasileiras a fotógrafa poderia cruzar poucos quarteirões para sair de sua confortável e luxuosa casa e chegar em algum lugar marcado por conflitos, que clama por serviços e poderia fornecer muito material de denúncia.

Independente do país em que morasse, o fator comum seria a reação de surpresa da maioria das pessoas, esperando que ela utilizasse seu talento como fotógrafa para temas considerados mais seguros. Colocam os locais de conflito como perigosos – e muitos de fato são – mas não consideram a hipótese do abandono por parte do restante da sociedade como um agravante para a violência e para a baixa qualidade de vida local.

Diante do abismo social entre as classes distintas, é muito conveniente que as classes mais altas se eximam da culpa, que de fato não é individual mas coletiva. Claro, não é a proposta do filme estimular que todos peguem uma máquina fotográfica e corram para zonas de conflito, ele apenas escancara uma clivagem desnecessária que se estabelece na sociedade por parte daqueles que não somente se contentam em reduzir sua existência a um local confortável, como ainda querem coibir a ação dos que estão dispostos a correr riscos por uma mudança indispensável.

Fechamos os olhos para a existência de oprimidos, alimentamos medos que muitas vezes são desnecessários ou exagerados e com isso nos fechamos em um mundo pequeno, o menor possível, esquecendo que fronteiras não existem naturalmente. A manutenção desta realidade é bem pior para aqueles que sofrem com a violência diária, porém cabe destacar que os adeptos da postura conservadora de Marcus também são atingidos.

Seria exagero dizer que essas pessoas são vítimas, mas o preço que pagam é ter uma vida limitada pelo medo, pela alienação que absorvem de geração em geração, fazendo o possível para coibir quem tenta fugir pelo menos um pouco da desigualdade insana que nos cerca.


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Preso na Escuridão (Abre Los Ojos)

O diretor Alejandro Amenábar não chegou a brilhar diretamente com seu longa metragem, mas a obra deu origem à refilmagem “Vanilla Sky”, dirigido por Cameron Crowe. Sem querer diminuir a obra de Crowe, seu trabalho foi muito mais fácil; pegar uma boa trama, analisar os pontos falhos, reencenar com grandes astros como Tom Cruise e Cameron dias, além de Penélope Cruz, presente em ambos, e tudo isso amparado por um orçamento milionário.

Amenábar tem o mérito de lançar a obra original em um país com muito menos tradição que a badalada Hollywood e encantar por brincar com a ideia de espaço e de tempo através de uma aparentemente simples história de amor.

A princípio o enredo é o mesmo de qualquer novela da Globo. O galã César (Eduardo Noriega), rico e bem sucedido, se encanta pela bela Sofia (Penélope Cruz). Ao aceitar uma carona de Nuria (Najwa Nimri), a quem até então estava tentando se desvencilhar, César se envolve em um acidente, no qual a moça morre e ele tem seu rosto completamente desfigurado.

Poderíamos imaginar que a história se desenvolveria com a dificuldade de um personagem como César lidar com uma condição inusitada, em que seu dinheiro não pode resolver um problema. De um lado o narcisismo arrogante de quem sempre teve tudo e está habituado a se tomar como modelo a ser seguido, de outro o discurso vazio e pouco eficaz que tentaria diminuir a importância das cicatrizes, valorizando o conteúdo.

Diante de uma situação semelhante o que resta às pessoas próximas é realmente tentar dissociar a pessoa de sua aparência. Teoricamente está correto, pois nenhum fator externo deveria ser tão preponderante diante do que somos. Já na prática esbarramos em dois problemas:

Primeiro que pelo pouco que vemos César não chega a ser um exemplo de conteúdo e mesmo sendo um exímio desenhista, se destaca principalmente pela aparência e bens materiais. Além disso, a tentativa de dissociar a essência da aparência falha por ser falsa.

Não somos indivíduos que têm uma aparência, separada do ‘eu’, como uma roupa natural que nos veste, protege e identifica. O que é aparente aos que nos veem é indissociável do que somos, desfazendo assim qualquer hierarquia do que vem a ser mais importante. Erramos ao tentar classificar pessoas que preferem cuidar do corpo e pessoas que preferem cuidar da mente – ou alma, espírito, consciência; como queiram. De uma forma ou de outra são cuidados dispendidos ao indivíduo, indissociável.

O filme dá algumas pinceladas em pessoas que optam por congelar os corpos depois de mortas, na tentativa de voltarem à vida quando houver tecnologia para ressuscitar os corpos. Walt Disney deve ser o mais famoso dos corpos nessa situação. Somos levados a pensar que o rico e indignado César vai recorrer a essa técnica para voltar à vida quando as técnicas de cirurgia plástica forem eficientes a ponto de poderem restaurar seu rosto.

Aos poucos as peças desconexas e confusas vão ganhando coerência e sentido. Sem detalhar o enredo daqui para frente – para evitar surpresas e não influenciar na impressão de cada um – o que vemos é uma realidade paralela muito intrigante e simbólica.

Até onde se sabe o desfecho é pura ficção, mas forma uma metáfora muito interessante sobre as impressões que temos sobre nossa vida e nosso passado. À certeza de que nossa memória tende a nos guiar, por vezes é atirada uma realidade conflitante com provas suficientes para nos deixar sem argumentos.

Para Walter Benjamin a memória é construída a cada vez que nos lembramos de determinado fato. Resumindo ao extremo, é como se o que chamamos de verdade fosse uma somatória de fatos que ocorreram e pequenas distorções que fazemos a cada vez que pensamos em tais fatos.

A confusão proposital da narrativa do filme, misturando sonho, realidade, presente, passado, etc., é uma forma de levar para as telas a bagunça de sentimentos e lembrança que sintetizamos em uma espécie de ‘versão oficial’, a qual chamamos de verdade.

Lidar com mudanças bruscas que nos obrigam a bater de frente com o que acreditávamos não é fácil. Quando se trata de reformular toda a vida, como é o caso de César, não basta tirar uma roupa e vestir outra mais adequada à ocasião. Conforme já citado, essa ‘roupa’ não existe separadamente, ela é parte intrínseca do indivíduo, que deve, portanto, se reconstruir por inteiro.


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Junho

Grandes manifestações políticas no Brasil são raras. As razões para isso são diversas, por exemplo, pensando em nossa história recente passamos vinte anos em um regime militar, que não só proibia manifestações como punia até com a morte aqueles que ousavam expressar descontentamento ou divergência.

O sucateamento da educação, iniciado na ditadura e mantido com muito afinco depois da redemocratização, forma gerações de cidadãos que acreditam poder restringir a democracia ao ato de votar a cada dois anos. O estranhamento à política é tão gritante que a sociedade aceita o dito popular de que “política não se discute”, mesmo sendo a política uma discussão em sua essência.

Por isso e muito mais o mês de junho de 2013 merece tanto destaque em nossa história. Não é este documentário do diretor João Wainer que esgotará o tema, muito menos este texto, porém o filme traz questões pertinentes que nos permitem algumas conclusões após mais de um ano de protestos.

Em um país tão carente em qualquer área, não faltam motivos para que a população proteste, porém o que deu início às mobilizações foi o aumento de passagens na cidade de São Paulo. Como sempre acontece depois de um aumento, o MPL (Movimento Passe Livre) começou a organizar passeatas, bem menos numerosas do que o auge dos protestos, mas representativa o suficiente para irritar boa parte da população e inflamar o discurso da mídia tradicional, que exigia um basta por parte da PM.

Até o dia 13 de junho de 2013 não havia nada de novo. Parecia que mais uma vez as manifestações iriam contar com cada vez menos participantes, até que o aumento de passagem fosse assimilado e aceito. Mas naquela quinta-feira a PM exagerou na dose do abuso de poder. Mesmo uma sociedade complacente com a violência policial cotidiana ficou indignada com tamanha desproporção de força, tomando as ruas em massa no ato seguinte.

A grande mídia não gosta de manifestações populares. São poucas as famílias que controlam os meios de comunicação no Brasil e, como todo oligopólio, há muito cuidado para que essa hegemonia não seja quebrada. Não por acaso a Rede Globo tentou noticiar o início das Diretas Já como uma festa do dia do trabalhador. Desta vez não foi diferente. De Arnaldo Jabor dizendo que errou ao desqualificar os manifestantes ao Datena tendo que mudar o discurso ao vivo, a mídia a princípio mudou a crítica e passou a dar razão à demanda popular.

Enquanto a pauta era restrita à redução das passagens, era bem mais fácil manter uma grande quantidade de pessoas unidas. Porém depois que as tarifas voltaram ao valor anterior (ainda alto) a despolitização da população tornou-se gritante. O apoio genérico às manifestações era quase unânime, mas é evidente que as demandas das classes mais altas são diferentes e por vezes diametralmente opostas às das classes mais baixas.

É evidente que o país precisa melhorar a saúde pública, melhorar a educação – pública e particular, que têm problemas distintos, mas graves – melhorar a segurança – até para que a PM pare de agir como rottweilers treinados para matar. O problema é que quando o povo toma as ruas exigindo a redução das passagens, o governo pode atender de uma hora para outra, enquanto ir para as ruas exigindo educação de qualidade não pode ser resolvido com uma canetada.

Pensando em um cenário ideal, em que toda a verba necessária para saúde ou educação fosse empregada de forma competente, sem desvios e com todo o profissionalismo, os resultados apareceriam depois de vários anos. Foi nessa brecha criada pela despolitização que a mídia voltou a ter poder sobre o povo.

Há suspeitas de policiais à paisana infiltrados em protestos e instigando ações violentas. Como nada foi provado, é prudente manter o foco no que é inegável. O mesmo Jabor que teve que engolir o orgulho e pedir desculpas por criticar os manifestantes conseguiu emplacar uma revolta contra a Pec 37, ainda que poucos soubessem a fundo seu significado e implicações.

O documentário de João Wainer não é conclusivo. Ele visa exibir os fatos entrevistando jornalistas, cientistas políticos, etc., sem entrar no campo das hipóteses de desdobramento dos atos. Apesar disso, entre tantas análises possíveis podemos pensar em alguns números posteriores aos fatos.

Até junho tanto a presidenta Dilma Rousseff quando o governador Geraldo Alckmin tinham altíssima taxa de aprovação, ambas incompatíveis com a realidade de cada governo. Hoje, a pouco mais de uma semana do segundo turno das eleições, Dilma pode até ser reeleita, mas será em uma eleição extremamente disputada, enquanto Alckmin, a quem a PM que deu início às grandes manifestações com sua onda de abuso de autoridade é subordinada, já foi reeleito com uma vantagem insana para o governo do estado.


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Miss Violence

Uma das principais referências para a cultura ocidental, mesmo tendo tido seu ápice há mais de dois milênios, a Grécia nunca foi um grande polo de cinema. Ainda assim o diretor Alexandro Avranas lançou essa grande obra, com o cotidiano de uma família grega que infelizmente pode se repetir em qualquer país.

Não é um filme dos mais fáceis, tão pouco agradáveis; ainda assim é indispensável, pois o cinema não serve apenas para entreter. Uma das tantas funções de um filme é exatamente retratar fatos que a realidade costuma maquiar.

Sem nenhum spoiler por aqui, já que um grande atrativo do filme é a aura de mistério que paira sobre a família aparentemente comum, vemos no trailer a tão inquietante primeira cena. Durante a festa de aniversário de 11 anos, restrita aos avós, mãe e irmãos, Aggeliki (Chloe Bolota) mantém as feições impassíveis, esboçando um leve sorriso apenas alguns segundos antes de pular da sacada.

Crianças têm o mundo inteiro a ser descoberto, tanto de forma física quanto sensorial. Se essa exploração de tudo que as cerca, juntamente com os sentimentos que transbordam dentro de cada uma, não é feita de forma mágica, algo está errado. O desânimo prolongado na infância indica problemas. Nem a condição de vida chega a influenciar muito, pois basta prestarmos um pouco de atenção em crianças de rua – aquelas que costumamos fingir que não existem – para ver que entre tantas dificuldades elas arrumam brechas para brincar e se divertir com o cotidiano.

A naturalidade com que os familiares, inclusive as crianças, lidam com a morte da menina é evidentemente suspeita. Tão suspeita quanto a apatia das crianças durante a festa. A versão oficial dada aos assistentes sociais é a de que a queda foi acidental e que a família estava fazendo o possível para que tudo voltasse ao normal. O problema é que pelos poucos elementos que temos do passado, notamos que o dia-a-dia da família não parecia tão “normal” assim.

Para quem olha de fora não há nada de errado com a família do filme. O patriarca (Themis Panou) busca um emprego onde aparentemente ganhará pouco, mas nada que destoe dos que estão próximos, já que o país todo está em crise econômica, com altas taxas de desemprego e consequentemente baixos salários.

Dentro de uma situação econômica que por si já nivela a sociedade em um patamar insatisfatório, e mais baixo do que a média que as pessoas estavam habituadas, o tempo poderia fazer com que a nova realidade fosse assimilada, sobretudo pelas crianças, ainda sem responsabilidades econômicas diretas.

É o que ocorre no campo particular que pode agravar os problemas individuais a níveis insuportáveis, por isso são tão difíceis de serem solucionados. É fácil darmos uma volta pelo quarteirão e afirmar, como tanto vemos, sobretudo em época eleitoral, que devemos preservar a família tradicional, como se esta fosse garantia de que tudo correrá bem no plano individual.

De fato, muitas famílias tradicionais têm as relações entre seus membros desenvolvidas de forma satisfatória e, se por um lado enfrentam problemas e divergências, por outro conseguem solucionar seus impasses sem grandes traumas entre os envolvidos. O problema é que essas famílias não precisam de ajuda ou defesa externa, como prometem os que insistem em atuar como defensores da vida privada.

As intervenções que são de fato necessárias, como seriam no caso da história do filme, passam despercebidas, ocultadas pelo verniz de família ideal, que é comprado com a maior facilidade. A particularidade de um enredo cinematográfico infelizmente se repete, com variações que não chegam a aliviar o cerne do problema, em muitas famílias aparentemente felizes.

Com um pouco mais de abstração a história do filme até pode ser interpretada como uma metáfora da situação econômica da Grécia. O Estado como uma família feliz e independente, que esconde dos olhos dos vizinhos os absurdos cometidos da porta para dentro. Tudo caminha relativamente bem, até que um incidente expõe problemas e fragilidades, desestruturando a frágil aparência de felicidade.

Em comum, tanto a interpretação metafórica quanto literal podem indicar que certos problemas podem até ser resolvidos ou interrompidos com o tempo, mas os traumas individuais tolerados por um longo período deixam cicatrizes bem mais profundas do que uma aparente normalidade deixa transparecer.


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